Tarde demais pra voltar a dormir

Harry Potter - J. K. Rowling
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Tarde demais pra voltar a dormir
Summary
Uma gota caindo na água reverbera no lago inteiro. Uma troca de olhares que se estende pode mover todas as peças ao redor. James Potter e os problemas são velhos amigos, prestes a se conhecer muito melhor. O que há por trás dos encantadores olhos que parecem persegui-lo por todos os lados?Para Narcissa Black, tudo é heterogêneo. Em que ponto do infinito tudo se mistura? Se você procura uma história de drama, amores e nós do destino se entrelaçando, é tarde demais pra voltar a dormir!Essa é uma história sobre o que poderia ter acontecido enquanto os marotos estavam em Hogwarts, sob a sombra da Primeira Guerra Bruxa. A maior parte dos personagens e cenários descritos pertencem a J. K. Rowling e são utilizados nessa fanfiction sem nenhum tipo de intenção comercial. Algumas datas e ordens de acontecimentos foram alteradas para que a história pudesse fazer sentido.
Note
Olá, pessoal!Gostaria de lembrá-los que essa história se passa nos anos 1970, então algumas atitudes, falas e pensamentos dos personagens podem parecer ultrapassados e inaceitáveis para os dias de hoje. Lembrem que tudo está inserido em um contexto! Fumar em qualquer lugar era um hábito da época, por exemplo.Aproveito pra lembrá-los de ter moderação com o consumo de álcool e cigarros, que é bastante frequente nessa história.Por fim, alerto que a história é ampla e vai comportar um monte de possibilidades, se você não se sente confortável com linguagem chula, violência, homossexualidade/bissexualidade, bullying, cenas de sexo e outros tópicos delicados, eu tomaria cuidado!ATENÇÃO!!Este capítulo contém cenas de bullying.
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Despedidas

Rodolphus apertou seu antebraço com um pouco mais de força do que era necessário. Como se precisasse dele para repreendê-lo! Bella sabia bem que as risadinhas que escapavam de seus lábios deveriam cessar. Contudo, não havia encontrado maneira de fazê-las pararem de surgir. Tudo aquilo era ridículo. Todas aquelas pessoas trajando roupas refinadas em preto, apregoando um luto do qual se desfariam no dia seguinte. O corpo de Druella estendido naquele caixão, postado no centro da sala, imóvel como um boneca. Os cabelos feitos e a maquiagem impecável, como se repousasse em um sono da beleza. Parecia tão pequena e jovem, que era como ter um vislumbre de Narcissa morta. Era linda, exceto pelo fato de que já estava se tornando esverdeada.  Seu pai parado como uma estátua, encarando a mulher morta, sem mover sequer um músculo do rosto, parecendo tão morto quanto ela. Ela e Cissy ali, como duas recepcionistas do além-túmulo, recebendo condolências de pessoas com quem sua mãe não havia trocado mais do que poucas palavras. Era tudo ridículo demais para que ela não sentisse vontade de rir!

Bellatrix não entendia o sentido de tudo aquilo. Druella estava morta, imune a quaisquer conveniências sociais! Não havia mais nada. Por que insistiam em prolongar aquela vida que já tinha se apagado? Tudo morria, o tempo inteiro, no entorno. E nenhum deles havia parado para testemunhar a morte do mundo. Por que então haviam abandonado seus afazeres para se fantasiar de luto e vir ali, agir como testemunhas da morte de sua mãe? Seria aquela mulher mais importante do que qualquer outro ser vivo que encontrara enfim o descanso eterno? Haviam cobrado de Druella que fosse impecável a vida inteira. Não podiam deixá-la em paz sequer agora, na morte, e permitir que voltasse ao pó sem ter que se apresentar em sociedade?

Era cômico a forma que cultuavam a vida como algo tão cheio de importância. Nos últimos tempos, Bellatrix compreendera que um simples agitar da varinha podia desaparecer com ela num átimo, a bel-prazer de um bruxo poderoso. A vida era uma daquelas velas acessas sobre os castiçais, que os elfos tinham espalhado pela sala. Um sopro era o bastante para extinguir a chama que crepitava. Bella tinha aprendido que aqueles que não se tornassem sopradores, seriam soprados. Preferia estar ao lado dos que permaneciam queimando.

- Veja só quem veio... – Seu marido sussurrou para que somente ela ouvisse.

- E trouxe flores! Como é educado! – Ela deu uma risadinha, usando o lenço para cobrir a boca. Dessa vez, Rodolphus a acompanhou.

