
Por três dias
Havia uma profunda escuridão. Ela respirava com dificuldades, porque o medo a deixava sem ar. Um trovão após o outro explodia do lado de fora. As janelas chacoalhavam com a força da tempestade. Se encolheu na cama, prendendo os lençóis ao redor de si na tentativa de se proteger. Seu coração acelerado retumbava. O pânico em seu peito cresceu quando um macabro guincho atravessou a noite, provocando-lhe um calafrio.
- ANDRÔMEDA! – O vento trouxe o grito até a sua janela.
Misturada aos barulhos da chuva, era a voz de sua mãe que ecoava pelo jardim. Narcissa se levantou de um pulo, tomada pela preocupação. O que ela estava fazendo fora da cama naquelas condições? Foi até a varanda, correndo. Druella vagava no espaço aberto, entre as árvores e flores, chamando pela filha. Os trovões se seguiam, logo depois dos clarões que iluminavam por um breve instante aquela escuridão, reluzindo sobre o robe branco que sua mãe estava vestido. Sentia tanto pânico que a voz lhe faltava. Queria chamá-la, mas estava completamente muda por causa do medo.
A ventania agitava os cabelos loiros de sua mãe, livres dos penteados recatados que costumava utilizar. Sob o breu, Druella estava fantasmagórica. Gritava, outra e outra vez, buscando a filha perdida. Cissy queria tirá-la de lá e dizer que Andrômeda não ia voltar. Ela não tinha se perdido na tempestade. Ou tinha? Seus pés estavam atados ao chão. Mais um trovão. E logo outro. Pareciam mais próximos agora, seguindo-se com uma frequência absurda. Os olhos de Narcissa estavam molhados. Ela chorava de pavor, de impotência e preocupação.
Druella estava próxima ao centro do jardim quando o raio a alcançou. Traçando linhas de luz, desceu até a terra, tocando-a bem no centro do peito. Outro daqueles guinchos rasgou o mundo. Cissy percebeu que era de sua boca que estavam saindo. O corpo fino caiu, levantando um tanto de água que já se acumulara no chão. Impassiva. Sua mãe estava morta. NÃO! Ao longe, ainda parecia arquejar. Ela preferiu se agarrar a essa centelha, mesmo que fosse uma ilusão. Tinha que estar só ferida. Tinha que estar!
Voltou correndo para o quarto. Precisava fazer alguma coisa. As lágrimas lhe embaçavam a visão. Onde estavam Bella e seu pai, que não viam aquilo acontecer? Será que não tinham ouvido os gritos? Buscou a varinha na mesa de cabeceira e disparou até a porta. Seu coração batia tão rápido que corria o risco de parar. Tateou a maçaneta, mas sua mão escorreu pela madeira da porta. Tentou outra vez. Não havia fechadura. Ela gritou! O vento da janela balançou as cortinas, como se alguém as estivesse abrindo.
A luz sutil da manhã entrou por debaixo de suas pestanas. Sentiu a cama debaixo de si. Abriu os olhos com pressa, erguendo o tronco num segundo. As mãos magras estavam prendendo as cortinas, para deixar o sol penetrar o quarto. Narcissa passou a mão pelos cabelos, apertando o couro cabeludo sutilmente. Tudo não passara de um pesadelo. Expirou lentamente, tentando diminuir o ritmo acelerado de seu coração. O alívio foi se espalhando pelo seu corpo, partindo da cabeça até chegar aos pés.
- Bom dia, meu anjo! – Com a voz doce, sua mãe deu um sorriso, caminhando até a cama. – Dormiu bem?
- Sim. – Respondeu, destampando a moringa que ficava na cabeceira para encher um copo com água. Bebeu em goles arrastados, tentando silenciar a mente. Tudo tinha sido absurdamente real. – Você está melhor?
- Estou. Muito melhor, agora que você está aqui!
Druella se sentou na beirada da cama, ao lado dela. Segurou seu rosto em uma das mãos, acariciando sua bochecha. O toque acalmou seu peito. O cheiro conhecido do perfume floral lhe encheu os pulmões. Sua mãe estava bem. Tudo estava bem! O sol brilhava em seu esplendor do lado de fora. Não houvera tempestade. Sua mente apenas lhe pregara uma peça.
- Você viu o vestido de madrinha? Seu pai me disse que Walburga deixou pendurado no seu armário.
- Vi.
- O que achou? – Sorria, aparentemente entusiasmada, embora houvesse algo estranho em sua feição.
- É lindo, mamãe! Bella tem bom gosto.
- Mas é claro que tem! Fiz um bom trabalho com todas vocês.
Fitou o rosto da mulher sentada a sua frente. Os traços suaves de Druella costumavam ter um poder calmante sobre ela. Era como se sentir em casa. Mas algo a incomodava. Deu um sorriso, forçando-a fazer o mesmo, para tentar definir o que lhe parecia fora do lugar. Não deve ter sido muito discreta, porque logo Druella assumiu uma expressão curiosa.
- Você está diferente, Cissy. – A outra devolvia a análise que ela estava fazendo.
- Eu ia dizer exatamente o mesmo, mamãe!
- Bem... – Arrumou as mãos sobre o colo, polidamente. - Acho que todos nós estamos.
Finalmente descobriu o que lhe incomodava na figura de sua mãe. Havia uma sutil sombra anuviando seu olhar. Devia estar preocupada com a festa! O casamento de Bella seria um grande acontecimento para a família, esperado há um bom número de anos. Agora, desde o fatídico dia, assumira um caráter ainda mais importante: Restaurar o prestígio dos Black e tornar-se o evento mais monumental do ano, para apagar a lembrança do que fora o escândalo. Imaginou que Bellatrix estava programando algo grandioso.
- Tem certeza de que está se sentindo bem, mamãe? Eu estava preocupada!
- Estou nostálgica com a partida da sua irmã, Cissy. – Admitiu, um sorrisinho culpado no canto dos lábios. - É o drama do ninho vazio! Chega para todas nós em algum momento.
- Eu ainda vou estar aqui, mamãe. – Esticou uma das mãos, enfiando-a no meio das da mãe, para que ela a segurasse
- É o que me conforta, meu anjo. – Beijou seus cabelos, envolvendo-a em seus braços.
- Uau, que bela cena de amor materno! Meus olhos estão úmidos de tanta comoção! – Com um timbre irônico e agudo, Bellatrix anunciou sua entrada no quarto.
- Não seja desagradável, Bella. – Druella a repreendeu. – A família do s...
- A família do seu noivo não irá apreciá-la assim. Eu sei, mamãe. Eu já ouvi nas primeiras mil vezes em que você disse. E sabe o quê? Acho que é exatamente por ser tão desagradável que eles irão me adorar!
- Bellatrix! – A repreendeu, com os olhos arregalados.
- Estou brincando, mamãe! Só brincando... – Segurando uma das colunas do dossel, a morena traçou uma volta ao redor do próprio eixo. – Eu vim aqui para falar sobre a despedida de solteira com a princesinha.
- Ai!! Eu estou cheia de ideias, Bella! Tem um bar novo que todo mundo está faland...
