
De volta ao escuro
O singelo canto dos passarinhos soava do lado de fora. Narcissa se deixou aproveitar um pouco mais da tépida maciez da cama, aconchegada embaixo dos lençóis. Sorriu, ainda mantendo as pálpebras fechadas. Por baixo dos cílios, uma fina faixa de luz lhe informava que o dia já tinha clareado. Mas ainda era cedo. Ela sabia, porque as colegas ressonavam em seus leitos. Os sons calmos da manhã preenchiam seu peito de uma placidez tremenda.
Seu ventre tilintava, como se pequeninas bolhas de sabão fossem estourando pouco a pouco, mas não sem antes faiscar multicoloridas sob a luz. Era inevitável alargar o sorriso, comprazendo-se com a dádiva de estar ali, viva. Em sua mente, memórias dos últimos meses se sucediam. Os olhos castanhos firmes, que desenhavam a timidez em seu rosto, levando-a a baixar as próprias pálpebras. O sorriso largo, repetindo-se tantas vezes que acabava por ser esquecido ali, sendo sustentado quase sem nem precisar de um motivo. O toque carinhoso dos dedos, demorando-se em afagar seu rosto. Este era o perfeito retrato do homem a quem seu coração passara a pertencer.
James Potter tinha sido uma surpresa. Ria sozinha, lembrando do primeiro beijo que ele lhe roubara, na sala de troféus. Tão desajeitado! Contudo, podia reconhecer agora que escondida bem no fundo, já havia uma nuance de afeto entre os dois. O tempo mostrara a beleza que existia ali. Residia, sobretudo, na sinceridade da troca. Não havia qualquer interesse que não fosse a pura vontade de estarem juntos, de conhecerem ao outro. E para ela, na possibilidade de reconhecer a si mesma, num momento em que todos os eixos tinham se deformado um tanto.
Respirou fundo, para que o ar corresse livre pelo seu corpo. A brandura do morno cobertor embrulhando sua pele era um deleite. A calidez da cama naquela manhã era docemente confortável, como estar com ele. Tantas vezes seu coração havia disparado pela presença do garoto. Tivera medo. Quanto medo! Como gerar em seu âmago a coragem para se enamorar? Mas ao vê-lo, todas as dúvidas subitamente desapareciam, de algum jeito. E então estava um passo mais perto do amor.
Pouco a pouco, ele entrou em seu coração. Cada momento partilhado ia depositando pequenas porções de alegria em seu interior. Acordava no meio da noite, sentindo uma euforia inexplicável. Uma vontade de saltar da cama e sair bailando pelo mundo. Uma certeza de que seria feliz! Agora, ela sorria, sabendo exatamente de onde vinha aquela felicidade. Mais um passo para perto.
- Por toda a vida... – Ele tinha murmurado, ontem à noite.
O som das palavras se dissipando, ganhando o mundo inteiro, tornando-se uma verdade, uma parte indissolúvel da atmosfera. Estavam juntos. Um pelo outro. Iam vivendo, dias e mais dias preenchidos de ternura. A presença dele levava embora os aborrecimentos, as tristezas, o futuro incerto. Uma alegria enorme ia arrebatando seu peito, abrindo caminhos, tomando espaço. Ao vê-lo, podia sentir, imediatamente, o seu coração batendo. Às vezes, até se surpreendia com a intensidade. Por muito tempo, desconhecera a própria capacidade de amar e sentir. Entretanto, embaixo de toda a frieza que tinha cultivado, havia um coração que batia. Forte! Feliz! Tão feliz a ponto de morrer.
Aquela risada, um abraço a envolvê-la, a respiração quente no seu pescoço. Ele ia falando baixinho em seu ouvido e as frases reviravam seu íntimo. O carinho e o cuidado em cada uma delas. Palavras de amor. O mundo ao seu redor brilhava, ganhando novos tons. Não mais o azul frio de seus olhos ou o negro árido de suas tradições. Tons delicados, que traduziam os sentimentos que brotavam em seu coração. Nos braços dele, Narcissa via a vida em cor de rosa.