Seu novo pupilo comparecera. Um rapaz de ouro! Trajando preto da cabeça aos pés, parecia ainda mais pálido. Certamente viria até ela para prestar as condolências, como uma mamãezinha a quem devia respeito. Lucius Malfoy não era exatamente seu aprendiz, mas Rodolphus gostava de zombar daquilo. O rapaz tinha retornado a pouco do exterior e adentrado aos círculos do Lorde. Grudara em Bella como uma sanguessuga, talvez por imaginar nela alguma semelhança com a irmã falecida, de quem havia sido amigo em outros tempos. Muito mais provável por compreender a importância que ela adquirira entre os Comensais. Não era preciso ser muito esperto para entender que ela, como a única mulher ali escolhida, tinha algum prestígio. Cruzou as fileiras que se avultavam ao redor do esquife, aproximando-se de onde ela estava. Bella devolveu o lenço ao esposo, vendo o braço de Malfoy se estender, para ofertar o buquê. Esses garotos mimadinhos eram tão bobos! Despertavam nela um desprezo que nem sabia possuir. Controlou o riso para bancar a emocionada.

- Eu sinto muito, Srta. Black! – Falou em baixa voz, passando em frente a ela e entregando as flores a Narcissa.

- É muito gentil da sua parte, Sr. Malfoy! – A irmã insossa murmurou, oferecendo a mão para que ele beijasse.

Bellatrix e o marido se entreolharam, contendo a risada. Ora! De onde tinha vindo aquilo? É claro que qualquer idiota saberia que Narcissa era a mais bobinha entre as irmãs Black e a única a quem encantaria receber um gesto brega como aquele. Talvez o rapaz não fosse tão simplório como ela pensava, se percebera o quão ridículo seria entregar o buquê e ela e como escolher sua irmãzinha como destinatário atingiria seu fechado coração de forma muito mais certeira. Teria de fato funcionado, caso ela não estivesse tão desenganada com Cissy. Se Malfoy era esperto o suficiente para estudá-las a esse ponto, Bella deveria abrir os olhos perto dele. A arrogância podia esconder, talvez propositalmente, uma sagacidade ímpar.

- Se houver qualquer coisa que eu possa fazer para ajudá-la num momento como este... Por favor, me deixe saber.

- Obrigada!

- Meus sentimentos, Sra. Lestrange! – Beijou a mão que Bellatrix, apenas pelo desaforo, estendeu a ele.

- Muito obrigada, Malfoy! É uma surpresa tê-lo aqui.

- Sempre fui muito bem recebido nesta casa durante os momentos de celebração. Não podia deixar de prestar meu respeito neste momento difícil.

- Talvez possamos ter uma conversa breve lá fora, Malfoy? Enquanto eu fumo... – Rodolphus indicou o caminho para o outro.

- Claro!

Baixou as pálpebras, olhando de esguelha para o esposo. Então ambos tinham, de fato, algo a conversar! O funeral serviria apenas como disfarce... Era difícil saber o que se tratava de convivência social e o que fazia parte da guerra. Nem mesmo entre os círculos mais internos havia uma total compreensão. Dois comensais podiam estar lado a lado executando tarefas e sequer cogitar o envolvimento um do outro com a causa. Ainda que dividissem o leito conjugal, ela e Rodolphus nem sempre tinham ciência de tudo que fora designado para eles, em sua individualidade! Tudo milimetricamente ajustado para diminuir a fuga de informações. O Lorde era inteligentíssimo, sobretudo no que se tratava da própria segurança. Vê-lo usar as próprias mãos era um privilégio difícil de ser alcançado, mesmo para os que dividiam a mesa com ele, como ela e o marido.  Os acompanhou com o olhar, até que deixassem o cômodo. Era melhor que ficassem atentos a Malfoy. Ele parecia ser o tipo que comia pelas beiradas.

A conversa não foi tão rápida quanto Rodolphus tinha prometido. O homem voltou a se juntar a ela somente quando o cortejo entrou no jardim. Seu pai e seus tios Benjamin, Alphard e Órion iam a frente, as varinhas tremulando para manter o caixão flutuando em seu caminho até o jazigo. Druella morrera com honra: Apesar de ter nascido Rosier, uma família de importância questionável, embora tradicional, passaria a eternidade enterrada ali na mansão, com o nome estampado para sempre na tapeçaria, pertencente a Mui Antiga e Nobre Casa dos Black.

- Bom trabalho, mamãe! – Seu sussurro foi encoberto pelo tumulto dos passos sobre o caminho de pedras.