- Tudo já está resolvido, Cissy. – Não permitiu que ela concluísse.
Narcissa estranhou aquela resposta. Sua irmã não era muito do tipo amigável. Mesmo sem que tivessem conversado sobre anteriormente, ela mantivera a certeza inabalável da responsabilidade que teria em organizar a singela comemoração. Exceto por Caroline Burke, e a mirrada Carrie não era exatamente uma flor que se cheirasse, Bella não tinha grandes amizades. Se não recaíra sobre ela a tarefa de preparar a despedida de solteira de sua irmã mais velha, que mãos tinham providenciado aquilo?
– Eu só vim pra te dizer que vamos sair às 21h. Esteja pronta! Elegância. – Os olhos escuros faiscavam, impositivos.
- Hoje???
- Ninguém vai querer uma noiva de ressaca, vai? Preciso parecer pudica uma vez na vida.
- Belllatrix!!! – Druella voltou a repreendê-la.
- Estou brincando, mamãe. Só brincando... – Repetiu, com um tom enfadonho.
- Divirtam-se, mas ajam como as damas que são! Seus tios estão chegando hoje a tempo do chá. Não quero que os julgamentos de Walburga sobre vocês se justifiquem.
- Que ótima notícia, mamãe! – Um sorriso mal-intencionado tomou conta do rosto da moça. – Nesse caso, vamos levar nosso priminho mais velho conosco. Participar vai ser ótimo pra ele!
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Três batidas secas na porta. Jogou a revista embaixo da cama, despedindo-se a contragosto da escultural morena em trajes de bombeira. Teria que dar atenção a ela depois. Levantou-se, abrindo o armário para buscar uma roupa limpa. Ainda estava subindo a cueca pelas coxas quando Órion empurrou a porta, colocando parte do tronco pra dentro.
- Filho? – Viu o embaraço no rosto do outro, enquanto ele terminava de se vestir. – Perdão, pensei que podia entrar.
- Entra! – Ele deu de ombros.
Com uma postura reticente, seu pai adentrou o cômodo, fechando a porta atrás de si. O constrangimento dele era evidente, mas Sirius não se incomodou em colocar nenhuma outra peça de roupa. A cueca preta ornava perfeitamente com os traços largos das duas novas tatuagens que tinha feito no ombro, pela manhã. Agora, o braço esquerdo estava completamente coberto pelos desenhos trouxas. Tinha sido sua represália à participação compulsória no estorvante jantar da noite anterior, enfiada como desjejum pela garganta de Walburga. Sirius caminhou de volta até a calça que tinha largado pelo chão, catando a carteira de cigarros.
- Você pode não...? – Apontou subjetivamente pro ar.
- Claro. – Revirou os olhos, irritado com a estúpida alergia do pai. – Senta! – Puxou os lençóis embolados pra fora da cama, lançando-os ao chão e abrindo espaço pra que Órion ocupasse.
Um semblante que misturava nojo e receio tomou conta do homem, mas sentou-se mesmo assim, levemente encolhido. Cruzou a perna daquele jeito refinado que ele fingia ser natural. Os olhos calmos iam julgando os pôsteres afixados na parede: Uma bela mistura de orgulho Grifinório, mulheres gostosas e motocicletas. Era um excelente trabalho de curadoria! Entretanto, Órion não demonstrou muita admiração. Sirius revirou a gaveta da mesinha de cabeceira, encontrando enfim, no fundo, o cortador de unha. Sentou-se na ponta da cama, virando de frente pro pai. Dobrou uma das pernas, trazendo o pé até a altura do colchão e se curvou sobre ele.
- Estou ouvindo... – Anunciou, esperando que o velho finalmente desembuchasse o que tinha vindo dizer.
- Eu estou preocupado, filho.
- Não deveria.
- O conflito que você e a sua mãe tiveram ontem...
- Não foi nada.
- Isso não é verdade.
- Foi mais do mesmo.
- O que aumenta minha preocupação, Sirius! As últimas vezes em que você esteve em casa, manteve-se no quarto o tempo inteiro! As saídas ocasionais que fez resultaram em discussões com Walburga... Com gritos cada vez mais estrondosos.
- Não sou eu quem grita.
- Não. Mas você sabe bem como sua mãe é geniosa... E a provoca. Eu gostaria de ver uma dinâmica diferente nos próximos dias. Mostre a todos o rapaz respeitável que você se tornou!
- Respeitável... – Sirius repetiu, num muxoxo.
Órion não pareceu se dar conta de seus resmungos. Seu pai tinha tanto apreço pelo próprio discurso que não escutava nada além da sua voz. Falava, falava e falava, alimentando o ego. Era tentador demais dizer o que queria sem que o homem sequer percebesse e Sirius tinha desenvolvido um ótimo senso de oportunidade, queixando-se nos momento ideais para passar incólume.
- Sem gritaria, sem portas batendo, sem afrontar sua mãe...
- Vai ser difícil. – Replicou, baixinho.
- ...Eu sei que você é muito maior que isso! Não há necessidade de discussões, mas se surgir algum desentendimento, conversaremos com calma, respeitosamente, até acordar o melhor caminho. Haja como um homem e deixe seu pai orgulhoso!
- Como se você ligasse. – Prosseguiu com seus murmúrios.
- O que disse?
Ele ergueu o rosto das próprias unhas. Merda! Não percebera que seu pai já terminara a palestra. Um segundinho de distração e ele tinha perdido o tempo correto. Agora, os olhos azulados estavam parados sobre ele, atentos debaixo das sobrancelhas franzidas.
- Você nunca se importou antes. – Admitiu, enfrentando-o com o olhar. - Por que esse papo agora?
- Não seja injusto, Sirius.
- Por que está se metendo no meio do fogo cruzado? Não foi ela que te mandou aqui.
- Eu sou o chefe dessa família.
- Brincando de Cygnus? – Ele gargalhou, acompanhando a sombra do orgulho ferido passar pelos olhos de seu pai.
- Pare de agir como um leviano, Sirius. – Retrucou, com a voz firme. – Eu vim aqui conversar com você. Não lhe ofendi ou impus nada, então não me trate como a um de seus colegas. Eu não sou seu igual.
Por trás da postura impecável, Órion estava mostrando as garrinhas. Sirius deu um sorriso, satisfeito em ter desestabilizado a perfeição do pai. Aquele homem, tido como modelo pela alta sociedade, era uma farsa. Mas as duas únicas pessoas que sabiam disso estavam naquele quarto. O personagem que Órion Black interpretara a vida inteira tinha sido criado e ensaiado nos mínimos detalhes para corresponder a todas as expectativas e garantir-lhe a vida invejável pela qual ansiava. Mas era óbvio para Sirius que o homem acabara frustrado, com uma família que não correspondia a imagem da qual sempre considerara ser merecedor. Recebera uma mulher transloucada, que perdia as estribeiras com facilidade e que lhe dera filhos incapazes de se tornarem os perfeitos sucessores com os quais ele tinha sonhado. O que irritava a Sirius ainda mais era ver que ele continuava a fingir a ensaiada perfeição, como se tudo estivesse na mais completa ordem dentro dos seus planos. Como se perder a mulher ideal pro seu ordinário primo nunca tivesse significado nada. Como se casar-se com a prima solteirona e ser pai de um degenerado e um puxa-saco sem personalidade não fosse um castigo pesado demais para alguém que sempre fora excelente em tudo. Como era capaz de dissimular a plenitude e arrastar a atuação por uma vida inteira?