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- Não exagera, Almofadinhas!
- Como você me pede uma incoerência dessas, Pontas?
- Vai ser um único mês!
- Grande merda! Vocês vão ficar aqui, se refastelando pelas minhas costas, enquanto eu me afogo em desespero e agonia!
- Vão ser quatro dias, Sirius. - Pontas parecia entediado em estar naquela discussão.
- Quando é pro Aluado, quatro dias é uma infinidade. O pobrezinho! Agora pro capacho do Almofadinhas, foda-se! Quatro dias acaba logo! O que é o sofrimento de passar quatro dias com um bando de pessoas que você odeia? E cujo ódio é recíproco, DEVO REFORÇAR! Brincando de baile de primavera enquanto cagam na cabeça dos outros, numa artificialidade tão ridiculamente óbvia?
- Ah, vai se foder! – James se jogou de costas no colchão.
- Imbecil. – Aluado murmurou por trás dos dentes, mas ele ouviu mesmo assim.
- Troca de lugar comigo, então! – Sirius exclamou, provocando. Dois cigarros acessos, enfiados na boca.
- Troco. Troco, caralho. Troco! Troco sem nem pensar. TROCO MIL VEZES! – Arregaçou com raiva as mangas da jaqueta puída. - Vai, VAMOS! Eu recebo de bandeja a sua família abastada que te trata como ovelhinha negra, sem te tirar nenhum privilégio pelas tuas estupidezes! E ainda lambo o chão por onde a porra dos teus parentes passarem, se isso mudar a minha condição. VAMOS, ALMOFADINHAS! Já que você é um bruxo tão excepcional, faz um feitiço que consiga trocar nós dois de lugar! Eu quero ver se você aguenta a porra de UM DIA!
Remus bateu a porta do quarto atrás de si, descontando a fúria que sentia. Pontas fechou os olhos, balançando a cabeça em descontentamento. Como se dissesse que ele tinha pisado na bola, sem usar nenhuma palavra, Pettegrew franziu o rosto. Ele aspirou com força, enchendo as veias de nicotina. Puta merda! Pra que a calmaria de Aluado fosse afetada daquele jeito, ele tinha mesmo passado do ponto.
- É só a porra de um casamento, Almofadinhas. – James murmurou.
- A gente sabe que a sua família é complicada. Mas comparar isso com... Com... Vocês sabem. Ele não pode fazer nada pra mudar... E nunca vai conseguir se livrar. – Rabicho roía as unhas, nervoso.
Sirius encostou a cabeça no dossel da cama, mirando o teto. Sobre os lençóis, estavam jogados uns poucos pertences que ele levaria pra casa. Pela primeira vez, seria forçado a retornar nas férias de Páscoa, por causa do casamento de Bellatrix. Pra piorar tudo, deixaria os três amigos pra trás, divertindo-se por Hogsmead, na lua cheia. Estava de saco cheio de ter que ser um Black. De saco cheio! Que se fodessem todos eles e suas pomposas ocasiões especiais. Os olhares insatisfeitos, julgando uns aos outros, as falsidades, a hipocrisia escorrendo como suor, o desprezo por tudo que não fosse o puro-sangue mágico, a ostentação da riqueza. Aquilo tudo começara a enojá-lo muito cedo. Mas agora, há menos de um ano da sua maioridade, estava prestes a extrapolar o seu limite.
A expulsão de Andrômeda começara como uma grande dúvida em seu peito. Logo, tornara-se um vazio, que durou algumas semanas. Tinha tido um par de sonhos com ela. “Vamos tomar um chá, bichinho?”, ela convidara, nas duas vezes. Levava a xícara aos lábios e então, sentia os milhares de insetos lhe enchendo a boca e a garganta, correndo pelo seu corpo, lhe sufocando. Depois vieram a inquietação, a descrença, o ódio e a negação. Como podiam ter feito aquilo com Andrômeda? A brilhante e doce Andrômeda. Descartá-la! Fingir que nunca tinha existido! Por causa da porra de um relacionamento. Como pessoas que se diziam família tinham chutado a bunda dela sem nem titubear? E CONTINUAVAM A VIDA FINGINDO QUE AQUILO ERA NORMAL! Não, ele não engoliria aquilo. Nunca!