O delicado buquê de miosótis que fora ofertado por Malfoy foi o primeiro a ser vertido sobre o caixão. As mãos alvíssimas de Narcissa se abriram no ar, para lançar as pequenas flores azuis dentro do buraco cavado na terra. A bonequinha estava trêmula, embora não tivesse derramado nenhuma lágrima. Interpretava de forma excepcional o papel da filha enlutada, triste e ligeiramente anestesiada pelo choque. Tio Órion apertou os ombros dela com as mãos, acolhendo-a em um abraço para afastá-la da beira. Uma linda e afável cena de amor parental! Bella teria vomitado, se ainda restasse alguma coisa em seu estômago depois de tanta horas de pé. A caçula fechou os olhos, afundando-se no peito do tio, para não ver a terra ser derramada até encobrir a cova. 

Bellatrix pousou a mão no ombro do pai, que acompanhava, impassivo, o sepultamento. Cygnus dobrou o braço, dando duas batidinhas carinhosas sobre os dedos dela. Depois deixou a mão ali, envolvendo a dela, como único sinal de que a morte de Druella havia mexido com seus sentimentos. Sua mãe costumava dizer que o emocional de Bellatrix havia saído exatamente ao pai. Fora uma criança séria desde os primeiros meses de vida e nunca se deixara ludibriar por aquela bobagem sentimentaloíde de amor. Ah, o amor... Pedaços da cena ainda vinham a sua memória todas as vezes que ouvia aquela palavra: Andrômeda, usando o velho vestido xadrez que tanto adorava, os cabelos cortados curtos, rente as orelhas, de pé ao lado da mesa do desjejum. Como Bella tinha invejado aqueles cabelos, modernos e cheios de personalidade, que a própria Andrômeda havia cortado! Declamava um poema, em homenagem ao aniversário de Druella. Uma baboseira trouxa, que tinha encontrado em suas incursões a Biblioteca de Hogwarts. Como eles não haviam notado que mesmo aos onze anos, quando recém encontrara a liberdade fora do lar, já demonstrava inclinações a traição?

O amor é paciente, o amor é bondoso. “EU JÁ LHE DISSE NÃO UM MILHÃO DE VEZES! Não me faça repetir mais uma vez, BELLATRIX BLACK! Ou eu ficarei satisfeita em arrancar uma de suas unhas após a outra!”. Os nós dos dedos brancos de segurar tão firmemente a varinha. O semblante sisudo, incapaz de sucumbir a sedução de um sorriso travesso, arrancando-a do berço onde a intocável Cissy dormia.    

Não tem inveja. O amor não é orgulhoso, não é arrogante. “Não dê ouvidos a quem não merece sua atenção. Nem todos são dignos como a nossa família, Bella... Não deixe que eles pensem que podem falar com você como falam entre eles!”. Os olhos cintilando altivos. As unhas compridas arranhando seu couro cabeludo, enquanto trançava seus cabelos para tomar o Expresso pela primeira vez.

Nem escandaloso. Não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não guarda rancor. “Como já havia lhe dito, não deu certo. Por que é que eu ainda perco tempo se você insiste em tomar como obtusos todos os conselhos que a sua estúpida mãe tenta dar a você?”. O bastidor largado de lado, para acolher a cabeça e as lágrimas dela em seu colo, recitando todas as vezes em que Bellatrix se engasgara com a própria sofreguidão.  

Não se alegra com a injustiça, mas se rejubila com a verdade. “Grifinória? Não se cospe pro alto sem esperar que caia na cara, Bella! Por cada vez em que ela me olhou de cima por ter tido um filho homem, era justo que o garoto fosse mesmo uma vergonha! E as minhas meninas... Todas impecáveis!”.  O sorriso faustoso no rosto. A celebração tácita na taça de vinho branco após o jantar.

Tudo perdoa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. “VOCÊ ME PROMETEU, BELLATRIX! Quer me ver morta? Eu não a pus no mundo para isso! Não vou tolerar vê-la sujar suas mãos de sangue!”. As sobrancelhas franzidas no rosto cansado, observando-a chegar de madrugada mais uma vez. O corpo franzino parado atrás da porta que ela bateu sem se importar.

Ergueram as varinhas acessas, em direção ao céu, como uma homenagem. Nada daquelas palavras lançadas ao ar por Andrômeda se parecia com o único amor que ela conhecera e que, agora, repousava a sete palmos debaixo do chão. O próximo que ousasse falar a ela de amor, acabaria em igual destino. Não hesitaria em extinguir a chama de quem quer que fosse com um agitar da própria varinha.

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Dois toques secos na porta.

- Bom dia, raio de sol! Posso entrar?

