Tarde demais pra voltar a dormir

Harry Potter - J. K. Rowling
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Tarde demais pra voltar a dormir
Summary
Uma gota caindo na água reverbera no lago inteiro. Uma troca de olhares que se estende pode mover todas as peças ao redor. James Potter e os problemas são velhos amigos, prestes a se conhecer muito melhor. O que há por trás dos encantadores olhos que parecem persegui-lo por todos os lados?Para Narcissa Black, tudo é heterogêneo. Em que ponto do infinito tudo se mistura? Se você procura uma história de drama, amores e nós do destino se entrelaçando, é tarde demais pra voltar a dormir!Essa é uma história sobre o que poderia ter acontecido enquanto os marotos estavam em Hogwarts, sob a sombra da Primeira Guerra Bruxa. A maior parte dos personagens e cenários descritos pertencem a J. K. Rowling e são utilizados nessa fanfiction sem nenhum tipo de intenção comercial. Algumas datas e ordens de acontecimentos foram alteradas para que a história pudesse fazer sentido.
Note
Olá, pessoal!Gostaria de lembrá-los que essa história se passa nos anos 1970, então algumas atitudes, falas e pensamentos dos personagens podem parecer ultrapassados e inaceitáveis para os dias de hoje. Lembrem que tudo está inserido em um contexto! Fumar em qualquer lugar era um hábito da época, por exemplo.Aproveito pra lembrá-los de ter moderação com o consumo de álcool e cigarros, que é bastante frequente nessa história.Por fim, alerto que a história é ampla e vai comportar um monte de possibilidades, se você não se sente confortável com linguagem chula, violência, homossexualidade/bissexualidade, bullying, cenas de sexo e outros tópicos delicados, eu tomaria cuidado!ATENÇÃO!!Este capítulo contém cenas de bullying.
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Por trás do véu

A pena corria com velocidade sobre o pergaminho, transcrevendo uma linha abaixo da outra, num fluxo quase desesperado de informações. As vezes se odiava por ter uma letra tão pequena. Em uma escola em que os professores tinham mania de solicitar deveres com comprimentos mínimos de pergaminho estabelecidos, isso acabava sempre lhe custando trabalho dobrado.

O movimento na sala comunal da Sonserina começava a aumentar, com o fim da tarde se aproximando. Os alunos dos anos iniciais entravam em bandos, passando direto para os dormitórios, libertos pelo encerramento das classes e ansiosos para se preparar para o jantar. Os mais velhos estavam sempre espalhados, alguns em aulas, outros na biblioteca e poucos, como ela, aplacados sobre os deveres ali mesmo, aproveitando a lareira e a quietude incomum do início do ano.

Narcissa adorava as masmorras, sobretudo pela encantadora vista do fundo do lago que nenhum outro lugar do castelo fornecia. Gostava de fazer os deveres ali, perdendo de vez em quando os pensamentos naquelas profundezas. De alguma forma, conseguia concentrar-se melhor com o ritmo da vida lacustre seguindo ao seu redor.

- Ei, Cissy, você conseguiu terminar o trabalho sobre as propriedades mágicas das plantas comestíveis não convencionais? – Evan deu a volta no longo sofá, segurando o próprio material.

- Terminei ontem.

- Jura? Posso dar uma olhada?

- Claro!

O rapaz se sentou ao lado dela, colocando os rolos de pergaminho, a pena e o tinteiro sobre a mesinha de centro em que ela trabalhava. Vasculhou o fundo da própria bolsa, procurando o trabalho que tinham que entregar para a professora Sprout na tarde seguinte. A verdade é que havia concluído o ensaio há três dias, mas supostamente estivera na biblioteca até tarde na noite anterior para terminá-lo. Como a única que também cursava herbologia avançada era Effie, uma boa nerd que já finalizara o trabalho há pelo menos uma semana, fora fácil demais utilizar esse dever como álibi pra se encontrar com James sem despertar a suspeita das amigas.

- Aqui. Pode demorar o tempo que precisar!  – Entregou o pergaminho ao garoto, retomando a atenção ao artigo que ainda tinha que finalizar.

- Desenvolvimento de antídotos pra doença de Nundu? – Evan olhava o pergaminho por sobre o ombro dela, analisando o que estava escrevendo. – Eu acabei de terminar, se quiser.

- Obrigada, mas só preciso transcrever a pesquisa que já fiz.

Trabalharam lado a lado, sem interagir, concentrados cada um no seu próprio texto. Ao contrário dela, que cumpria as disciplinas avançadas com o principal intuito de se formar em Hogwarts com louvor para honrar o nome da família, Evan dedicava-se com afinco aos estudos. Se quisesse ser aceito na escola superior de medibruxos, profissão que ambicionava, o garoto precisaria tirar “ótimo” em pelo menos cinco NIEMs: Poções, Herbologia, Transfiguração, DCAT e Feitiços. Era óbvio que o trabalho escrito por Evan estaria muito melhor que a lambança que estava fazendo sobre o pergaminho e que ela poderia se beneficiar muito de uma rápida olhadinha no artigo dele, mas não quis se dar ao trabalho.

- Você tem uma retórica tão fluída que as vezes me assusta! – O comentário de Evan saltou de seus lábios de forma natural assim que ele terminou de ler o ensaio dela, quase como um pensamento em voz alta.

- Obrigada. Eu acho? – A loira deu uma risadinha, molhando a pena no tinteiro.

- Parece que não tem mais nada aí dentro. – Baixou o corpo para procurar algo na mochila. - Eu tenho um vidro extra, você pode ficar com ele!

Colocou o tinteiro cheio sobre a mesa, ao lado do que estava vazio. Olhou pra ele por um instante, tentando captar qualquer mensagem transcrita em sua expressão, mas ele parecia apenas solícito. Talvez houvesse um pouquinho de culpa no fundo dos olhos, mas ela não estava certa disso. Não era incomum que Evan fosse amável com ela. O que a surpreendia era a forma como se juntara tão informalmente a ela e começara a partilhar a execução das atividades escolares. Isso é que fugia dos hábitos dos dois.