Sirius tinha asco. Mais do que o ódio que sentia de sua mãe e suas repreensões constantes, tentando moldá-lo num feitio que nunca lhe coubera. Mais do que a raiva que sentia por seu pai anuir, tratando tudo o que ele pensava e sentia como uma fase passageira, que logo seria superada. Mais do que a vergonha de ver Regulus se arrastar no chão pela aprovação dos dois, com o desejo incondicional de ser considerado um igual. Tudo que ele sentia agora era aversão, de ver a frente de seus olhos, sem meias palavras, a sujeira que significava ser um Black. Escuro. Escuro como um esgoto. Escuro como um buraco nefasto e sem fundo de podridão, hipocrisia e crueldade.
- Você devia pedir desculpas pra ele. – James arrumou os óculos no rosto. - Ou não vai ter lua cheia pra você esse mês, nem em nenhum outro.
Em alguns dias, perdia o sono. De olhos fechados, encarava a realidade escancarada. O que ele estava fazendo naquele dormitório? Ter um pouco de coragem era o suficiente para apartá-lo de toda a herança de sua família? Não podia ser. No fim das contas, o que fazia para se tornar diferente deles? Palavras não eram suficientes. Atitudes sim. Mas tão pouco conseguira fazer pela prima... Deixou que a humilhassem, diante de seus olhos. Ele, que sempre achara que seria uma espécie de herói, construindo um legado. Como poderia ser, se ao menor sinal de enfrentamento, perdera as forças? Não conseguira nem ao menos ser diferente.
Observava com inveja os pais de James. Preocupavam-se com o que o filho pensava e sentia, dando-lhe apoio para trilhar seu caminhos. Eram presentes, sem no entanto sufocá-lo com imposições. Apesar da idade avançada, os Potter eram generosos, complacentes, reais. Tudo que os Black não eram. Ele incluso, porque era tão ruim quanto seus familiares. Não era possível ter um sangue contaminado como aquele, ser criado em uma ambiente venenoso e salvar-se. Tinha que haver maldade dentro dele também. E havia. Muita.
Iluminar as trevas que lhe preenchiam era uma tarefa de difícil execução. Em alguns momentos, como aquele, a ferocidade extrapolava todas as barreiras que ele próprio havia criado para contê-la e se derramava como ácido sobre os outros. Hoje, Aluado tinha sido sua vítima. Só quando a ira lhe abandonava, enxergava o rastro de destruição que tinha espalhado. Porque havia aprendido a ser assim. Não adiantava lutar tanto contra quem ele havia nascido pra ser, mas ele insistia, perseguindo uma humanidade que não possuía.
- Eu vou pedir. – Sirius apagou os cigarros no cinzeiro, num ímpeto. Atravessou o quarto.
- Agora não! Espera pra quando ele voltar. Vai ser pior se você aparecer agora. – Pontas manteve o olhar firme e ele parou no meio do caminho. - Ele tinha sido convidado pra uma noite de jogos com os quartanistas... E a Dorcas.
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Sem cuidado, apertou-o no fundo da bolsa. Desceu as escadas saltando e saiu das masmorras num átimo. Puxou o zíper com força, enquanto ia correndo o mais rápido que podia. As férias de Páscoa não eram tão aguardadas como as de Natal, porque a maior parte dos estudantes optava por permanecer em Hogwarts, para dar conta das dezenas de atividades acumuladas. Assim, os corredores estavam atulhados e ela teve que se desviar várias vezes, para não trombar com alguém.