Ela teria dito não a qualquer outra pessoa. Entretanto, como mandar embora tio Órion segurando duas canecas fumegantes? Cissy acenou, voltando a fitar a lareira vazia. Quem sabe se o fogo estivesse acesso, ela não sentisse um frio tão grande dentro do peito. O homem lhe entregou a bebida e Narcissa tomou um gole. Era leite quente com um pouco de mel. Talvez pudesse ajudá-la a espantar o inverno que se instalara dentro dela.  Ele nem considerou as poltronas, dobrando as pernas para se sentar ao lado da sobrinha, no tapete.

- É cedo pra ver uma jovenzinha fora da cama.

- Não dormi.

- Dificuldades pra pegar no sono?

- Eu nem tentei... – Admitiu. – Não conseguiria fechar os olhos sem vê-la estendida naquele caixão.

- Estou certo de que há lembranças mais vívidas na sua memória. Você devia invocá-las... Vai precisar dormir, mais dia ou menos dia.

- E você? Já acordado?

- Meh... Eu sou um velho! É infalível que às 05h a cama pareça estar cheia de espinhos e eu me veja forçado a levantar. Sabe, Cissy... Aproveite enquanto você é jovem. Ser velho é uma merda!

- Não seja tão exagerado, titio! – A garota revirou os olhos, com um sorrisinho no rosto. - Não é como se já tivesse uma centena de anos...

- Às vezes sinto que tenho muito mais.

Ele levou a caneca a boca. O largo anel dourado tremeluzia em seu dedo, ostentando o brasão da Casa Black. Nunca tinha visto tio Órion sem aquele anel. A joia o demarcava como o primogênito da família, o chefe que ele nunca tinha feito questão de ser. Cygnus usurpara aquela tarefa, assumindo os ônus e bônus concernentes a ela. Cissy tinha a certeza de que a personalidade diplomática de seu tio teria feito as coisas seguirem um rumo diferente, se a família estivesse nas mãos dele.

- Eu nunca tinha entrado nesse cômodo. Sempre me pareceu tão cheio de mistérios... – Os olhos azuis percorreram os cantos da sala, analisando a decoração. – As mulheres e seus segredos! – Acrescentou, com um sorriso de canto de boca.

- Ela adorava bordar bem naquela poltrona... Vislumbrando as chamas.

Foi ali, dividindo o cômodo com sua mãe, que tivera certeza da sua paixão por James. Estava cheia de arrependimento por não ter compartilhado com ela o que sentia de verdade. Talvez Druella, a quem a paixão tinha revirado a vida do avesso, a tivesse compreendido. Agora era tarde demais para confessar o que vinha aprendendo com James Potter, um traidor do próprio sangue, e como a imposição da família sobre a vida dos dois estava lhe causando sofrimento. Nunca mais poderia contar a Druella sobre seus medos, angústias e decepções. Tampouco iria pô-la a par de seus sonhos, conquistas e amores. Nem mesmo poderia ouvir seus conselhos e as histórias de sua juventude. Tudo aquilo havia sido arrancado dela pelas agruras do destino. Não era certo que uma garota de 18 anos fosse privada de ter uma mãe! Não uma garota como Narcissa, que ainda precisava tanto dela.

- O senhor acha que teria sido diferente, tio Órion? – Cissy criou coragem e depositou as palavras sobre o silêncio que tinha se desenvolvido. – Que ela ainda... estaria aqui?

- Se a sua mãe tivesse seguido em frente no plano de se casar comigo? – Ele coçou os fios grisalhos da barba por fazer.

- É.

- Eu não tenho uma resposta pra essa pergunta, meu anjo. O resultado seria impossível de prever. – Tomou outro gole do leite, piscando com um semblante reflexivo. – Mas de uma coisa eu tenho certeza: Druella viveria tudo outra vez para ser mãe de vocês três. - Narcissa sorriu, porque ele acrescentara Andrômeda sem estardalhaço ou hesitação.  - Não havia nada que fosse mais importante para ela, Cissy. Sei que ela faria as mesmas escolhas, não importa o preço, para que isso acontecesse.

- E o senhor? – Adicionou, curiosa. - Preferia que tivesse sido diferente?

- Não. – O homem apertou os lábios e as rugas em sua testa se tornaram mais evidentes. – Eu sempre fui apaixonado pelas minhas três monstrinhas!