Narcissa costumava estar sempre rodeada pelas amigas. Ele era quieto, na dele. Permanecia ao longe, observando. No círculo de conversas, quase sempre se dedicava mais a ouvir e dar risada das brincadeiras do que a papear. Estava surpresa por ele ter se aproximado tão sem cerimônia. Imaginou que aquela era a forma que o garoto tinha encontrado pra pedir desculpas por não ter falado com ela desde o que acontecera no seu aniversário.

- Obrigada, Evan. É muito gentil da sua parte!

Escreveu mais uma ou duas linhas, e então parou, olhando pra figura concentrada do rapaz. Ele era bonito! Daquele jeito que pessoas extremamente padrão são bonitas. Como um personagem de um quadro renascentista. Mais do que aquilo, era alguém por quem Narcissa tinha um grande carinho. Evan era uma boa pessoa, apesar de seus tios jamais terem lhe contrariado em suas vontades. Por sorte, nascera naturalmente abnegado e muito pouco deslumbrado com tudo que o dinheiro podia lhe comprar. Por isso seria o perfeito curandeiro, ela tinha certeza. Seria feliz abdicando de si mesmo pra cuidar dos outros.

- Pensei que vocês teriam treino. – Narcissa puxou assunto, observando-o se desconcentrar quando sua voz atravessou o silêncio.

- Amanhã. Parkinson conseguiu pegar uma detenção hoje e tivemos que adiar.

- Ah! Quando será o próximo jogo?

- Só depois da Páscoa. Nós contra a Corvinal, é o que falta. Mas com a jogada do Regulus na última partida, não temos muita chance.

- Aquilo foi...

- É. – Ele concordou. -  A Grifinória teria que amargar uma derrota bem desvantajosa pra Lufa-Lufa e o mesmo teria que acontecer com a Corvinal. Ainda que a Emeline Vance seja a melhor artilheira que os lufanos tem no século, é praticamente impossível isso acontecer! A Grifinória está invicta há tempo demais...  – Suspirou, com um ar cansado. - Acho que vamos ter que nos contentar com o segundo lugar. De novo.

- É uma pena que vocês não sejam campeões no nosso último ano. Mas mesmo assim, adoro vê-los jogar! Vocês são muito bons. Só que eles...

- Eles são melhores, é. Thomas é um bom estrategista e tem ótimo olho pra talentos. Soube montar um time excelente com o Potter e a McKinnon. Aquela garota é impressionante! Bom, ganhar não é tudo... Apesar disso, a Leona está bem visada pelo Harpias.

- Você acha que ela vai?

- Não. Os pais dela morreriam antes de permitir! Ouvi que estão tratando o dote dela com os Flint.

Narcissa arregalou os olhos, surpresa. Leona Greengrass era quieta e introspectiva, mas teria comentado no quarto se soubesse de algo tão sério. É provável que o que Evan entreouvira fosse desconhecido até por ela. Afundou um pouco no sofá, circunspecta. A temporada de noivados se anunciava bem cedo em 1976. Decidiu não tocar no assunto, para evitar o desgaste da colega. Se a fofoca que o seu primo estava lhe contando se tornasse verdade, Leona iria saber, uma hora ou outra.

- Cis... – O garoto começou, a voz sem jeito, tateando os limites. Tinha visto certo: Evan estava se sentindo culpado.

- Não tem problema, Evan. – Colocou a mão sobre a dele, acariciando-o rapidamente com o polegar antes de retomar seu caminho para a pena.

- Eu não soube por onde começar. Não sem te machucar.

- Está tudo bem agora, de verdade. Vamos só... seguir em frente! – Deu um sorriso alentador, para encerrar o assunto.

- Claro.

O retorno às atividades foi como uma pá de areia despejada sobre o desconforto que se instalara entre os dois. Narcissa fingia estar absurdamente concentrada no pergaminho, mas perdia o foco uma vez atrás da outra. Percorria a sala com o olhar sem de fato avistar nada e então acrescentava mais uma ou duas frases, até repetir o ciclo outra vez. Evan consultava o trabalho emprestado, ponderava e depois traduzia em longos parágrafos as reflexões a que chegara. Em pouco tempo, o garoto tinha o pergaminho muito mais preenchido do que o dela.

Fixou o olhar no lago, já escuro pela chegada da noite, afundando os pensamentos naquelas águas por um instante. O frio devia ser glacial, mas ela desejou um único mergulho, pra retomar a lucidez por um instante. Transcreveu um último parágrafo apressado, num arroubo. Estava cansada de se arrastar sobre o pergaminho. Evan concluiu calmamente a tarefa, pousando a pena na mesa poucos segundos depois dela.

- Você já comeu? – Perguntou, guardando o material na mochila.

- Não, não ainda.

- Se quiser vir comigo, estou indo pro Salão Principal.

Ela anuiu, sem prestar atenção. Entrando na sala comunal, Snape, Avery e Mulciber conversavam quase aos sussurros. Narcissa franziu o cenho, forçando a vista para tentar ler os lábios do amigo. Por que Severus tinha que ter uma boca tão fina? Diabos! Mulciber estava de costas, então ela transferiu sua atenção pra cara de roedor de Avery. Durou pouco, antes que ele a fitasse, fechando a expressão no mesmo instante. Merda! O menino chamou os outros dois pra outro lugar. Viraram para conferir se Narcissa estava mesmo olhando, encarando-a antes de se dirigirem a um sofá mais ao fundo, onde já não conseguia enxergá-los.

- Cissy? Você vem? – Evan estava de pé, segurando a mochila.

- Sim! Me perdoe. – Jogou as coisas todas dentro da bolsa de qualquer jeito e se levantou, caminhando ao lado dele. – Queria entender de que os irmãos Peverell tanto cochicham... – Indicou o canto da sala com os olhos.

- Supremacia mágica, tenho certeza. É o único assunto que todos parecem ter ultimamente. – O rapaz revirou os olhos, colocando a mão nas costas dela, para conduzi-la até a saída

- Não sei... Que falem do assunto em casa ou na mesa de um bar. Agora, aqui? Em Hogwarts? Me chame de intransigente, mas eu não gosto disso!

- Nem eu. – Baixou os olhos, empurrando a porta pra que pudessem sair.