- Se não quiser se tornar alguém cuja presença é um martírio para as outras pessoas, você precisa parar de se achar tão superior, filho. – Mexeu na aliança, empurrando-a ligeiramente pra cima e pra baixo no próprio dedo. - A popularidade de uma aparência rebelde não vai te manter querido pra sempre, porque ninguém aguenta tanta arrogância por muito tempo.
Hahaha. Órion estava lhe recriminando pela arrogância! Como se ela não fosse o principal pilar do orgulho da casa Black, ensinada desde o berço.
- Eu sei que o gostinho agridoce da insubordinação pode ser delicioso, mas o mundo não gira em torno de você, garoto! Nem do seu pau. – O tom áspero que assumira não condizia com a figura tranquila do homem. – Fazer o que der na telha, bebedeiras, sexo e cigarro... Isso pode parecer tudo agora. Mas a juventude não dura pra sempre e a vida não é sobre isso, Sirius. É sobre gente! Não gente desse tipo. – Meteu a mão por baixo da cama, puxando a revista com força e lançando-a, amassada, em cima do colchão. – Pessoas de verdade. Com sentimentos, desejos e opiniões. E pessoas, filho, não querem por perto alguém ensimesmado, que vive de ironias. Alguém que pensa que pode ditar como o mundo gira usando o próprio umbigo de régua.
O quarto estava quente e Sirius se sentia sufocado. Queria escancarar a janela, mas não se moveu. Apertava seguidamente o cortador de unha no ar, apenas para ouvir o metal ranger. Todo aquele blábláblá já tinha enchido seu saco. Depois de 16 anos, o primoroso Órion decidira finalmente se importar e agir como o perfeitamente adequado pai conselheiro. Seria comovente, se Sirius não farejasse que algo viria a seguir.
- Às vezes você vai precisar fazer e ouvir coisas que lhe parecem estúpidas e irrelevantes porque elas importam pras pessoas com quem você se importa. Pra mim, nada importa mais do que essa família. Foi isso que me trouxe aqui hoje. – Virou o pulso para si, encarando o enorme relógio de ouro por um instante. - Eu sei que há muito com o que você não concorda e lhe dou razão sobre os métodos que Walburga utiliza para tentar fazer com que mude de ideia. Porém a sua postura tem sido deplorável em todos os momentos!
- Você não tem como saber quem eu sou quando estou lá fora.
- Não. Você está certo! Todavia, eu te conheço bem mais do que você imagina, meu filho.
Uma frase de efeito! Sirius encarou o pai, tentando ler o rosto dele. Órion certamente estava achando que o discurso que ia proferindo lhe causaria alguma reflexão. Patético!
- Toda essa merda é por medo do que eu posso fazer na porra do casamento pra envergonhar vocês?
- Esse casamento pode parecer uma bobagem pra você, mas significa muito pra Bellatrix. E pra nossa família, sobretudo depois do que vivemos. – Soltou o ar, subitamente cansado daquela conversa. - Então, por favor, se não pode abandonar essa postura, ao menos finja uma maturidade que não tem, por três dias. É tudo que eu estou te pedindo! Três dias.
Seu pai se levantou, caminhando até a porta sem vacilar. Girou o pesado trinco lentamente, como se esperasse que ele fosse implorar por perdão e jurar ser um cachorrinho obediente a partir daquele dia. Pro inferno com toda a encenação!
- Eu não sou você, senhor magistral. – Retrucou, cheio de sarcasmo.
- Eu sei que não. – Respirou fundo de novo, enquanto virava para encará-lo. – Você é muito melhor do que eu, filho! Só não está deixando esse lado a mostra.
- Isso já é o melhor de mim.
- Ironia e violência? Eu sei que não... – Balançou a cabeça. - Você é extremamente leal, Sirius. ISSO é a melhor coisa que existe em você. – Voltou a abrir a porta, saindo do quarto, mas não sem antes acrescentar uma última ordem. - Então use um pouco dessa lealdade para com a sua família. Só por três dias, se é tudo o que você consegue.
Quem ele pensava que era? Maldito farsante! A ira borbulhava em seu peito. Atirou o cortador de unha contra a porta com toda a força que conseguiu reunir. Pro inferno todos eles e sua lealdade hipócrita. Não tinha hesitado um instante em virar as costas pra Andrômeda. Pro inferno! Que queimassem nas chamas, sem ninguém pra apagar. A garota vestida como bombeira o encarava um tanto desfigurada, na capa amassada da revista.
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Abriu e fechou mais uma vez o zíper da botinha branca, que cobria seus tornozelos. Regulus a encarava mal-humorado, segurando a capa do livro com uma força desnecessária. Cissy tampouco tinha concordado com a decisão de levar Sirius junto com elas, mas Bellatrix fora taxativa: A ida do primo para a sua despedida de solteira era irrevogável. Durante todo o dia, Bella se recusara a dizer-lhe o que tinha planejado, quem tinha sido responsável e o que diabos Sirius iria fazer lá. Insistir não tinha funcionado, nem com chantagem. Ela fora colocada pra fora do quarto da mais velha debaixo de insultos e um punhado de ameaças desveladas.
Narcissa esperava que isso não tivesse nenhuma relação com o que vira acontecer no provador do ateliê de Madame Raffinato. Às vésperas do casamento, arriscar dar início a um escândalo de largas proporções seria um erro absurdo até para as cabeças teimosas de Sirius e Bellatrix. Não era provável que sua irmã fosse tão imprudente! Era contraditório que a intuição de que esse não era o motivo deixasse Cissy ainda mais nervosa com a ideia de carregar o primo a tiracolo. Havia algo por trás daquilo, certamente. Bella não era de dar pontos sem nó.
O relógio em cima da parede se aproximava aos poucos da hora estabelecida e não havia sinal de sua irmã. Do primo, era comum esperar um certo atraso, não de Bellatrix. Respirou fundo, soltando o ar com força. Tia Walburga deu-lhe um olhar atravessado, tirando a atenção da conversa com sua mãe para avalá-la, assim que Narcissa se levantou do sofá. Encarou sua figura no espelho. Sobreposto à camisa branca de mangas bufantes, usava um vestido quadriculado de alças largas, em amarelo. Um laço fechava o colarinho de camisa, pendendo sobre o decote reto do vestido. Uma tiara de veludo negro ornava sua cabeça, afastando os cabelos soltos do rosto para realçar a maquiagem milimetricamente planejada para que não parecesse estar maquiada. A tia não teria o que dizer dela. Estava perfeitamente apropriada para a ocasião.
- Algum problema, Narcissa?
- Nenhum, titia. – Ofereceu à mulher um sorriso falso. - Pensei melhor e vou subir pra buscar um casaquinho. Sabe como é, a meia estação pode sempre ser traiçoeira!