Narcissa segurou a caneca com as duas mãos e sorveu o leite. A espuma se acumulou sobre sua boca, desenhando um bigode branco. Uma risada tímida saiu de seus lábios e ele a acompanhou. Longe de qualquer afetação, Órion Black era um homem naturalmente gentil e carinhoso e Cissy amava isso nele: Que fosse capaz de abraça-la só com a presença e fazê-la sentir-se confortável onde quer que estivesse. Cygnus jamais conseguira fazer com que ela se sentisse protegida daquele jeito.

- Caneca vazia, para baixo das cobertas!

- Tio Órion!

- Sem reclamação, Narcissa Black! Você precisa descansar.

Órion se levantou, oferecendo o braço para ajudá-la a fazer o mesmo. Se separaram nas escada, ela seguindo pro quarto, o tio para a cozinha. Um novo dia já se anunciava do lado de fora quando Cissy fechou a porta atrás de si. Abriu a varanda, descansando os olhos na visão do amanhecer que ia crescendo, bem a tempo de ver a coruja pousar no parapeito. Abaixou-se para pegar o pacote que o animal largara no chão. Não tinha nada à mão com que pudesse alimentar a coruja, então fechou a porta atrás de si, deixando que ela se virasse com algum dos frutos do jardim.

Querida Cissa,

Não pude encontrar palavras para me fazer alívio num momento tão doloroso. Receba, por essa carta, todo o amor que sua imaginação for capaz de conceber. E também um punhado de gotinhas de alegria, que não fazem mal a ninguém!

Seu, JP.

Largou o pacote de chocolates sobre a cama e se enfiou debaixo dos lençóis para se entregar aos sonhos, com o pergaminho grudado ao peito, o interior morno como uma caneca de leite, um sorriso singelo nos lábios e o estômago revirado pela certeza de que estava traindo tudo em que sempre acreditara.

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- Malfeito feito! Malfeito feito! – Coçou a cabeça. Girou a varinha em uma nova tentativa, apontando pro pergaminho. – Malfeito feito!

As dobraduras no pergaminho retrocederam aos poucos, fechando-se em si, uma após a outra, ao mesmo tempo em que as inscrições iam desaparecendo e deixando a superfície lisa como nova. Peter deu um sorriso recheado de contentamento. Levantou-se em seguida e foi até a cama de Aluado.

- Aqui! Oculto para bisbilhoteiros, como prometido. – Depositou o mapa em cima do livro de Feitiços que o outro estava fichando. – Ah! Eu também terminei de escrever o que você me pediu. – Abriu a gaveta da mesa de cabeceira, catando as folhas, e entregou ao amigo.

Eram páginas e mais páginas traçadas de linhas retas, contendo cada uma das letras do alfabeto em maiúsculas e minúsculas, além de algumas frases já preparadas. Tudo repetidas vezes, em variados estilos. Tinha esvaziado consideravelmente o próprio tinteiro escrevendo aquilo a pedido de Aluado. A caligrafia de Almofadinhas, utilizada na versão original, era sofrível e Aluado insistira que Rabicho ficasse responsável por aquela parte. Sirius tinha ficado ofendido, mas Peter não tinha culpa de ter perdido anos da infância com a bunda sentada na cadeira, copiando cadernos de caligrafia sob o crivo exigente de sua avó! Ao menos estava servindo pra alguma coisa...

Pontas tinha passado quase uma semana com a cara enfiada naquele mapa, ainda em pé de guerra com o mundo inteiro por Marlene McKinnon ter assumido a posição de capitã do time de quadribol, especialmente com Almofadinhas. Tinha virado noites vasculhando livros da biblioteca, até encontrar um feitiço que pudesse pôr em prática a ideia fantasiosa que tivera depois do incidente com o Ranhoso: Permitir que o mapa rastreasse os movimentos de cada pessoa no castelo. Agora, o mapa era dotado do Feitiço Homonculous e bandeirinhas indicavam exatamente a posição e as movimentações de quem quer que estivesse em Hogwarts. Peter certamente teria executado mais rápido a própria tarefa, de incutir o pergaminho com as senhas de abertura e encerramento, se não tivesse gastado tanto tempo acompanhando, fascinado, as bandeirinhas se movendo. A mente de James Potter era mesmo maravilhosa! Agora, o mapa do maroto estava quase pronto. Os retoques finais eram encargo do desenhista, Aluado.

- Você podia por umas mini pegadas... Ia ficar bonitinho! – Remus o mirou de esguelha, rabiscado o desenho de dois pezinhos no canto da folha em que estava fazendo anotações. – Bom, eu vou indo. Não me esperem pra jantar!

- Outro encontro? – Aluado mantinha o rosto voltado pros livros.

- Hippolyta Smethwyck. - A mãe da garota, uma quartanista da Lufa-Lufa, era uma proeminente curandeira, promovida recentemente a diretora do St. Mungus.