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Virou mais uma página, mesmo que não tivesse absorvido uma única palavra do conteúdo da anterior. Por cima do livro, acompanhava a Leona polindo a própria vassoura, imersa de corpo e alma na atividade. O cheiro dos produtos que a garota usava não chegavam até sua cama, sobrepujados pelo perfume absurdamente adocicado do hidratante corporal que Yvonne estava espalhando nas costas nuas de Gwen. A porta do quarto se abriu e Narcissa entrou, acrescentando à equação o cheiro delicado de rosas de seu xampu.

Vinha sempre do banheiro dos monitores com os cabelos pingando, não importava que estivessem no mais alto inverno. Como ela conseguia não congelar, era um mistério para Effie, cuja mente teimava em imaginar os rastros de água que a amiga devia deixar atrás de si, pelos corredores. A loira tomou a varinha de cima da mesa de cabeceira, secando a tolha com um aceno antes de pendurá-la no gancho ao lado da cama. Sentando-se no colchão, começou a desembaraçar os fios, num repetido ir e vir da escova. 

- Foi só um beijinho, Yve. Não faz mal!

- Ele agiu como um canalha, coração. É claro que faz!

- Não fale assim... Ele só é jovem demais pra se apegar.

- Ele tem quase 30 anos, Gweny!

Com um biquinho no rosto, Gwen sustentava um semblante contrariado, enquanto a ruiva fechava o pote de hidratante com mais força do que o necessário. Effie prendeu o riso, cobrindo a cara com o livro. Como aquelas duas podiam discutir tão seriamente sobre aquilo? Gael Luccado era o homem por quem Yvonne e Gwen estavam secreta e terminantemente apaixonadas. Elas e pelo menos a metade das bruxas com menos de 20 anos. O único porém acerca disso era o fato de que o rapaz existia apenas nas páginas de uma novela barata de banca de revistas. Effie sempre se assustava com a forma como as amigas levavam tudo aquilo a sério, debatendo horas e horas a cada vez que um novo número era publicado.

- Vocês não acham que já é o suficiente sermos obrigadas a aguentar os garotos de verdade, para ainda termos que ouvir as cagadas que esse aí faz? – Leona se meteu, sem tirar os olhos da vassoura.

- É o que eu penso. – Effie se apressou em concordar, virando mais uma página cujo conteúdo não tinha nenhuma ideia do que se tratava.

- Rapazes: Ruim com eles, pior sem eles! – Yvonne se arremessou na própria cama, dando uma pirueta.

- Como poderia ser pior sem eles? Nós teríamos paz! – Terminando de vestir o pijama, Gwen jogou os braços para o alto, como se implorasse aos céus.

- Paz na mente e um buraco entre as pernas.

- Para a sua ciência, Yve, nós já temos um buraco! – Leona balançou a cabeça, rindo.

-  Vocês entenderam!!!!

- Na verdade, não. Nos explique, por favor! – Segurando o próprio queixo, Narcissa fingiu uma expressão inquisidora.

- Eles podem ter seus defeitos...

- Que são muitos! – Destacou Gwen.

- E bastante enfatizados por uma vida de privilégios. – Cissy fez questão de acrescentar.

- Como eu ia dizendo... – Yvonne pigarreou. – Eles podem ter seus defeitos, mas precisamos deles.

- Por quê? – Leona soltou a vassoura, com uma das sobrancelhas erguidas.

- Bom... Eu não sei vocês... feministas... – Adicionou a última palavra com a boca cheia de asco, como se fosse uma doença. – Mas eu ainda adoro um bom orgasmo!

- Eu também, mas ia preferir que viesse sem o homem acoplado. – Os cachinhos de Gwen balançavam enquanto ela gargalhava.

- Sinto lhe dizer, mas um garoto é a pior forma de se conseguir isso, Senhorita Davies. – Leona guardou a vassoura embaixo da cama e se recostou na cabeceira.

- Exato! E diziam que os irlandeses eram menos caretas, Yve! – Provocando a outra, Narcissa concordou.

- Oh, Merlin, o que fiz pra merecer esse blábláblá essa hora da noite? – Yvonne cobriu o rosto com o travesseiro. – Afirma isso embasada em que, Leona? Nas vozes da sua cabeça? Algumas de nós só preferem as coisas da forma tradicional, docinho. Ainda que isso custe um pouco mais de trabalho!

- E nem sempre dê certo... Fazer o que, se ela já se apegou até aos defeitinhos? – Gwen deu de ombros, com um sorriso travesso.

- Eu sei quais defeitinhos... – Abrindo as mãos de forma ilustrativa, Leona revirou os olhos.

- Para! Ridícula! – O travesseiro de Yve voou pelo ar, para atingir a outra. – Pro seu governo, não sou a única. ‘Tá?

- Ah, é? E quem mais?

- A Cissy! Se faz de opositora, mas está por aí com um deles. – Acusou, apontando para o outro lado do quarto. – Eu vi vocês dois! – Acrescentou, com uma figura debochada.

- O quê? – O cenho de Narcissa estava franzido.

- É. De joguinho pelos cantos!

- Onde? – Abriu a boca, surpresa.

- No salão principal. E na sala comunal, é claro!

- O quê?

- Você e o Evan, Narcissa! Alô, em que mundo você está?

- Ah. – Cissy fechou a boca, desanuviando a expressão.

- Vocês estão saindo de novo? – Gwen se arrastou até a ponta da própria cama, entusiasmada.

- Não.

- Sim. – Yvonne insistiu.

- Eu disse não, Yve! – Repreendeu a outra com o olhar. - Nós somos só amigos.

- Por quê? – O choramingo de Gwen era real, ela era uma ferrenha apoiadora da relação dos dois.

- Não tem nada a ver, Gweny.

- Ah, qual é!

- Você deveria aproveitar, Cissy. Não são todas que tem um gatinho como Evan Rosier a disposição.

- Não fale dele como se fosse um filhote, Yvonne!

- Para de encher, Leona!! – Num arroubou, estirou a língua pra outra. – Eu acho que ela deveria mesmo aproveitar. Já deve estar criando teias de aranha lá embaixo!

- Estou me guardando pro meu futuro marido! – Cissy ergueu os ombros, piscando exageradamente os olhos, numa pose falsamente orgulhosa, sob as gargalhadas das outras.