Seu pulmão ardia e Gwen ofegava quando chegou ao jardim. Encostou a mão nos joelhos, respirando fundo. Ao longe, as primeiras carruagens começaram a se mover, levando os alunos de volta a estação para pegar o Expresso. Não, não, não, não! Merda! Tomou fôlego e correu o último pedaço com uma velocidade que nunca fora capaz de alcançar antes e provavelmente jamais conseguiria repetir.
- Me espera!!!!
- Corre, corre! – Na penúltima carruagem da fileira, Effie acenava da porta.
Gwen ordenava que as pernas fossem mais rápido, ainda que elas não lhe obedecessem. Seus sapatinhos derrapavam na grama, frustrando suas tentativas de se aproximar das amigas. Só quando estivessem próximas, poderiam ajudá-la a subir. Não podia ficar pra trás! Forçou-se a correr um pouco mais, quase aos pulos, alcançando finalmente a porta da carruagem.
- Licença. – Leona empurrou Effie pra dentro.
Estendeu os dois braços na direção da loira. Enfim os músculos de batedora da colega seriam úteis. Seus braços escorregavam de suor, embora Leona os segurasse com firmeza. Deu um pulinho, tentando alcançar o primeiro degrau. A outra a alçou pra dentro. Caíram dentro da carruagem, emboladas e exaustas. Effie a ajudou a se levantar, enquanto Cissy dava a mão a Leona para erguê-la.
- Ai! – Gwen choramingou, sentando-se perto da janela. A região das costelas já estava dolorida. Tinha sido uma pancada e tanto.
- Porra, Gweny! – Narcissa ralhou, usando a varinha para fechar um pequeno corte no cotovelo de Leona. - Por que essa demora toda?
- Tinha esquecido de pôr uma coisa na mala. - Abriu o zíper, deixando as orelhas saltarem.
- Puta que pariu, Gwen! Tudo isso por causa de um estúpido ursinho de pelúcia?! – Effie bateu com a mão na testa, desacreditada.
- NÃO FALA ISSO! NÃO FALA NUNCA MAIS! – Tapou os ouvidos do coelho, com os dedos. – Ele pode ouvir!!! Não é um estúpido ursinho de pelúcia, Euphemia! Primeiro, ele é um coelhinho, caso nunca tenha percebido nesses 7 ANOS DE AMIZADE! E depois, o nome dele é Sr. Sonequinha e você sabe disso!
Tinha ganhado o coelho dos pais no seu aniversário de quatro anos, como moeda de troca para que ela abandonasse a chupeta na hora de dormir. Era lindo! A coisa mais preciosa que ela já tinha visto. Seu pequeno coraçãozinho de criança bateu acelerado e foi amor à primeira vista. Nem titubeou em largar a chupeta! Tinha orelhas imponentes, um focinho meigo e vestia um paletó vermelho. Naquele momento, nada no mundo lhe parecia tão especial quanto o seu querido Sr. Sonequinha! Dormiam juntos todos os dias desde então. Uma vida inteira de companheirismo e aconchego. Fora ele que acolhera suas lágrimas no seu primeiro dia em Hogwarts, quando sentira saudade da mãe. Também estava lá quando levou o primeiro pé na bunda. E em todas as vezes que Gwen tinha ido mal nas provas. Era injusto que Effie dissesse aquilo, sabendo da importância que o bichinho tinha para ela.
- Você quase perdeu a carruagem por causa dele, Gwen! São só quatro dias.
- Nós nunca nos separamos! Eu não sou o tipo que deixa um amigo pra trás. – Apertou os olhos para encarar a moça.
- Tudo bem. Deu tempo! Vocês dois estão aqui. – Cissy esticou a mão e apertou seus dedos, com carinho.
- Obrigada, Leona! Estamos sãos e salvos graças a você! – Balançando a patinha no coelho em um aceno, Gwen sorriu.
- Sempre que precisar, Sr. Sonequinha. – Greengrass riu discretamente.