Deu as costas para a sala o mais rápido que podia, sem que parecesse estar fugindo. Subiu as escadas com cuidado, quase não encostando os pés nos degraus. O silêncio seria seu maior aliado naquele momento. Como num presente do acaso, tio Órion deu início a um de seus recitais de piano. De certo, tentava impressionar a tio Alphard. Dessa vez, por uma razão desconhecida por todos eles, e talvez até pelo próprio, ele havia decidido não só comparecer, como também chegar com antecedência, sem avisar a ninguém.
Apesar do pequeno tumulto inicial causado pela sua súbita aparição quando todos estavam jantando, um quarto tinha sido providenciado, mais um lugar posto a mesa e os ânimos já tinham se acalmado. A reprovação de tia Walburga a tal comportamento passara a noite inteira estampada no rosto dela e os olhares de esguelha de Cygnus não escondiam seu desconforto. Sua mãe parecia satisfeitíssima em finalmente reunir toda a família e tio Órion fazia o que podia para disfarçar o clima pesado entre os irmãos. De fato, tio Alphard não era exatamente o orgulho da família Black. Contudo, era bom que estivesse ali, para reforçar a unidade familiar aos olhos externos. Até seu avô Pollux viria para a festa, abandonando pela primeira vez em muitos anos a casa de repouso de luxo em que escolhera viver, desde que enviuvara, na Riviera francesa!
Não foi preciso chegar ao segundo andar para ouvir os sussurros. Parou no último patamar da escada, escondendo-se atrás do corrimão. Para ouvir tudo que queria, se aproveitaria das sombras. Bellatrix estava de costas para ela, os cabelos negros cascateando até a cintura. Usava uma saia curtinha de couro e meia-calça fumê. Sirius também vestia couro, na jaqueta preta sobre o jeans escuro, que tinha combinado com aqueles detestáveis tênis trouxas surrados. Forçou os ouvidos, para compreender o que discutiam.
- Você me deve isso.
- Depois de todos esses anos, eu é que te devo, Bella?
Sua irmã soltou o ar pela boca ruidosamente e Cissy tinha absoluta certeza de que ela revirara os olhos. Os corpos dos dois estavam muito próximos, o máximo que era possível sem que se tocassem. Dava pra compreender de longe que se conheciam bem, pela forma natural como os movimentos de um respondiam aos do outro durante a conversa. A desembaraço com que seus corpos harmonizam deixava bem claro o quanto se sentiam à vontade um com o outro.
- Mimado filho da puta! – Xingou com gosto, desviando ligeiramente o olhar. – Eu já te disse que vai ser bom pra você.
- Eu não acho que o nosso entendimento do que é bom seja o mesmo.
- Vai pra porra, Sirius! Eu estou te dando de bandeja a oportunidade de ficar longe da sua mãe por uma noite inteira, beber, fumar e até foder alguém, por minha conta.
- Eu não quero foder alguém. – Ele apertou os olhos, como se olhasse mais fundo nos de Bellatrix.
Ele não estava sugerindo o que Cissy tinha entendido, estava? QUE NOJO! Uma ânsia de vômito sincera lhe subiu pela garganta. Por que ela ainda estava se submetendo a vergonha de escutar aquilo? A vontade de acompanhar a fofoca se desenrolando já não era tão grande assim. Se Sirius e Bellatrix soubessem a terrível azia que aquelas frases estavam lhe causando, parariam imediatamente.
- Nós podemos discutir isso depois. – A moça perdera um pouco do tom ríspido, cedendo ao primo.
- Por que nós não discutimos agora?
Sirius pôs a mão em volta da bunda da morena, puxando-a em direção ao seu corpo. NÃO, NÃO, NÃO! QUE NOJO!!!!! Precisa interromper aquela maluquice. Imediatamente.
- Eu deveria me trocar e pôr algo de couro também? É algum tipo de coisa de família? – Falou alto, enquanto subia o último lance de escada, deixando bem claro aos dois de que estava ali.
Bellatrix se afastou rapidamente do garoto, de forma tão discreta, que parecia nunca ter estado junto dele como tinha estado um instante antes. Sirius passou a mão pelo cabelo escuro, certamente dissimulando a raiva por ela tê-los interrompido. A linguagem corporal dos dois se transfigurara completamente quando ela atingiu o segundo andar. Eram novamente aqueles que ela conhecia, o que fingiam ser na frente do restante da família: Primos que não tinha uma relação muito harmoniosa, cultivando um saudável desprezo mútuo.
- Você já está pronta?
- Há pelo menos meia hora... – Encostou o quadril no corrimão, cruzando os braços sobre o peito.
- Ótimo. Vamos então! – Bellatrix abriu uma bolsinha pequena que levava pendurada no ombro, conferindo os pertences que tinha enfiado ali.
- A menos que você queira ouvir as histórias do tio Alphard por duas horas seguidas antes de ir pra cama...
- O velho é incrível! – Sirius abriu um sorriso recheado de admiração.
- Ele é completamente biruta!
- Eu não esperava que você conseguisse compreender a genialidade dele. – Franziu os lábios, uma expressão de aversão no rosto.
- Chega, crianças. Vamos descer! – Bella sacou a varinha de dentro da bolsa, ao mesmo tempo em que se encaminhava até as escadas. – Quero que se despeçam dos papais, para que eles vejam que estou levando os dois tão inteiros quando devolverei mais tarde.
---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
A fumaça seguiu caminho por suas narinas. Não havia harmonia entre a música estrondando e o estilo neoclássico da mansão dos Dolohov. Antonin vinha utilizando bem a casa, aproveitando-se da bucólica temporada que seus pais estavam passando no campo. Oferecera solicitamente o local para que a festa fosse realizada, sem pestanejar. O pálido herdeiro bebia uma dose dupla de uísque de fogo, ouvindo o falatório de Foster Gibbon, enquanto devorava Bellatrix com os olhos. Um observador iludido poderia julgar que se aproveitava da ausência de seu noivo para fazê-lo sem disfarçar. A verdade é que ele não hesitaria em fazer o mesmo na presença de Rodolphus. Nenhum deles hesitaria. Ela já havia entendido que não havia deferência para com uma mulher. Mas, não respeitavam nem mesmo a um de seus iguais. Escrotos!
Bella tragou outra vez, cruzando o ambiente para buscar uma bebida. Exagerou no rebolado, enquanto passava exatamente em frente ao anfitrião. Gibbon a acompanhou com os olhos também. Nunca teve dúvidas da mulher atraente que era. Usara isso ao seu favor desde a mais tenra adolescência e sempre considerara uma vantagem natural. Por isso, defrontar-se com uma situação em que aquilo lhe impedia de chegar aonde queria tinha sido uma das maiores frustrações que já enfrentara. A bruxa admirável e poderosa que era não significava nada em um lugar onde sua bunda era vista como seu maior trunfo.