- Eu acho que ele não vai se importar, Cissy. O Evan é seu primo, afinal! Fica tudo em família. – Yve reforçou, num tom de brincadeira.

- Ele é lindo! – Gwen adicionou, com um sorrisinho no rosto.

- E gostoso. Não merece ficar sozinho! – Abraçando o travesseiro, Yvonne rolou pela cama.

A teimosia de Narcissa e Yvonne frequentemente fazia com que as duas entrassem em embates, nem sempre importava sobre o que. Só se enfrentavam, defendendo ferrenhamente lados opostos. Era curioso e divertido acompanhar essa dinâmica, embora Effie julgasse que se tratava sobretudo de um pouco de cobiça da parte da ruiva, ainda que subconsciente: Narcissa possuía tudo o que ela sonhava em ter e não parecia dar valor àquilo na maior parte do tempo.

- Se a incomoda tanto que ele esteja sozinho, porque não sai você com ele, Yve?

- Porque eu não posso, minha querida.

- O Wilkes lhe daria esse crédito... Eles são tão amigos! – A loira espalhou o creme que aplicava nos olhos, mirando-se no espelho.

- Não por causa disso. É que ele só tem olhos pra você, sua bobinha!

- O quê? – Jogou o espelho na cama, contemplando a outra.

- Não banque a desentendida, Cissy. É óbvio!

- Por que você está me importunando com esse delírio, Yvonne?

- Qualquer um pode ver, Narcissa. O Evan está caidinho por você! Mais do que nunca, eu ouso dizer.

- É. – Gwen concordou, apoiando a cabeça no travesseiro dobrado.

- Vocês estão loucas!

- Se quer se fingir de rogada, tudo bem. Mas é claro pra quem quiser ver! Você acha mesmo que ele precisava pedir pra copiar alguma atividade de você?

- Está me chamando de burra?

- Não. Só estou dizendo que tudo que ele queria era um motivo pra ficar do seu lado, idiota!

- Vocês perderam a noção. – Ela fechou a frasqueira, colocando-a dentro do malão.

- Tudo bem, pense o que quiser. Mas aposto o meu mindinho que ele vai te convidar pra sair até o Dia de São Valentim!

- Boa noite! Obcecadas. – Cissy acrescentou, apagando a luz com um aceno da varinha.

Os resmungos vieram de todos os lados, mas uma a uma as garotas foram se arrumando nas camas e adormecendo. Effie fechou o livro de História da Magia, sem força de vontade pra catar a varinha e acender uma luz de leitura. Quem ela queria enganar? Não tinha lido nem um parágrafo de verdade. Soltou o livro embaixo da cama, puxando o cobertor sobre si e fechou os olhos, inspirando. O toque delicado dos dedos lhe tirou do torpor, arrancando as imagens do dia que lhe corriam pela mente.

Demorou alguns instantes até que seus olhos se acostumassem ao ambiente, mas a figura de Narcissa se delineou ao lado de sua cama, com uma expressão de súplica. Afastou-se mais para a borda do colchão, dando espaço pra que a outra se enfiasse embaixo do cobertor junto com ela. Tremeu suavemente quando a pele da loira encostou na sua. Como ela podia estar sempre tão gelada? Cissy puxou o cobertor sobre a cabeça das duas, para que ficassem inteiramente escondidas. Depois, acendeu uma luz fraca na ponta da varinha, possibilitando que se enxergassem.

- ‘Tá tudo bem? – Indagou, num sussurro quase silencioso.

- Sim.

- Você está tão calada...

- Cansaço. Vou enlouquecer antes dos NIEMs!

- Tem certeza? Não parece isso, Effie. – Ela ia decifrando o que a amiga dizia, muito mais pelo movimento dos lábios do que pelo som, que era quase nulo. Não queriam acordar as outras.

- É sério.

- Você acha que o que ela falou é verdade?

- Ela quem?

- Ela. – Frisou, arregalando os olhos.

- Sobre o Evan?

- É.

- Talvez.

- Merda! – Cissy soltou o ar pela boca, com uma expressão preocupada.

- Não entre em crise por causa disso, Cissy. Não é a primeira vez que um cara se apaixona por você sem ser correspondido, é?

- Não. Mas eu gosto dele!

- Ótimo! Então fique com ele. Vá em frente!

- Não desse jeito, Effie! – Pensou um pouco, antes de continuar. - Não queria partir o coração de alguém com quem me importo.

- Quer dizer que se foda o coração dos outros caras com quem você não se importava?

- Esse é o conceito de se importar, não?

- Ok, ok. – Fitou o dossel, avaliando a situação. - Dá pra você se apaixonar por ele?

- Acho que não.

- Bom, então não tem nada que você possa fazer.

- Será que eu deveria me afastar?

- Acho que isso ia partir o coração dele também.

- Então o quê?

- Você já está em crise!!!

- Então o quê, Effie?

- Finge que ela não te falou nada e continua a agir como estava fazendo. Uma hora o Evan vai sacar que você não está na dele. Se é que já não sacou e não liga!

- E se ele me convidar pro dia de São Valentim?

- Aceita ou rejeita, ué.

- Genial, Effie!

- Não precisa inventar, Cissy! Antecipar os problemas só vai te enlouquecer.

- E se eu aceitar?

- Divirta-se!

- Você é irritantemente prática, sabia?

- Sim.

- E mesmo assim, é uma péssima mentirosa, Euphemia.

- O que?

- “Cansaço”. – Cissy desenhou as aspas no ar. – Faça-me o favor. O que aconteceu?  ‘Tá tudo bem entre você e o Crabbe?

Depois do rápido flerte com Mulciber no Natal, ela tinha mudado de ideia e beijado Henry Crabbe na festa de Réveillon. Tinham saído em alguns encontros na sequência, mesmo que sem compromisso. Apesar de ser do sexto ano, o garoto não era idiota. Tinha um bom papo e era divertido o suficiente pra entretê-la, além de beijar bem.

- Mais ou menos.

- Ah!! Eu sabia.

- Está tudo bem entre nós. Só não estamos mais saindo.

- Por quê? Ele foi escroto?

- Não. Só percebi que eu não estava a fim dele.

- Tudo bem, essas coisas acontecem...

- Nem agora e nem desde que a gente começou a sair.