Gwen se aconchegou no ombro de Effie, para deixar bem claro que perdoava a amiga. Fechou os olhos, sentindo o balanço da estrada até a estação de Hogsmead. Não era muito longe, então logo deveriam estar chegando. Estava contando os dias, as horas e os minutos para o casamento. Tudo que Gwen mais amava era acompanhar aquela cerimônia! O noivo, elegante, esperando ansioso, olhando o relógio uma vez atrás da outra. Os familiares e amigos, cheios de expectativa, usando roupas lindas. Gwen gostava de perder os últimos instantes imaginando qual estilo seria escolhido pro vestido, de acordo com a personalidade da nubente. Então as madrinhas, refinadas, segurando buquês de lindas flores. Por fim, a noiva. Sempre belíssima, toda trajada de gala! E depois, o mais sublime momento: Os votos. As promessas de lealdade, cumplicidade e dedicação. Seu coração se enchia de afeição e as lágrimas sempre transbordavam de seus olhos. Ah, como era lindo o amor!
Gwen Yaxley vivia para chegar àquela doce ocasião. Mal podia esperar para que fosse a sua vez! Entraria na cerimônia usando um vestido absurdamente rodado, com corselete, pra marcar sua cintura. E scarpins de salto bem alto, também brancos. Ia fazer questão de carregar um buquê de rosas vermelhas! Seu noivo abriria um sorriso enorme assim que a visse. Gentil e apaixonado, a cumprimentaria com um beijo no rosto, sussurrando para que ninguém além dela ouvisse o quanto ela estava linda. Ela estaria radiante, grata por unir o resto de seus dias a um homem romântico, companheiro e bem-humorado.
Para o casamento deste final de semana, sua curiosidade e ansiedade estavam enormes. As festas da família Black eram magnânimas e Bellatrix Black era um luxo de mulher. Sempre elegantérrima! Linda, esguia e irretocável em seus saltos altíssimos e seus cabelos negros longos. Estava certa de que seria a comemoração mais refinada para a qual seria convidada em muito tempo. Pelo menos até que fosse a vez de Narcissa.
A amiga não parecia muito animada. Gwen imaginava que estivesse sentindo falta da irmã que se fora ou então, triste por se separar de sua irmãzinha mais velha. Não devia ser fácil romper um vínculo de convivência tão arraigado e ela sabia o quanto Narcissa era apegada as irmãs. Mesmo preocupada, não quis falar nada, com medo de criar um incômodo entre elas. Esses assuntos de família eram complicados!
- Esse vai ser o dia mais lindo do ano! – Exclamou, em voz alta, com um sorriso no rosto.
As outras três soltaram muxoxos e Gwen pode jurar que viu Effie revirar os olhos ligeiramente. Euphemia estava sempre ocupada em estudar, enfiando a cara nos livros, lendo, lendo, lendo, lendo. Gwen ficava cansada só de lembrar! Leona não tirava os olhos do campo de quadribol, vidrada em treinar até se tornar impecável, mesmo que não tivessem mais como ganhar o campeonato. Cissy... Bom, Cissy costumava sonhar com casamento junto com ela. Mas agora, andava sempre com a cabeça longe, no mundo da lua! Gostaria de saber no que pensava tanto.
- Vocês são umas bobas! Queria que a Yve estivesse aqui. Ela ia concordar comigo!
A família de Yvonne era irlandesa e embora fosse puro sangue, não era exatamente dotada de muito prestígio. Era óbvio que os Black e os Lestrange não perderiam tempo convidando-a para nenhuma festa. A contragosto, a garota ficara para trás, emburrada. A única dos setimanistas da Sonserina a permanecer na escola. Gwen sentiu pena e quase a convidou para passar os dias de Páscoa na sua casa, mas no fim, pensou que isso podia soar como uma brincadeira de mau gosto. E Yve costumava se ofender com uma facilidade enorme.