Dividia a raiva que lhe assolava em duas partes. A primeira delas usualmente se transformava em provocações, como aquela, exacerbando propositalmente sua sensualidade. Deixava a todos eles ensandecidos pelo desejo, sem que jamais fossem conseguir tocá-la. A outra parte se traduzia na busca incessante por provar-se melhor, mostrar a que realmente viera e o que era capaz de fazer. Ela era muito superior a todos eles! E sabia bem disso. Assim, se esforçava como uma desgraçada, para provar que merecia o lugar que almejava e que seria seu por direito. Esta noite, Bellatrix daria um passo certeiro nessa direção.
O casamento com Rodolphus seria outro deles, pensado estrategicamente para alçá-la. Não que dinheiro e influência na sociedade bruxa tivessem perdido o significado para ela. Certamente viriam a calhar! Haviam servido também para calar a boca de seus pais, pondo fim a pressão ridícula para que ela firmasse um noivado. Todavia, o prestígio da família Lestrange é que lhe enchera os olhos. Na juventude, muito antes de se tornar pai, seu futuro sogro havia feito a afortunada escolha de construir sólidas amizades em Hogwarts. Décadas antes de Bellatrix Black sequer existir, o destino daquele homem fora golpeado pela sorte e ele se transformara num dos felizardos a fazer parte do privilegiado círculo íntimo Dele.
Bella sentiu a corriqueira fisgada em seu ventre, que acompanhava todas as vezes em que pensava Nele. Evitava evocar seu nome, porque as sensações que tomavam seu corpo eram fortes demais. Pronunciá-lo, então? Nunca! O fato é que todos eles evitam, por causa do poder que aquele nome carregava. Somente os mais íntimos o faziam, em momentos reservados, porque Ele mesmo preferia assim. Chamavam-no simplesmente de Lorde. Um título que Ele atribuíra a si próprio, e que a moça julgava pequeno diante da magnitude daquele homem.
Estivera com Ele, frente a frente, poucas vezes. Tempo o suficiente para ser arrebatada por sua presença inquietante. Ele era magnânimo! Não havia espaço para dúvidas, receios ou qualquer tipo de fraqueza. Um homem assim, incapaz de sucumbir, é que Bellatrix havia idealizado a vida inteira.
Quando punha os olhos sobre ela, parecia ler seu espírito, sem nenhuma dificuldade. Seu olhar era preenchido pelo desejo. Mas não um desejo sujo e vil como o dos outros, animais movidos pura e simplesmente pelo instinto sexual. Aquelas pupilas anunciavam algo muito maior! A busca pelo soberania é que queimava no fundo das írises negras. Ele ia conseguir o que queria, destruindo quem se metesse em seu caminho, e tinha plena consciência de que apenas o tempo o separava daquilo que estava destinado a cumprir. Desde que estivera em sua presença pela primeira vez, Bellatrix vibrava na mesma frequência. Todo o resto subitamente lhe parecera ignóbil, quando encontrara o que havia passado a vida buscando. Estava atada a Ele, porque escolhera aquilo para si. E tinha a ávida necessidade de enroscar-se mais e mais, até os últimos fios de seus cabelos, àquele ser tão avassalador.
Seu futuro cunhado entrou na sala, fazendo um sutil sinal com a cabeça. Tudo estava pronto! Bellatrix respondeu com um sorriso, embora estivesse sentindo uma forte vertigem. Só teria uma chance para fazer com que os comentários chegassem aos ouvidos Dele. Rasbastan ergueu as sobrancelhas levemente inquieto, acompanhando a trajetória dela até a porta. Bella parou já perto do rapaz, refreando-se por um instante. Numa roda de conversa, Narcissa bebericava, com classe, um martini. Deveria arriscar-se assim? Apesar de tudo, ainda se preocupava com a família em cujo seio tinha sido criada. Além disso, ter a presença da irmã como apoio tornaria tudo um pouco mais fácil. Desviou-se. Esperava não se arrepender dessa decisão.
- Vem comigo! – Ordenou, esticando a mão para segurar o braço da irmã mais nova.
- Ai, Bella! O que foi? – Parecia irritada por ser arrancada da presença irrelevante de um bando de adolescentes. – Com licença! – Acrescentou, polida, abandonando o copo para segui-la.
- Quero que me acompanhe. – Não deu mais explicações, ignorando a expressão confusa da loira que se replicava no rosto de Sirius, ao fundo. O garoto iria requerer mais trabalho. Por enquanto, Bellatrix já estava satisfeita em tê-lo conseguido expor a companhias mais substanciosas.
Apagou o cigarro, enfiando a piteira num dos bolsos. Entrelaçando os dedos aos da irmã, desceu as escadas até o porão, atrás de um taciturno Rasbastan. Apesar de frágil, Narcissa não era burra. Bella não tinha dúvidas de que a mente acelerada da loira já tinha começado a trabalhar as conexões e compreendido com quem ela andava metida. Aquela despedida de solteira apenas corroborava com os boatos. Carregando-a junto de si, Bellatrix dava um voto de confiança a irmãzinha. Desejava que ela compreendesse a verdadeira profundidade do que iriam enfrentar, para que a outra pudesse se preparar. Sair de Hogwarts naquela conjuntura, especialmente sob o panorama familiar que havia se desenhado, significaria um monte de decisões para sua irmã e era melhor que Cissy fizesse as escolhas certas. Sentia-se responsável por não permitir que cometesse o mesmo erro que a outra. Narcissa não! A caçula teria que ser impecável e Bellatrix faria o que estivesse ao seu alcance para garantir isso.
O porão estava úmido. O cheiro avinagrado do ambiente queimou suas narinas: Excrementos, suor e desespero. Os rostos eram encobertos apenas pela meia-luz, sem que ninguém se preocupasse em esconder-se completamente. Estavam em casa! As risadas soavam tímidas pelos cantos. Narcissa apertou sua mão com firmeza, certamente assustada. Fez bem em não ousar abrir a boca, uma boneca quietinha. Boa menina! Como bolas de luz, partindo de todos os lados, as azarações cortavam a escuridão e atingiam o corpo encolhido. Cordas prendiam os pulsos, mantendo o garoto quieto.
- Para a nossa estimada nubente, com o cumprimento de seus padrinhos. – Num timbre grosso, algum dos homens anunciou, atraindo uma corrente de risos que varreu o cômodo. – Divirta-se, querida!
Forçou uma risadinha aguda, largando a mão da irmã e deixando-a estagnada perto da entrada. O silêncio súbito a engoliu, unindo-se a escuridão para apagar a realidade externa. Seu coração retumbava no peito. Bellatrix estreitou a varinha com os dedos, afagando os contornos da madeira. A cada passo dado ao fundo do cômodo, acumulavam-se em sua nuca os arrepios de ansiedade.
- Bonitinho... – Murmurou, agachando-se e apertando as bochechas do prisioneiro com a mão livre.
Pressionou as unhas compridas sobre a carne gorda, rasgando a pele fina como pêssego. O menino choramingou. Bella soltou a cabeça dele com força contra o chão. Levantou-se, caminhando em passos lentos ao redor do garoto, que voltara a se encolher. Seus dedos passeavam pela varinha, avaliando suas opções. Podia ser rápida e certeira, impiedosa. Ou poderia aproveitar cada instante para fazer um show. Não vacilou. Construía naquele minuto o respeito que passaria a impor a partir de então.