- Sério? – Narcissa mordiscava a unha do polegar.

- Pior que sim.

- Vocês não estavam se divertindo?

- Ele é gente boa, mas sei lá... Eu não quero sair com um garoto só porque a pressão social me diz que devo. Não faça essa cara!

- Que cara?

- De pena.

- Não é pena, Effie. Eu só fiquei surpresa!

- Você acha que eu estou exagerando.

- Não!! Eu também estou solteira, não estou? Além disso, é bom ter um tempo pra você antes de descobrir quem será o seu noivo.

- Isso vai demorar. Meu irmão continua solteiro, lembra?

- Engraçadinha!

Narcissa revirou os olhos e sorriu. A tradição de seguir a ordem das idades não era aplicada quando você era irmã de um garoto. É bem provável que Effie estivesse noiva antes mesmo de Thorfinn voltar da temporada na Alemanha. Depois da tentativa de noivado fracassada, o rapaz partira numa viagem cuja suposta motivação eram os negócios, mas não passava de um escape para dissipar qualquer fofoca que pudesse atrapalhar os pretendentes da mais nova. Em muitos dias, tudo que Effie almejava era ter a mesma liberdade que o irmão! Queria terminar Hogwarts, juntar tudo e partir, pra conhecer um pouco do que existia fora daquele mundinho em que crescera.

- Não fique mal por isso, Effie! Uma hora vai encontrar a pessoa que faça o esforço valer a pena.

- Parece tão mais fácil nos livros, não?

- Parece. – Cissy baixou os olhos, o semblante repentinamente circunspecto. - Talvez tenha um Gael Luccado te esperando em algum lugar.

- Oh, Merlin! Isso seria a pior coisa que poderia me acontecer! – As duas prenderam o riso, tentando manter o silêncio no dormitório.

- Traidoras!! – Gwen gritou o mais alto que podia conseguir em um sussurro, ao mesmo tempo em que puxava a manta que as cobria.

- Nós só estávamos batendo papo, ciumenta! – Narcissa se levantou, sentando-se na cama.

- Pelas minhas costas, como duas víboras!

- Quanto drama! – Effie riu, puxando as tranças que ficaram presas embaixo das coxas cruzadas da loira.

- O que é que eu não posso saber?

- Não é nada, Gwen! Só estávamos sem sono. Agora você devia ir dormir.

- Agora você devia ir dormir! – Repetiu a sua fala com uma voz esganiçada, puxando as cortinas do dossel até que estivessem completamente abertas, antes de se dirigir a própria cama.

- Ei, Gwen! – Narcissa chamou, num sussurro, abandonando também a cama para retornar à própria.

- Que é?

- Vai se foder! – Uma risada cheia de provocação saltou dos lábios de Cissy.

- Eu adoraria, mas pra isso vocês precisam dormir primeiro. – Estirou os dedos do meio das duas mãos, um na direção de cada uma das amigas.

- Da próxima vez, você deveria tentar o banheiro. – Effie acrescentou, ouvindo as risadinhas das duas crescerem no escuro.

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Se apertavam como formigas, disputando o espaço ao redor das poltronas posicionadas frente a frente. Todo aquele tumulto deixava Gwen agitada, mas ela não queria perder nenhum segundo. O dia de São Valentim estava chegando e a oportunidade de ouvir as previsões de Niyati Shafiq se apresentava de forma providencial! O único contratempo é que todas as garotas de Hogwarts pareciam ter pensado o mesmo.

A quartanista da Corvinal tornara-se famosa na escola no ano letivo anterior, quando tinha descoberto um talento fora do comum para a Adivinhação. As notas excelentes na disciplina haviam sido mero detalhe, atrasadas em relação a fama que tinha construído lendo o futuro das companheiras de quarto. Não demorou muito para que o sucesso transcendesse as colegas do mesmo ano e as da mesma casa, chegando aos ouvidos de toda Hogwarts.

Agora, os reduzidos horários que disponibilizava eram disputadíssimos, aumentando o frisson ao redor daqueles dias. As que tinham interesse, precisavam marcar o horário com meses de antecedência. Agenciada pela irmã mais velha, Niyati atendia poucas clientes por vez, a preços que justificava como simbólicos, apenas para arcar com os custos de seu serviço. Gwen não estava bem certa de que servir algumas xícaras de chá e utilizar eventualmente uma bola de cristal pudesse custar tão caro, mas não estava em posição de reclamar.

No início do ano letivo, Yvonne tinha marcado aquele horário para as cinco moças, como um presente de aniversário coletivo para as companheiras de quarto. Graças a ela, Gwen estava à beira de ter seu futuro lido sem que tivesse precisado desembolsar um mísero nuque. Não que fizesse diferença, ela ficaria feliz em gastar toda a sua mesada, se fosse preciso, pra ter uma das previsões de Niyati.

As sessões privadas custavam mais caro, porque as abertas eram usadas como propaganda do talento dela. Todas as garotas de Hogwarts adoravam manter os olhos sobre a vida umas das outras, esperando que as previsões se realizassem diante delas. Além disso, ao fim de cada sessão aberta uma felizarda era escolhida aleatoriamente para ser atendida sem qualquer custo. Assim, as cinco setimanistas da Sonserina tinham abandonado o dormitório ansiosas para ouvir o que o futuro lhes reservava naquela tarde de domingo, cientes de que teriam uma ávida plateia.

- Ok, ok, meninas! Vamos dar um pouco de espaço, por gentileza. Niyati precisa de amplitude pra que as vibrações possam fluir!  – Jamyle Shafiq atravessou a roda de garotas, abrindo caminho com os próprios braços. – Certo. Yvonne Davies? – Chamou, lendo o nome de um pequeno caderno de capa avermelhada.

- Sou eu! – Com a voz esganiçada, Yve se levantou, esticando a mão acima da cabeça.

- Ótimo! Você pode se sentar, se quiser ser a primeira. Ela já está vindo.

Gwen não estava bem certa, mas pensou ter ouvido um pequeno guincho de animação vindo da amiga. Yvonne era aficionada por tudo que envolvesse Adivinhação, matéria que havia se tornado sua favorita na escola. Quando não estava pensando em garotos, passava horas com a mente absorta por horóscopo, tarot ou qualquer coisa que pudesse lhe trazer alguma noção do seu destino.