Logo, seria o seu momento. Ela intuía que se aproximava. Por mais que nada lhe tivesse sido dito, Gwen era capaz de sentir o cheiro do grande dia vindo em sua direção. Não tardaria a chegar! Quando chegasse, ela compensaria a pobre Yvonne, convidando com honra e toda a pompa, para ocupar um assento de destaque. Assim, poderia trocar olhares e risadinhas com a ruiva, dissipando a ansiedade durante a cerimônia.
- O casamento é o momento mais lindo da vida de uma mulher! – Deu um suspiro suave. - E quando chegar o dia pra vocês três, eu vou estar lá, segurando o buquê de madrinha. Farei questão de lembrá-las de que estava certa o tempo todo!
- Ah, Gweny! Como é bom te conhecer e saber que alguém no mundo ainda não perdeu a capacidade de sonhar! – Effie respondeu com um murmúrio, levantando-se para pegar a mochila. Tinham chegado à estação.
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Girou a maçaneta, empurrando a pesada porta. O silêncio era sepulcral. Se uma única mosca cruzasse qualquer um dos cômodos, ela certamente seria capaz de ouvir do hall de entrada. Seus sapatos boneca produziam pequenos estampidos contra o chão de madeira bem encerada. Foi até a sala de estar, com a mente tão vazia quanto a própria mansão. Aquele recinto fora palco do acontecimento mais trágico que já vivenciara e preferia não fechar os olhos, para que as imagens daquela noite não lhe tomassem a mente. Agora, os gritos já não mais ecoavam, porque não havia ninguém lá. Subiu as escadas, com cada passo maculando a quietude que se depositava sobre a casa.
O longo corredor se iluminou quando abriu a porta. O papel de parede escuro reluzia, em sua costumeira imponência. A parte de trás do seu cabelo estava suada, grudada na nuca. O som dos criados trabalhando na cozinha os alcançou, vazando pela porta da sala de jantar. No canto de sempre, o horrendo porta guarda-chuvas de perna de trasgo parecia lhe dar as boas-vindas de forma irônica. Desviou dele, caminhando com pressa até a escada, pulando de degrau em degrau para chegar o quanto antes ao quarto. Um calafrio percorreu seu corpo como acontecia cada vez que sentia aquelas cabeças de elfos prontas para encarar quem passasse.
A tapeçaria permanecia solitária, com sua aura magnética imaculada. Não quis entrar e correr o risco de ser tragada por ela, perder-se nas intrincadas linhas e nomes. Não! Tinha um caminho certo da mente, ao qual decidiu se ater. Porta a porta, ia deixando para trás os espaços vazios. O silêncio se extinguiria quando chegasse ao fim do corredor, no cômodo coberto de bordados e costuras. Traçou a linha reta até ele em sua mente, colocando um pé na frente do outro.
- Você chegou, meu anjo! – O timbre grave atravessou o aposento, atingindo-a quando passava pela porta.
Se deteve então, entrando na biblioteca, dirigindo-se ao lugar de onde vinha voz. Tudo parecia exatamente em seu lugar. Um indicador do bom serviço prestado pelos elfos. Ou a imaculada paz de uma casa morta, em que não havia ninguém para mexer nas coisas.
- Já chegaram? Excelente! As toalhas limpas estão sobre a cama. Tomem um banho, vistam-se descentemente e estejam aqui em 25 minutos.
- A viagem foi ótima! – Fez questão de enfatizar com um tom de voz amargo.
- 25 minutos. – Reforçou, fingindo não ter escutado. – O jantar de aniversário de casamento dos Selwyn está marcado às 19h e eu não tolerarei nenhum atraso.