- Eu pensei que você estava saindo com a...

- Jamyle Shafiq?

- Milicent Fudge.

- Ambas! – Peter piscou pra ele.

- Sério, Rabicho? – Finalmente Remus ergueu a cabeça, pra encará-lo com uma expressão de desaprovação.

- Que mal há? – Abriu os braços, na defensiva. - Eu não namoro com nenhuma delas!

- Elas sabem que você está saindo com outras garotas também?

- Não exatamente. – Ele apertou os lábios e olhou pra cima, brincando com o outro.

- Você sabe que isso é escroto, né?

- O Almofadinhas faz a mesma coisa e você nunca disse nada!

- A diferença é que as pessoas entram nessa sabendo que o Sirius é um promíscuo, Rabicho. Essas garotas devem sonhar que você está caidinho por elas!

- Eu nunca fiz nada pra elas pensarem assim. Não vejo qual o problema!

- Não dá pra servir a dois senhores.

- Desde que elas nunca fiquem sabendo, vou servir não só a dois, como a três. Eu tenho que fazer o que é melhor pra mim, Aluado!

Colocou a varinha no bolso e foi até a cabeceira de Pontas, surrupiando um pacote de pastilhas. Ia ter que se lembrar de comprar um pouco pra abastecer o acervo do amigo, de quem tinha se tornado assíduo usuário. Se olhou no reflexo da janela, arrumando os cabelos e a gola da camisa. A expressão de reprovação de Remus fazia parecer que ele estava com indigestão.

- Não faça essa cara pra mim, Aluado! Você não tem nenhuma moral pra falar de eu estar, SUPOSTAMENTE, enganado essas garotas!

- Posso saber por quê? – Cruzou os braços a frente do corpo.

- Porque você está enganando a Dorcas muito mais do que eu sequer cheguei perto!

- O QUÊ?

- Você sabe muito bem que não vai ficar com ela, Aluado. Não dá. Você não pode! – Ele viu o rapaz desviar o olhar, melancólico. - Por que é que está cozinhando a menina por tanto tempo?

- Nós somos só amigos, Rabicho.

- Ela sabe disso?

- É claro que sabe!

- Aham! Sei... E a Murta que Geme é o fantasma favorito de todos os alunos de Hogwarts! – Peter girou a maçaneta, já tinha se atrasado por causa daquela conversinha mole. - Você devia resolver isso, antes de apontar o dedo pra mim, santinho!

- VAI À MERDA! – Remus gritou, por cima do barulho que a porta fizera ao bater.

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O olhar dela estava posto sobre o lago, que se estendia como um manto prateado no terreno da escola. Parecia esquálida ou, talvez, menor. James sentiu uma terrível vontade de contê-la entre seus braços, que ia ficando mais pungente a cada passo, até o ponto de tornar-se insuportável. Descansou a mão sobre a cintura dela, parando ao seu lado para mirar a paisagem. Não havia lágrimas refreadas pelas pestanas compridas, só a secura de um luto que lhe arrancara toda a vivacidade.

- Eu sinto muito, Cissa.

Se arrependeu das palavras. Eram chulas demais para traduzir o pesar que sentia por ela. Narcissa assentiu, encaixando os dedos gélidos em sua mão. James a segurou pelo ombro, para que ficassem face a face. Pousou os lábios em sua testa, aspirando o cheiro adocicado dos cabelos claros.

- Se houvesse algo que eu pudesse fazer pra que você não tivesse que sofrer tanto..!

- Talvez eu precise. Pra equilibrar as coisas.

- Não repita isso. Nunca mais! Você não merece nada além da felicidade, Narcissa.

- Não é o que parece, considerando tudo que tem acontecido nos últimos tempos...

- Pessoas boas não tem culpa de que coisas ruins aconteçam a elas.

- Eu não tenho certeza se sou uma boa pessoa, Jamie.

- Por que diabos você diria isso? – Apertou os ombros dela. – O que andaram colocando na sua cabeça?

- Nada! Ninguém colocou nada na minha cabeça.

Narcissa se virou, apoiando as costas na pilastra. Cruzou os braços a frente do corpo, criando uma barreira para impedi-lo de se aproximar. A garota encarava o chão, com os olhos vidrados. Era óbvio que não estava ali... Tinha a mente perdida em algum lugar distante. James tirou os óculos do rosto, executando um feitiço para que as lentes ficassem limpas outra vez antes de devolvê-los ao rosto.

- É minha culpa, Jamie. – O murmúrio soou tão baixo que foi difícil compreender.