O silêncio foi sendo criado como uma onda, espalhando-se de garota por garota, até que o ambiente estivesse totalmente quieto. Niyati caminhava deslizando, a capa sibilando como uma cobra arrastando-se pelo chão. Sentou-se na poltrona em frente a Yvonne com um sorriso amistoso no rosto. Tinha olhos redondos e escuros, cheios de um brilho leniente. Os lábios eram bem desenhados, com o inferior mais volumoso que o superior, e as sobrancelhas tinham forma arredondada, o que lhe garantia uma figura tranquilizadora. A pele de cor caramelo parecia acesa pelo contraste com o traje em tom de laranja que ela usava.

Apesar da pouca diferença de idade, era bem distinta de Jamyle, que já estava no quinto ano. A mais velha tinha sobrancelhas arqueadas, olhos agateados, um arco do cupido pronunciado e um nariz reto, mais largo, concedendo-lhe uma expressão desconfiada. Além disso, sua pele era mais escura, como uma xícara de chocolate quente, e os cabelos negros e lisos iam até a cintura, enquanto os de Niyati chegavam apenas aos ombros.

- Nasmastê, minha flor!

O cumprimento verbal foi seguindo de uma ligeira inclinação da cabeça, que Yve retribuiu. A garota esticou os braços, segurando as mãos de Yvonne entre as suas. Pelo canto dos olhos, Gwen viu que Leona mascava chiclete, ansiosa por sair dali. Sabia que ela viera apenas pra agradar a Yve, porque achava aquilo tudo uma besteira. Só não imaginava que, na verdade, a loira estava tomada por um frio na barriga inquietante.

Yve recebeu com as mãos trêmulas a xícara de porcelana que Jamyle lhe estendeu. Num ato extremamente coordenado, a chaleira de água fervente foi dada a Niyati, que encheu o recipiente, murmurando palavras inteligíveis. A xícara foi coberta por um círculo de ametista e enquanto o chá era infusionado, Niyati acendeu um incenso com a ponta da varinha. A fumaça de tom arroxeado impregnou o ambiente com o perfume de lavanda. O ritual era sempre o mesmo e todas as presentes permaneciam em silêncio, concentradas no que se desenrolava a sua frente, de forma quase hipnótica.

Assim que Jamyle descobriu a xícara, alguns minutos depois, Yvonne levou o chá a boca, segurando a xícara com a mão esquerda e tomando um gole atrás do outro. Niyati abriu os olhos quando o barulho da porcelana pousando no pires foi ouvido. Yve entregou a xícara a ela, com as pupilas arregaladas de curiosidade. Gwen desejou que o prognóstico fosse positivo, sobretudo para que não tivesse que se submeter a ouvir lamúrias pelo resto do mês.

Na teoria, sabiam bem como funcionava: O chá depositado na borda representava o presente ou os próximos dias. Aquele depositado nas laterais indicaria o futuro. O fundo previa um futuro muito distante. Pontos, traços e até símbolos eram formados sobre a superfície da xícara e ao ser interpretados em conjunto, diziam muita coisa. Até mesmo a quantidade de chá acumulado em cada desenho, numa diferença muitas vezes sútil, podia ter significados completamente díspares. Embora todas elas tivessem cursado Adivinhação quando terceiranistas, e algumas continuassem estudando até hoje, certezas e possibilidades se mesclavam muito facilmente e entendimentos poderiam não passar de equívocos. Exceto se você fosse dotada de clarividência. E uma tão expressiva como a de Niyati era muito rara de encontrar.

- O sol vai se pôr muitas vezes antes de que você realize seus desejos, se você não abrir os olhos para as possibilidades. – A voz arrastada de Shafiq era inebriante e seguia uma cadência quase sobrenatural. Ela mantinha o olhar fixo na xícara, mas parecia estar enxergando em um ponto muito depois. – Suas apostas são frágeis, um castelo construído na areia. Ondas de grande poder conseguirão derrubá-lo enquanto você dorme. – O silêncio ao redor era estarrecedor. – Você precisa enxergar além do que o que está posto e se moldar às oportunidades. Se você não tomar as rédeas, domesticando o destino sob suas mãos, não vai ser capaz de se reerguer depois de ser envergada pelo vento.

Antes que Yve pudesse abrir a boca, a xícara foi coberta por um pedaço de tule e rapidamente retirada das mãos da vidente pela assistente. A ruiva respirou fundo, fechando os olhos e se jogando contra a poltrona. Sabiam que não adiantaria reclamar ou perguntar. Quando a xícara era coberta por Niyati, não havia mais nada a ser dito. O tule era apenas um símbolo, para mostrar as presentes que o véu se fechara e ela já não enxergava mais nada.

Leona foi a segunda a sentar-se de frente a vidente. Estava visivelmente desconfortável e se remexia na cadeira, tentando encontrar uma posição cômoda. Niyati pousou os dedos sobre a testa dela e a garota se sobressaltou, enquanto a outra sibilava um mantra até que se acalmasse. Tomou a bebida em goles curtos, com uma expressão de descontentamento: Leona detestava chá. Sentada ali, parecia uma criança a quem a mãe infligia uma poção de sabor desagradável para curar uma enfermidade.

- Há ciclos que não podem ser quebrados sem desestabilizar a harmonia. A sua força interior se mostrará contrária ao que se espera quando chegar a hora de decidir. A partir daí, haverá dois caminhos: Aquele que o seu eu seguiria para buscar a coerência e aquele que terá o impulso de seguir.

- E qual é o certo? – A voz grossa de Leona soava concentrada, racionalizando o que ouvira.

- Ainda não foi traçado o que virá depois da encruzilhada. Tudo dependerá da sua inclinação para seguir a versão de si a quem está habituada a conhecer ou aquela que está no âmago, tentando se libertar.

Gwen se assustou quando seu nome foi chamado, mas sentou-se logo na cadeira. Seu coração batia forte no peito e ela soltou o ar devagarinho. A xícara era pesada, então bebericou com cuidado, receosa em fazer algo errado e estragar tudo. Não teria outra chance como aquela! Os olhos quentes de Niyati acolhiam os dela, num abraço. Entregou a xícara a moça, sorrindo repleta de expectativa. O silêncio que se estendeu a seguir lhe deixou inquieta e nervosa.