Isso explicava tudo. Perfeito. Perfeito! Além do presunçoso filho mais velho, os Selwyn tinham duas filhas gêmeas, cuja idade era muito próxima a de Regulus. Os três eram educados em Beuaxbatons, o que tornava um desprazer ainda maior ter que conviver com eles nas raras ocasiões em que estavam no Reino Unido, tamanha a arrogância que ostentavam. Por algum motivo que lhe era obscuro, a Sra. Selwyn parecia encantada com a ideia de casar as duas filhas com Sirius e seu irmão. Como se ele sequer cogitasse a possibilidade de passar o resto da vida rodeado de duas soberbas garotas cheias de titica de galinha na cabeça, um cunhado obtuso, uma sogra interesseira e um velho babão como sogro. Era óbvio que os olhos de Walburga brilhavam com a possibilidade, cega pelo dinheiro e pelo sangue puro da família. Mais uma das merdas das quais ele estava farto!
- Eu adoraria! Mas estou cansado demais para ir a qualquer lugar. Divirtam-se!
- Não vou repetir o que já ordenei.
- Fez boa viagem?
- Sim, obrigada por perguntar. Encontrei o Tio Órion na estação... Ele foi buscar os garotos. – As lágrimas pressionavam seus olhos, querendo sair. Se esforçou para prendê-las, provocando um nó na sua garganta.
- Que ótimo que Órion estava lá. – Captou certa ironia naquela frase do pai. - Eu estava tão ocupado aqui... Imaginei que você não teria problemas em aparatar.
- Não tive. – Definitivamente, soou magoada, ainda que tivesse tentado controlar.
- Boa menina!
- Eu não sou um inferi para acatar ordens, senhora.
- Certamente não, qualquer merdinha criado com necromancia seria melhor! Mas você ainda pertence a essa família. – Cuspiu as últimas palavras com nojo, entre os dentes.
- Enquanto lhes convém. – Ele continuou a subir as escadas em velocidade, deixando-a para trás.
- SIRIUS BLACK, EU ESTOU FALANDO COM VOCÊ! VOLTE AQUI AGORA MESMO!
- Eu não estou te ouvindo, mamãe! – A ironia lhe escorregou prazerosamente pela língua.
- Queria falar com a Bella sobre a despedida de solteira. Você sabe onde ela está?
- Vai ser difícil encontrar sua irmã. Está sempre por aí, resolvendo os últimos detalhes da celebração... – Remexeu nos papéis a sua frente, na escrivaninha, já disperso. - Você sabe como ela é exigente!
- Sei.
- Não sei o que Druella e eu fizemos, mas vocês duas são as maiores perfeccionistas que a Grã-Bretanha já produziu.
Duas. A punhalada atingiu em cheio seu estômago. Naquele frase repetida sempre, seu pai costumava dizer três.
Bateu a porta com força, propositalmente para que o estampido estremecesse a casa. Por cima da cacofonia da cozinha, Walburga estava aos gritos. Ameaças e repreensões entrelaçadas ao barulho das louças. Ela subia os degraus com o peso de uma orca nos pés. Quando pequeno, sentia um medo descomunal daquelas passadas. Contava uma a uma, com o coração na boca. 39. Eram 39 degraus. Um pé depois do outro. Cada vez mais perto. Prestes a segurá-lo pela orelha e lhe infligir um sólido castigo. Aprendeu a dissimular o medo e engolir as lágrimas aos 7 anos. Quanto menos arrependido ele demonstrava estar, mais pesada era a represália e ele gostava disso. De ver nos olhos da mãe o ódio. O corpo dela, ordinariamente tão impassivo, chegava a tremer pela ira.
- Pode me alcançar um copo de uísque, meu anjo?
Ela ainda estava parada em frente a escrivaninha. O silêncio engolindo suas parcas certezas. Caminhou até bandeja de prata, posicionada em um dos cantos. Abriu a garrafa, derramando a bebida âmbar dentro do copo. A ausência pulsava em seu corpo, uma pontada incômoda atrás da outra. Cygnus parecia não ter tido tempo para se arrepender. Afogava qualquer lembrança nos velhos prazeres, acostumado a se anestesiar. Nenhuma das distrações dela seria capaz de tapar aquela fenda. Não dentro daquela casa, em que as paredes gritavam cada uma das recordações a plenos pulmões.