- É claro que não! Pessoas morrem, Cissa. Não tem nada de incomum nisso. Você não tem culpa de que, com a sua mãe, tenha acontecido de forma prematura. – Suspirou. – Se queremos apontar alguém, não acha que faz mais sentido que seja o seu pai o culpado? A forma como ele expulsou a Andrômeda?

- Eu desejei isso. – Cissa admitiu, fitando os próprios sapatos. – Aquele dia, no seu quarto.

- Desejou que a sua mãe morresse, enquanto a gente transava? – James a provocou, para tirá-la daquele torpor.

- NÃO! É claro que não!! – Funcionou. Ela moveu o rosto na direção dele, horrorizada. – Desejei que a minha família não existisse... Pra que a gente pudesse ficar junto.

- Nós podemos ficar juntos, Cissa.

- Podemos? Podemos? – Passou a mão pelos cabelos, afastando-os do rosto. – Você tem alguma ideia do que aconteceria se alguém entrasse no meu quarto e encontrasse aquele bilhete antes de mim, James? Se qualquer um, qualquer um que não eu, tivesse visto aquele pacotinho de doces trouxa? Um simples bilhete...

- Então eu estou errado em ter enviado uma carta pra minha namorada enquanto ela enfrenta o luto mais difícil da vida dela? Eu deveria simplesmente ignorar tudo que acontece a nossa volta porque seria mais seguro?

 - Não é isso.

- Então me diga o que é, Narcissa. – James caminhou até estar de frente a moça, os braços posicionados um de cada lado dos quadris dela.

- Você poderia ter falado comigo quando eu voltasse.

- E esperar quase uma semana pra dizer que estou aqui pra você? Os pêsames já estariam rançosos!

- Estamos juntos agora, não estamos?

- É claro que estamos. E foi fácil! Simples como empunhar uma varinha! Não foi preciso que 37 pessoas fossem enganadas e 12 regras escolares desrespeitadas somente pra que a gente pudesse conversar!

- Não seja irônico comigo!

- Certo! – Ele abaixou a cabeça, soltando o ar com força.

- O que é, James? Você não está feliz com o que a gente tem?

- Não, Cissa. NÃO! Eu amo o que a gente tem! Eu só não suporto mais a forma como tem que ser! Estou cansado de me esconder, de não poder sequer ACENAR pra você, de ser praticamente UM CRIME te olhar em público... De não poder enviar uma porra de uma carta, que eu mandei pra aliviar a consciência, enquanto mordia meu próprio rabo, preso aqui, desejando estar do seu lado pra enxugar as suas lágrimas e te abraçar na merda do serviço fúnebre DA SUA MÃE! Caralho!

- Você sabia dos termos quando quis continuar.

- Porque eu achei que você cairia na real em algum momento, Narcissa! Pensei que a gente daria um jeito de fazer a sua família ver o quanto isso tudo é ridículo!

- Não chame de ridículos os valores que a minha família cultiva a séculos!

- RI-DÍ-CU-LOS! E retrógrados! E também preconceituosos! O que mais você não quer que eu diga?

- Vai se foder, James!

Ela colocou as mãos no peito dele, empurrando-o para longe. James não deixou que ela fugisse, prendendo o braço fino num aperto. Ela tensionou puxar o braço, mas enfim cedeu.

- Algum xingamento que você tenha esquecido de acrescentar?

- Cissa... – James trouxe-a até si. Colocou uma das mechas de cabelo loiro atrás da orelha dela e a segurou pelo queixo. - Eu te amo tanto, Cissa! Só não consigo entender por que é tão difícil pra você me amar também.

- É claro que eu te amo, Jamie! – Os olhos dela dançavam de um lado ao outro, tremulando no escuro. - Tanto quanto me permito amar alguém.

- Talvez isso não seja o suficiente. – Soltou a garota, enfiando as mãos no bolso e traçando um círculo em volta de si, em passos lentos pelo corredor. - O seu medo de não ser quem as pessoas esperam de você vai fazer você passar a porra da vida inteira vivendo aquém do suficiente.

- Isso é uma escolha minha, James.

- Eu não estou dizendo o contrário. Mas toda escolha tem um preço, Narcissa!

- E qual seria o preço? – Ela franziu o cenho, tomada de irritação. – O nosso relacionamento?

- Talvez!

- ÓTIMO! – Narcissa abriu um sorriso irônico.

- Ótimo! – Enfiou as mãos no bolso, tomando o caminho de volta pra torre da Grifinória. – É bom deixar as coisas claras, assim nenhum de nós continua perdendo tempo com essa história que não vai dar em lugar nenhum.