- Vai haver luto. – A garota disse, finalmente. – Logo. Mas não ainda. Só... Mais rápido do que se espera. O luto será o início, o fim e novamente o início. Virá para encerrar o que precisa ser encerrado e inaugurar o novo. É preciso coragem para enfrentar as quebras e um coração aberto para aceitar os rompimentos e os recomeços. Se prepare e a sua resiliência será seu trunfo!

Como sempre, Narcissa parecia confiante, como se tudo que acontecia fosse ordenado por ela. Ao contrário de Gwen, que agora tinha um pedra pesando em seu estômago. Substituiu a ela, acomodando-se na poltrona como uma princesa, cruzando a perna sem perder a pose. Não tinha pressa, bebendo o chá da forma que faria se estivesse em uma festa. Quando entregou a xícara a vidente, parecia que ela é quem estava no controle do que seria dito, que já sabia tudo que ouviria.

- Como de frente a um espelho, você verá refletida em si a imagem do homem a quem pertencerá. Abrigo, amante e companheiro. Ele será seu complemento, mas também seu reflexo. – Girou a xícara, analisando uma vez mais antes de concluir. - O tempo vai lhe mostrar que há muitas combinações entre querer, poder e possuir, mas somente o alinhamento entre os três lhe trará a plenitude pela qual sua alma tanto anseia.

Por fim, chegara a vez de Effie. A moça parecia a mais descrente de todas. Dentre as cinco, Euphemia fora a que abandonara a Adivinhação mais cedo, ainda no terceiro ano, trocando-a por Runas Antigas na segunda semana de aulas. Encarou Niyati com os olhos faiscando, quase de forma desafiadora. Para Effie, aquilo seria como um experimento científico. Gwen tinha certeza de que ela decoraria cada palavra, avaliando acontecimento por acontecimento que se sucedesse em seus dias, para averiguar o quanto corresponderia a previsão.

- A mentira é inimiga da paz de espírito. Por todo o tempo em que seguir de mãos dadas com ela, vai perder a si mesma num abismo de frustração. Para nada tem utilidade a lógica a quem você tanto cultua, se não for empregada em favor da verdade. O sentimento é mais rápido do que a razão e sabe de tudo antes mesmo que a mente perceba. Quando mais você negar, mais vai crescer dentro de você o grito. Fugir pode ser o caminho, desde que não esteja fugindo de você, mas para você.

- E o amor? O casamento? – Gwen disse alto, rasgando o silêncio que se instalara entre a amiga e a vidente, aproveitando enquanto a xícara não tinha sido coberta para desvendar o mistério que todas estavam ansiosas para descobrir.

- Eu não vejo casamento... Só o encontro de duas almas que se conhecem há muito tempo. – Niyati murmurou, perdendo o olhar no infinito enquanto punha o tule em cima da porcelana.

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- Niyati disse “como de frente a um espelho”, Cissy! – Gwen insistiu, apressando o passo para conseguir acompanhá-la.

- Eu me lembro bem. Obrigada, Gwen!

- E então?

- E então o quê?

- Tá na cara que é ele, Cissy! Por que você não admite?

Ela parou no corredor, soltando o ar pela boca. Virou de frente pra amiga, segurando-a pelos ombros. Já haviam se passado quatro dias e suas colegas de quarto ainda não tinham desistido da tarefa de fazê-la admitir que a previsão fora bem clara: Evan Rosier seria o homem a quem Narcissa iria pertencer. Por causa disso, era óbvio para elas que Cissy tinha que começar imediatamente a unir sua vida a dele.

- Escuta uma coisa, Gwen. Uma coisinha só. – Fixou bem os olhos nos da outra, com uma expressão fechada. – Não me importa se for dito por Niyati Shafiq, Cassandra Trelawney ou até por Mopso: Eu não vou precipitar as coisas. Está bem? Eu vou viver a minha vida, como eu acho que tenho que viver. E se a previsão dela estiver certa, as coisas vão acontecer, porra!

- Mas, Cissy! Lembre-se do que ela disse pra Yve!! Se você não assumir as rédeas, talvez as coisas não aconteçam.

- Eu não penso que seja o caso. Ela falou com muita firmeza, Gwen. Não disse que tinha mais de um caminho, como disse pra Leona... – Arrumou o rabo de cavalo alto que estava usando, apertando um pouco mais o laço. – Não importa o que eu faça, vou estar de frente a esse cara. Então, enquanto eu posso, eu vou fazer o que eu quero. ‘Tá bom?

- Por que você tem que ser tão difícil? – Gwen esfregou as mãos no rosto. - Ele é um homem maravilhoso e está louquinho por você!

- Se estivesse tão apaixonado como vocês dizem, já teria me convidado pro sair no dia de São Valentim.

- Ele está com medo de receber um não! É por isso que você tem que convidar, Cissy!

- Eu não vou convidar ninguém porque uma vidente SUPOSTAMENTE disse que ele vai ser o homem da minha vida. Não dá nem pra saber que é ele, afinal.

- “Como num espelho”!!!

- Quer saber mais o que, Gwen?  - Jogou as mãos pro alto, irritada. - Foda-se! Um grande foda-se, de verdade. Vocês parecem umas malucas e eu já cansei dessa merda!  Na hora que eu quiser dar pro Evan, eu faço isso, sem vocês precisarem agir como umas malditas empresárias dele! E se for pra ser, vai ser. Eu te garanto! – Mordeu suavemente os lábios inferiores, numa tentativa de se acalmar. – Agora, por favor, dá pra você me deixar fazer a minha ronda em paz, caralho?

- Nós vamos conversar mais tarde. – Fechou a expressão e virou de costas, com os cachos acastanhados balançando ao seu redor.

Quinta-feira à tarde. Era um dos turnos de ronda semanal que correspondiam a ela. Naquele turno, devia usar o tempo sem aulas para vasculhar todos os cantos possíveis do castelo, procurando por qualquer aluno que pudesse estar fazendo o que não deveria. Além desses, havia pelo menos mais um horário de ronda noturna exclusivamente nas masmorras, se ela conseguisse não ser sorteada para o horário do domingo, que era revesado entre os seis monitores da casa.