- Quanta deselegância, rapazes! Não sabem receber um hóspede?
Desenhou uma espiral, dissolvendo as cordas e libertando os pulsos do outro. Chutou-o na altura do quadril, para que virasse a cabeça em sua direção. Paul Abott devia estar perto dos 13 anos. O rosto ainda conservava o aspecto infantil. Os dentes enormes da família eram a única coisa que o ligava aos Abott. Bellatrix voltou a se aproximar dele.
- Calma! Calma, cordeirinho! – Ordenou, amansando a voz.
O menino prendeu o choro, a respiração entrecortada. Bellatrix sorriu, acariciando o rosto pueril. Escorregou a mão pelo braço nu dele, tateando. Afiou a ponta da unha no chão de pedra, antes de aproximá-la da veia saltada nas costas da mão do garoto. Embora o sangue de uma das famílias sagradas corresse em suas veias, o menino era inútil. Um completo desperdício! Afundou a unha na veia com força, rasgando-a. Ele guinchou. O sangue escorreu aos poucos. Nada! Não havia um pingo de mágica naquele fluido. Paul era um aborto.
- Nos diga, docinho, como é ser uma aberração? – Segurou o rosto do garoto novamente, apertando com mais força. – Você gosta de fingir que não há problema, hein? Não tem vergonha de desonrar sua família assim? – Um sonoro tapa encheu o porão. – Como ousa olhar uma bruxa nos olhos?
Estava de pé em um átimo. Ergueu a varinha, respirando ofegante. Gostou do que via. Medo. Medo puro nos olhos do garoto a cada vez que ela se aproximava. E Respeito. O respeito que ela merecia como a bruxa imponente que era. Poderosa! O menino, fraco e desprezível, temia seu poder. Era assim, de baixo para cima, que uma monstruosidade como aquela deveria olhar pra ela, uma bruxa puro-sangue. Era absurdo que outros se atrevessem a olhá-los como iguais! Como bruxos aceitavam que bestas vivessem no meio deles? Deixavam que aquilo acontecesse e até achavam normal! Como uma boa moça nascida em uma nobre família aceitava carregar uma criatura similar àquela em seu ventre? Abortos, trouxas, mestiços. Aberrações que precisavam ser expurgadas! Como era possível que aquilo acontecesse tão perto dela? Bellatrix tremia de ódio e angústia. Disse a palavra antes que percebesse.
- Crucio!
O raio escarlate despontou de sua varinha, pondo fim a curiosidade que acumulara nos últimos meses. Então essa era a sensação... O formigamento se iniciou em seus dedos. Logo, subiu por seu braço, espalhando-se por sobre seus seios. Bellatrix sentiu os mamilos se eriçarem embaixo da blusa fina que vestia. Esquadrinhou o ambiente escuro, procurando qualquer movimento. Todavia, os outros permaneciam quietos. Cessou o feitiço, o cenho franzido pela dúvida. A impressão tinha sido forte! Tinha certeza de que estava sóbria. Bem sóbria. Então, o que diabos era aquilo?
- Você é o primeiro... Dê um jeito de levar aos outros o recado: Vão se arrepender de ter nascido! – Ergueu a varinha mais uma vez. – Crucio!
Assim que o feitiço atingiu o garoto, Bella sentiu a retomada do calor em seu corpo, expandindo-se por dentro dela. A agradável tensão tomava conta de seu baixo-ventre. Sua pele estava arrepiada, os choques assolando seu corpo. Se concentrou, tentando não perder a noção da realidade. Mantinha as pernas bem firmadas ao chão, atenta para não permitir que seu rosto se contorcesse ou um gemido lhe escapasse pela garganta. Respirava com dificuldade, o prazer se apoderando de seu corpo. Uma gargalhada foi tomando forma, deixando sua boca e ganhando o espaço vazio do porão. A sensação era tão imersiva que Bellatrix jamais se daria conta dos cabelos loiros tremulando em fuga pelas escadas. Seus joelhos estremeciam suavemente e ela jogou a cabeça pra trás, pouco antes de encerrar o feitiço para dar lugar a outro.
- Avada Kedavra!
---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Gente chata, gananciosa e limitada. Estava rodeado deles, naquela sexta-feira. Harriet Burke ofereceu a taça a ele, levando-a até seus lábios e Sirius tomou um gole. Enfiou o cigarro de volta na boca, colocando a mão na cintura dela e mexendo os quadris conforme o ritmo da música. A garota não era de todo má... Até que era bem gostosinha! Já que não tinha nada de mais interessante a fazer, que mal havia em dançar um pouco e trocar uns beijos com ela? Talvez isso até ajudasse a tornar a festa do casamento mais palatável, dali a dois dias. Os outros amigos de suas primas é que não ajudariam. Merlin, como era bom ser da Grifinória! Autenticidade!!! Aquele bando de riquinhos engessados era completamente maçante.
- Vou pegar mais um desses! – A moça anunciou, erguendo a taça, mas não sem antes tomar-lhe um outro beijo.
Sirius piscou pra ela, com a atenção já posta em outro lugar. Apertou os olhos, acompanhando o desenrolar da cena. A linguagem corporal de Euphemia Rowle não permitiria que a garota mentisse. Com os braços, estava visivelmente incomodada. Um dos rapazes a tinha encurralado próximo a mesa de petiscos, cochichando um monte de baboseira que não era inteligível a distância que Sirius se encontrava dos dois. Ela colocou as mãos à frente do corpo, impedindo ligeiramente a aproximação do garoto. O idiota insistiu, segurando-a pelos antebraços e mantendo-a perto de si. Sirius cruzou a sala em passos largos, para dar vazão a sua irritação, mas silenciosos, para não chamar atenção. A cólera já ia consumindo seus primeiros fios de paciência.
- Não dá, Henry. Eu não quero rolo com ninguém, ‘tá? – Entreouviu o que Euphemia murmurava.
- Qual é, Effie? Só mais uma vez nem vai fazer diferença...
- Hoje não.
- Por que não? – Passou a mão nas tranças dela, colocando um par delas atrás da orelha da moça. – É só pra gente se divertir!
A raiva travava a mandíbula de Sirius. Se os olhos de Euphemia pudessem gritar, estariam berrando a plenos pulmões. Era óbvio que ela queria distância do menino. Inclusive, já dissera isso. Por que diabos o idiota não dava no pé? Até para um energúmeno como aquele já tinha ficado bem claro que ela não estava a fim. Contudo, ele continuava acossando a moça. Seus punhos estavam cerrados junto ao corpo, comichando em ritmo crescente. Não ia aguentar ouvir muito mais sem intervir. Era melhor que aquela merda terminasse logo, antes que ele estourasse. Bella ia querer matá-lo se começasse uma briga em sua despedida de solteira.
- Não, Henry. Chega! Por favor!
- Você não precisa bancar a difícil comigo... – As mãos imundas caíram como garras sobre os quadris de Euphemia, puxando-a em sua direção, com a bocarra pronta pra apoderar-se da moça.