Tão forte quanto quando tinha sido cerrada, a porta bateu na parede, sem oferecer nenhuma resistência. Aquela casa obedecia assustadoramente a vontade dela. Walburga estava impregnada em cada objeto, cada móvel, cada cômodo. Ela e suas detestáveis convicções, que tentava lhe enfiar garganta abaixo desde o dia em que nascera. Por isso abominava aquele lugar! A aura lhe torturava. O ar denso lhe aprisionava sob o peso de milhares de tradições ultrapassadas e doentias. O fardo que sua mãe fora forçada a carregar, esmagando qualquer resquício de sua alma, e desejava lhe impor com igual dureza.
- Está me ouvindo agora, filhinho? – Segurou-o pelos cabelos, erguendo-o da cama.
Assentou o copo a frente dele, sobre a escrivaninha. Cygnus bebericou sem erguer os olhos do documento que lia. As lágrimas dela haviam se endurecido, petrificadas, entupindo seus olhos de uma tristeza seca. Tão seca quanto ela própria se sentia. Sugada pelo vazio que aqueles aposentos haviam se tornado. Prestes a virar areia. Seu pai parecia imune a tudo aquilo. Já tinha retornado a sua vida, alheio a qualquer outro assunto que não seus negócios. Muito distante de tudo que haviam vivido.
- Ainda tem algo em que eu possa lhe ajudar, meu anjo?
“SIM!”, desejou gritar, “TRAGA-A DE VOLTA! Esqueça tudo e desfaça o que fez enquanto ainda há tempo, antes que esse buraco negro sugue a todos nós.”
- Não, papai. Eu vou tomar um banho e conversar com a mamãe.
- Cissy. – Tinha se encaminhado para a saída, mas deteve-se perto da porta, quando ele respondeu. - A sua mãe teve um mal-estar e preferiu se recolher mais cedo. Está com fome? Vou pedir aos elfos para servir o jantar enquanto você se refresca.
- Não. – Franziu o cenho, com estranhamento. - Vou esperá-la levantar para comer, então.
- É melhor não a importunar hoje, meu anjo. – Bebeu mais um gole. - Druella estava com uma forte dor de cabeça. Vamos deixá-la descansar!
- Esse final de semana significa tudo para a nossa família. Se fizer qualquer gracinha que ameace o sucesso disso, você estará morto, Sirius Black. MORTO! EU FAREI ISSO, SEM ARREPENDIMENTOS E COM MINHAS PRÓPRIAS MÃOS. Está me entendendo ou essas merdas trouxas lhe deformaram a capacidade de compreensão? – Encarava com nojos os pôsteres presos nas paredes do quarto, as imagens paradas em posições fixas.
A verdade é que ele seguira um caminho problemático. Havia muitas possibilidades para alguém que enfrentava a violência, mas Sirius escolhera uma das piores. O ciclo era infinito, como um cão mordendo o próprio rabo. Walburga lhe machucava, com palavras, feitiços e força bruta. Ele revidava, com provocações, desrespeito e inconveniência, a sua forma de violência. Alimentavam os monstros um do outro. Os dela, ligados ao medo de causar a perda do prestígio familiar, de não ser mais o orgulho dos pais. A longa espera pelo casamento lhe fizera assim. Os dele, da privação, dos direitos cerceados, de perder a sua essência ao ser engolido por aquelas regras e imposições.
– Esteja pronto em 20 minutos.
Caminharam para o banheiro, sustentando o peso que os consumia. Encarcerados por aquelas paredes. Já haviam morrido uma centena de vezes. Deslizavam como moedas, rodopiando sem controle e fora do alcance. Em suas mentes, palavras. Palavras. Palavras. Palavras. Vazias. Suas vontades, nulas. Seus anseios, apagados. A dor só havia começado, numa constante que fora ligeiramente interrompida pela vida reluzente que corria paralela àquela, em Hogwarts. Sirius e Narcissa estavam de volta ao escuro.
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