A verdade é que sempre havia detestado aqueles turnos. Costumava passar cada segundo se penalizando, reclamando a si mesma por tão infeliz destino! A cada semana, contava um dia a menos para se ver livre daquele distintivo. Nunca tinha entendido por que Effie não fora selecionada como monitora ao invés dela.

Com o fim da escola se aproximando, Cissy começara a usar o tempo para apreciar o ambiente. Ao fim de tudo, sentiria falta daquelas paredes e tudo que elas guardavam. Hogwarts era como um mundinho particular, protegido em grande parte do exterior. O castelo era belo, enigmático, e logo se tornaria o nostálgico cenário de todas as lembranças que havia construído durante aqueles sete anos. A cada dia que passava, fazendo a despedida se aproximar, ela se apegava mais à magnitude daquele lugar. Agora ainda mais, visto que James a estava mostrando um pouco das belezas escondidas do castelo. Uma parte muito bonita de sua vida ficaria guardada ali.

Assim, ia pelos corredores, turno após turno, fingindo concentrar-se nos alunos, mas enchendo os pulmões daquele ar e os olhos com aquelas imagens, para garantir que um pedacinho de Hogwarts morasse pra sempre em seu peito. Tateava as estátuas e perdia longos minutos observando um único quadro em todos os seus detalhes. Parou de frente a janela, sentindo o vidro gelado sobre seus dedos, enquanto sua mente vagava pelo jardim. Até mesmo andara ansiando pela chegada da primavera, para poder mergulhar no lago mais algumas vezes antes de ir embora pela última vez.

- Senhorita Black? – Ela tirou a mão da janela num segundo, virando-se na direção da voz que a chamava.

- Olá, Sr. Malfoy! Que grata surpresa! Como vai? – Sorriu, solicita, com o coração ainda acelerado pela surpresa.

- Muito bem e a senhorita?

- Ótima, obrigada por perguntar!

Os cabelos claros de Lucius Malfoy resplandeciam sob os raios de sol do fim de tarde. O rapaz, parado a pouco mais de um metro dela, usava um terno cinzento, impecavelmente cortado, que lhe ressaltava os olhos quase da mesma cor. Exatamente como ela fazia, Malfoy também a analisava de cima a baixo. Ao contrário de Narcissa, ele nunca se preocupava em disfarçar que as pupilas afiadas estavam julgando cada detalhe.

De alguma forma, a arrogância lhe caia bem, como uma luva. A postura altiva tinha um impacto definitivo e estava diretamente ligada a imagem de superioridade que ele buscava transmitir: As mãos no bolso, a figura analítica, os cabelos habilmente penteados, o traje bem passado de tecidos inquestionavelmente caros. Tudo ao redor dele parecia anunciar a riqueza que sua família ostentava.

- Perdida em pensamentos? – Perguntou, com um sorriso jocoso no rosto.

- Me encarregando da ronda. – Ela esclareceu, fazendo questão de arrumar o distintivo no peito.

- Ah, sim! Eu não me lembrava que você era monitora. Não parece muito... Você. – Disse isso ao mesmo tempo em que baixava os olhos, com certo desprezo.

- Há algumas coisas que uma garota tem que fazer, não é? Sobretudo quando se trata de um legado familiar!

- É justo.

- De qualquer forma, não me restam muitos dias pela frente por aqui... Vou me formar em junho.

- Bom, minhas congratulações!

- Obrigada! E você? O que o traz de volta ao castelo? – Estava de fato curiosa em saber o motivo que o fizera retornar tão inesperadamente.

- Trabalho, na verdade.

- Já? – Ela franziu o cenho. – Mas você recém retornou da América!

- É. Sou o mais novo Assistente do Chefe do Departamento de Cooperação Internacional em Magia.

- Parabéns! Isso soa como uma carga extrema de trabalho e uma remuneração humilhante. – Deu uma risadinha, prendendo atrás da orelha alguns fios de cabelo que estavam soltos do penteado.

- É exatamente isso. Exatamente! - Malfoy riu, sem tirar aquela olhar crítico de cima dela. – Mas suponho que há algumas coisas que um homem tem que fazer, não é?  - A figura dele transbordava ironia. - Não estou no cargo pelo dinheiro. É irrisório! O que me interessa são as conexões. Principalmente para quem recém retornou da América.

- Então de fato você retornou em definitivo... Algum motivo específico para se manter aqui?

- Oportunidades interessantes de estabelecer um futuro promissor... – Chegava a ser inquietante a forma como os olhos dele se mantinham fixos nela, sem se desviar um instante sequer.

- Bom, espero que alcance seus objetivos! – Narcissa observou o corredor atrás dele, desconfortável. - Deve ser uma experiência interessante retornar a Hogwarts depois de alguns anos.

- Tem sido mais pesarosa do que eu julgava. – Arrumou a própria gravata, finalmente afastando as írises em outra direção. – Não consigo evitar lembrar dela vendo esses corredores.

- Claro. É verdade! – Sua garganta se apertou um pouco, mas não podia perder a pose. Lucius Malfoy e Andrômeda tinham sido melhores amigos em Hogwarts, ele não fizera por mal em citar seu nome. É óbvio que tudo ali o recordaria dela.

- Bom, eu suponho que a senhorita precise retornar a sua ronda.

- Sim. Certamente há muitos alunos desrespeitando o artigo 138 que precisam ser repreendidos! – Narcissa brincou, atrevendo-se a contar uma piadinha. Malfoy havia sido monitor também e era chacota entre os monitores que houvesse uma proibição sobre guardar uma xícara de chá no bolso enquanto se caminha pela torre de astronomia.

- Ah, é? – Ele não se lembrava, droga! Acabara de fazer papel de idiota. – No meu tempo havia mais preocupação com o 221. – “Proibido subir as escadas da torre do diretor de costas”, um clássico. Ela riu, aliviada por não ter virado piada para ele.

- Foi bom te rever, Sr. Malfoy! – Fez uma rápida mesura com a cabeça, antes de prosseguir seu caminho, deixando o rapaz pra trás.

- Igualmente, Srta. Black. – O ouviu dizer e virou o rosto, para vê-lo parado no mesmo lugar, observando-a se afastar.

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