- Ei, cara! – Segurando o ombro dele com força, Sirius usou um tom firme para chamá-lo. – Você não ouviu o que a garota falou?
- Que é, caralho? Não se mete! – Henry puxou o ombro, desvencilhando-se.
- Ela disse que não. N-Ã-O. – Elevou a voz, propositalmente. - Ouviu agora? Dá o fora!
- Dá o fora você, porra! ‘Tá achando que é quem? Um corajosinho, salvador da pátria? Não fode tentando bancar o herói, Grifinória! – A última palavra deslizou encapsulada pelo nojo.
Ele nem perdeu tempo buscando a varinha no bolso. A mão foi mais rápida, se armando num instante e plantando um soco no meio da cara sebosa de Henry Crabbe. O brutamontes cambaleou alguns centímetros para longe, segurando o nariz. Sirius limpou a mão na calça.
- Vaza, caralho! Deixa ela em paz! – Avisou, empunhando a varinha por precaução.
A festa inteira parecia estar ao redor deles naquele instante. Harriet estava completamente desorientada, sem saber o que fazer com as bebidas que segurava. Dois outros garotos tinham vindo ao socorro de Henry, ajudando-o a se recompor. Virou-se para perguntar a Euphemia se estava tudo bem. Antes que conseguisse formular a frase, Narcissa surgiu vinda do nada, tomando sua frente.
- Vamos embora, Sirius! – Ordenou, com a voz trêmula.
- O quê? Por quê?
- Eu vou embora agora e você VAI COMIGO! – Esganiçou, os olhos saltados nas órbitas. Era o que tinham combinado com os pais: Como ele ainda não tinha idade para aparatar, teria que voltar pra casa na hora em que a prima caçula quisesse.
- Tudo bem...– Soltou o ar e virando-se para uma temerosa Euphemia, acrescentou: - Você quer vir conosco?
- Acho que sim.
- Ótimo! – Cissy pareceu finalmente se dar conta do que acontecia ao redor, enxergando a amiga. - Vamos!
Saíram da sala em disparada, sem se despedir de ninguém. Narcissa ia na frente, quase correndo, cega e muda. Ele e Euphemia trocaram olhares assustados. Sirius não virou o rosto a tempo de ver o afetado Lucius Malfoy entrando e chocou-se com ele. Pediu desculpas atravessadas, sem nem parar. Não sabia o que tinha acontecido com a prima, mas tinha sido o suficiente para deixá-la completamente fora de si. Narcissa Black jamais sairia dessa forma de uma festa em sã consciência. Não sem antes distribuir mil beijinhos pelo ar para cada um dos conhecidos. A falsidade era um pré-requisito para assegurar sua boa noite de sono. Cruzaram o jardim em um tempo ínfimo, batendo o portão atrás de si. Os saltos dos sapatos da loira pareciam moles, entortando para os lados a cada pisada descuidada que ela dava. Ele segurou a prima pelo braço, para que parasse.
- Espera, Narcissa! – Parou, ofegando. – Que porra é essa? O que é que aconteceu? Além de eu ter socado a cara do Crabbe... – Adicionou a última parte quase num sussurro.
- Nada.
- Tinha algum duende fazendo strip-tease lá embaixo? – Complementou a piada com uma risada zombeteira, numa tentativa de aliviar a tensão.
Os olhos claros dela estavam aguados. Correu as pupilas de Euphemia para ele, repetindo o caminho algumas vezes. A escuridão da noite envolvia as figuras dos três e uma brisa fria soprava. Cissy estava agitada, considerando alguma coisa antes de falar. Colocou as mãos sobre as costelas, com um semblante esquisito no rosto. Ainda que o silêncio tivesse durado pouco segundos, ele já estava inquieto. Que merda estava acontecendo? Sem aviso, a prima dobrou o corpo ao meio, colocando todo o conteúdo do estômago para fora bem aos seus pés.
- Porra, Cissy! Meus tênis!!
ELES TINHAM SIDO CAROS!!! Euphemia congelou no lugar, uma expressão de espanto desenhada em sua face. Parecia indagar a ele o que deveriam fazer. Como se ele soubesse! O corpo magro de Narcissa tremia, em soluços surdos. Em toda a vida, nunca vira a prima em um estágio tão frágil! Nem quando Andrômeda tinha ido embora. Recuou por um instante, observando a garota. Na escuridão da noite, parecia completamente indefesa. Teve que respirar fundo para criar coragem. Então, a envolveu em seus braços, trazendo para perto, meio sem jeito. Ela era ainda mais fina do que as irmãs. Esguia de cima a baixo, quase desaparecia dentro do abraço. Estava gelada como alguém morto. Encostou ligeiramente a cabeça em seu peito e Sirius sentiu as lágrimas molhando sua camisa.
- Ela estava... Ela... – Começou, engasgando-se. Ela? Assim, tão sem esclarecimentos, só podia ser Bellatrix.
- O que, Cissy?
- Ela estava...Tortu... Torturando. Pessoas.
- Puta que pariu! – Euphemia deixou escapar, atônita, e Sirius não podia concordar mais.
--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
O breu no corredor fez com que seu coração disparasse. A vividez da cena em sua memória a mantinha em constante estado de alerta. Os clarões vermelhos ainda reluziam em suas pupilas. Precisava dormir. Refugiar-se num mundo em que os sentidos eram difusos, anestesiados pela liquidez. Embora fosse possível que nem ali tivesse paz. O temor poderia persegui-la até os seus pesadelos.
- Eu fico aqui. – Pararam junto a segunda porta, o quarto em que Sirius era quase sempre acomodado. – Você está bem?
- Não. – Admitiu, sentindo os olhos inchados pelas lágrimas. – Mas vou ficar.
- A gente pode conversar um pouco mais, se você quiser... Eu posso... Esperar você dormir.
- Não se preocupa, Sirius! – Apertou o ombro dele, balançando ligeiramente o corpo do garoto. - Eu vou ficar bem.
- Tem certeza? – O moreno estava com uma das sobrancelhas erguidas. Cissy olhou para os tênis ainda meio manchados pelo vômito. Os elfos certamente fariam um trabalho de limpeza melhor do que ela, no dia seguinte. Manchas difíceis não eram exatamente sua especialidade dentre os feitiços domésticos. - Amanhã quando você acordar eu vou ter voltado a ser o seu primo babaca.
- Tenho. – Riu um pouco da expressão isenta que tomara o rosto dele. – Obrigada, ‘tá?
- Boa noite, Cissy!
- Boa noite, Sirius.
Acompanhou enquanto o primo fechava a porta atrás de si, perdendo-se na amplitude do quarto. Forçou os pés a seguirem, um passo depois do outro. A vastidão do corredor parecia se ampliar, alongando-se propositalmente para afastá-la do conforto de seus lençóis. Arrancou os saltos, apoiando finalmente os pés doloridos no chão. Pisando com mais firmeza, conseguia remar contra a maré, saindo lentamente da areia movediça em que sentia estar presa. Ainda que suas pernas pesassem toneladas, conseguiu se arrastar em sentido ao final do corredor, com os olhos fechados e cantarolando baixinho, para impedir que a escuridão se transformasse nas imagens que a assombravam.