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A escuridão ardia como fogo. Era como se acordasse de um sonho para perceber-se dentro de outro. Um abrir infinito de olhos que nunca enxergavam nada. A suave enervação do canto dos sereianos. O breu era profundo como um abismo que se estendia aos seus pés. De súbito, a pura ausência. Não havia saída e ela já não sabia por onde tinha entrado. Quieto. Quieto e vazio. Quieto.

 

 

 

 

 

 

 

 

Narcissa arquejou. O ar dilacerou suas narinas. Sentiu seu corpo se contrair, colocando para fora o parco conteúdo de seu estômago e uma profusão de água que tinha engolido.

- GRAÇAS A MERLIN! Você enlouqueceu? – Era Evan, parado a poucos centímetros de distância. Ela o reconheceu, apesar da visão estar fora de foco. O rapaz se afastou, tirando a mão que estava sobre seu tórax para mantê-la virada, e se sentou na grama.  – Narcissa? Você consegue me responder?

- O que você está fazendo aqui? – Sua voz soou estranha, como se a garganta estivesse inteiramente arranhada. Julgando pela dor que sentia, talvez estivesse mesmo.

- Eu estava correndo, quando avistei você entrar na porra do lago e não sair mais! O que VOCÊ está fazendo aqui? São QUATRO DA MANHÃ!

- Eu deveria estar morta agora. – O fiapo de voz pareceu ecoar no jardim vazio.

Tudo havia sido substituído pelo frio e pela agonia. Seu corpo inteiro tremia. Evan a tomou no colo, prendendo-a entre suas pernas e encaixando seus troncos. O tremor era intenso, como se estivesse tendo uma convulsão. Ele a prendeu entre os braços, apertando-a contra si, esperando que aquilo parasse. O garoto também estava molhado da cabeça aos pés, com as roupas coladas ao corpo, tinha entrado no lago para salvá-la.

- Você perdeu o juízo, Cissy? – O ar que saia dos lábios dele era quente contra seu pescoço e Narcissa suspirou, agradecida pelo ligeiro calor. – Se não morresse afogada, teria morrido de hipotermia! Ou devorada por uma das milhares de criaturas que mora ai dentro!

Parecera tão claro, tão adequado! Depois de tantas horas se revirando na cama, a morte era a única certeza que ela tinha quando pôs os pés no chão do dormitório. Trilhou o caminho até o lago numa espécie de transe, sem que nenhum nervosismo a atacasse, porque estava certa do que precisava. Não havia nada capaz de aplacar a dor que ela sentia. A única forma de arrancar a angústia, como o destino lhe havia arrancado o chão, era ceifar com as próprias mãos a vida.

Seu peito doía tanto, que se imaginou morrendo de um ataque, antes de chegar a concluir o que tinha planejado. Entretanto, a dor espiritual transmutada em física era só a falta de algo que a prendesse ao mundo. Não havia mais nada que a fizesse desejar estar ali. Tudo que um dia ela tinha amado estava arruinado! A morte, única capaz de poupá-la daquele vazio e de toda a aflição que viera com ele, seria sua salvadora. Como Narciso, ela mergulhara no lago. Não à procura do próprio reflexo, mas em busca do alívio de não mais ser quem era. Agora, as palavras postas tão abertamente pelo primo a faziam perceber a debilidade de suas ideias.

Evan tateou a grama, a procura da varinha.  Encontrou a dela primeiro e a usou, meio sem jeito, para secar as roupas que vestiam. Não ousou fazer mais do que isso, porque qualquer fonte de calor emitiria luz e chamaria atenção para eles dois, fora da cama, àquela hora da madrugada, embolados um no outro.

O coração dele estava disparado, batendo com força em suas costas. Evan estava vivo! Ainda ofegava, nervoso e cheio de adrenalina. Era tão concreto! Firme e cálido em volta dela, macio demais para não ser real. Seus próprios batimentos cardíacos pareciam fracos, perto dos dele, mas estavam lá. Ela também estava viva! Soluçou e as lágrimas voltaram a deixar molhado seu rosto, unindo-se as gotículas de água do Lago Negro que tinham se mantido sob sua pele. Ela estava viva! Tremeu ainda mais, pela violência com que os soluços a tomaram. Não tentou dissimular o choro e Evan tampouco fingiu indiferença. Ele entrelaçou os dedos de suas mãos e apertou ainda mais o laço ao redor dela.

- Está tudo bem, Cis. Você ainda está aqui! Você não vai a lugar nenhum...

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