Encostou o corpo na porta, escorregando até o chão. Precisava descansar só um pouquinho, antes de rastejar pelos últimos metros até a cama. Só um pouquinho... Seu crânio latejava, implorando por algo que tirasse seu cérebro daquele ciclo de angústia. Seu estômago vazio ardia e o gosto repulsivo do suco gástrico dominava sua boca. Sentia como se uma bola pressionasse sua garganta, tentando sufocá-la. Bellatrix e Andrômeda sempre tinham guiado seus caminhos. Mesmo que na obscuridade da inconsciência, tinha se inspirado nas irmãs durante toda a vida. Desenvolvera-se sob a sombra das mais velhas, tendo o crescimento delas como exemplo. Seus galhos haviam adolescido pendendo um pouco para o lado de cada uma, florescendo num delicado equilíbrio. O êxodo da doce Andrômeda destruíra a frágil estabilidade do trio, tornando amarga sua relação com Bellatrix.
Como as últimas folhas de outono sendo levadas por uma forte rajada de vento, sua admiração pelas duas tinha sido extirpada de uma vez, num duro golpe. Defronte a realidade de não mais tê-las como modelo, sentia-se podada. Estar em casa não lhe trouxera a segurança que pensou que traria. O vazio consumia seu interior mesmo ali, onde um dia fora seu refúgio. Sem as presenças sólidas de suas irmãs, a mansão tornara-se oca, assim como ela. Levantou-se de uma vez, enchendo furiosamente os pulmões de ar e escancarando as pálpebras. Aguardando que a vertigem passasse, segurou-se contra a porta. Balançou a cabeça, para limpar a vista e fazer desaparecer a nesga de luz que se insinuava na borda de seus olhos. Não era uma impressão. Não importava o quanto ela cerasse os olhos e voltasse a abri-los, a tímida claridade permanecia ali. Ainda meio tonta, atravessou até o outro lado e entrou no cômodo iluminado. Era o quarto de Andrômeda.
Uma pontada arrebatou seu coração, causando-lhe uma dor atroz. A luz que enxergara vinha do velho abajur. Sob a iluminação tremulada, os tons avermelhados da decoração se sobressaiam. Tudo parecia exatamente no lugar e isso causava ainda mais aperto em seu peito. Sentada no chão, como ela a pouco, a mulher estava desfigurada pelo choro. O corpo delgado encurvava-se sobre si mesmo, numa posição desconfortável, as costas ligeiramente apoiadas numa das colunas da cama. Espalhadas no chão, cartas e fotografias deixadas para trás pela antiga dona do quarto. Os cabelos dourados estavam amassados e cobriam parte do rosto, sendo segurados com violência pelos dedos alongados. A boca se alargava numa enorme fenda disforme, para dar vazão aos gemidos angustiados, quase sem voz. Alternavam-se os uivos e a murmuração de lamurias desconexas. As alças finas da camisola de seda caiam-lhe dos ombros, deixando parte dos seios à mostra. As costelas anunciavam-se firmemente por baixo da pele, abrindo-se para receber o ar que inspirava em goles, denotando a magreza excessiva que se apoderara dela nos últimos meses. Narcissa se culpou pela cegueira que não tinha lhe permitido perceber o que ela andara escondendo por baixo dos vestidos de babados.
De alguma forma, o pesadelo da noite anterior se tornara real. Naquela alcova vazia da presença real de Andrômeda, sua mãe pranteava o pedaço que lhe fora extraído. Escondida pelos sussurros misteriosos da madrugada, Druella sofria a dor pela perda de sua filha exilada. Balançava o corpo para a frente e para trás, como se ninasse uma criança. Acordada sozinha, naquele horário em que o mundo não pertencia nem aos vivos e nem aos que já haviam partido, era a cria morta que a mulher velava. Caminhou com cuidado até ela, ajoelhando-se ao seu lado. Levantou delicadamente as alças da camisola para recompô-la.
- Não, não... NÃO! – Num soluço agudo, embebeu-se na própria angústia. – Me deixem ficar. Me deixem ficar!
- Sou só eu, mamãe. – Narcissa avisou com a voz afetuosa. Envolveu os ombros da mãe num abraço, trazendo-a para o seu peito, repetindo o gesto com que Sirius havia acolhido a ela.
- Eu já vou. É só mais um pouco. Só mais um pouco. Só mais um pouco! Me deixe ficar com ela só mais um pouco.
- Ela não está aqui, mamãe. – Prendeu na garganta o choro que tentava rasgar passagem.
- NÃO! Ela é minha filha. Não vai a lugar nenhum! MINHA FILHA! – Druella gritou, tentando se desvencilhar do abraço.
- Shhhh! – No início daquele corredor, os quartos estavam cheios de hóspedes que não deviam em nenhuma hipótese ser despertados e dar de cara com aquela cena. Acariciou a pele dela para acalmá-la. – Eu sei... Eu sei. Shhhh!
- Não para. Nunca para de doer, Cissy. - Exclamou baixinho, num súbito instante de consciência. - E dói, dói, dói! Até que vocês nascessem, nunca pararam de me avisar o quanto doía dar à luz. Mas ninguém fez questão de me dizer o quão doloroso era o revés do parto! – Soluçou, tremendo dentro dos braços de Narcissa. - Esse vazio, essa saudade... Esse quarto sem ninguém...
- Eu também sinto falta dela, mamãe. – Permitiu-se admitir em voz alta, liberando o choro mesmo com a promessa que havia feito a James.
- Não poder estar quando ela precisa de mim... ELA PRECISA DE MIM! Grávida, grávida e na rua. No frio, na fome. GRÁVIDA! – A última palavra saiu num golpe, dilacerando a calmaria da noite.
Num minuto, ela já havia perdido a mãe para os demônios que a assolavam. A mulher voltara ao choro convulsivo, o torso tremulando enquanto a boca murmurava a perda de Andrômeda. A dor latejava no peito vazio das duas, como uma fisgada relembrando que o lugar ocupado por ela estaria sempre vazio. Para Druella, era necessário abafar a saudade ali, respirando e absorvendo cada pedaço do quarto da filha que morrera.
- Eu não vou esquecer. Eu não posso esquecer, Narcissa. EU NÃO VOU ESQUECER! – Gritou para retumbar as paredes daquela mansão que aprisionava seus sentimentos.
- Shhh! Tudo bem. Você não precisa! Tudo bem, mamãe...
Encostou-se na cama, aconchegando o corpo da mãe contra o seu. Os corações das duas batiam sem consenso. Acolheu a dor da mulher, beijando-lhe a testa com os lábios frios. Agora chegara sua vez de protegê-la em seus braços, como ela tinha feito por tantos anos. As lágrimas corriam compridas e quentes pelo rosto das duas. Os cabelos loiros se misturavam, num simbiose que remetia ao útero. Nas faces de traços tão similares, a saudade escorriam em forma de pranto, pela metade que lhes fora arrancada.
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------