Tarde demais pra voltar a dormir

Harry Potter - J. K. Rowling
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Tarde demais pra voltar a dormir
Summary
Uma gota caindo na água reverbera no lago inteiro. Uma troca de olhares que se estende pode mover todas as peças ao redor. James Potter e os problemas são velhos amigos, prestes a se conhecer muito melhor. O que há por trás dos encantadores olhos que parecem persegui-lo por todos os lados?Para Narcissa Black, tudo é heterogêneo. Em que ponto do infinito tudo se mistura? Se você procura uma história de drama, amores e nós do destino se entrelaçando, é tarde demais pra voltar a dormir!Essa é uma história sobre o que poderia ter acontecido enquanto os marotos estavam em Hogwarts, sob a sombra da Primeira Guerra Bruxa. A maior parte dos personagens e cenários descritos pertencem a J. K. Rowling e são utilizados nessa fanfiction sem nenhum tipo de intenção comercial. Algumas datas e ordens de acontecimentos foram alteradas para que a história pudesse fazer sentido.
Note
Olá, pessoal!Gostaria de lembrá-los que essa história se passa nos anos 1970, então algumas atitudes, falas e pensamentos dos personagens podem parecer ultrapassados e inaceitáveis para os dias de hoje. Lembrem que tudo está inserido em um contexto! Fumar em qualquer lugar era um hábito da época, por exemplo.Aproveito pra lembrá-los de ter moderação com o consumo de álcool e cigarros, que é bastante frequente nessa história.Por fim, alerto que a história é ampla e vai comportar um monte de possibilidades, se você não se sente confortável com linguagem chula, violência, homossexualidade/bissexualidade, bullying, cenas de sexo e outros tópicos delicados, eu tomaria cuidado!ATENÇÃO!!Este capítulo contém cenas de bullying.
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Estrelas

Seus olhos ardiam, forçados a conter as lágrimas que permaneciam na eminência de derramar-se. Ela havia emplastado o rosto com uma enorme quantidade de maquiagem, para disfarçar o semblante abatido. Antes de sair do quarto, encarara a própria imagem no espelho durante um largo tempo e ficara satisfeita com o que havia visto. Ninguém se atreveria a mexericar que Narcissa Black estava nada menos do que primorosa naquela noite, delicadamente ornada pelo vestido brilhante cor de damasco. Contudo, seu interior estava esmagado pela perda. Seu peito se tornara oco, subitamente esvaziado pela ausência de Andrômeda, uma das únicas presenças as quais ela estivera acostumada a possuir desde o início da vida e cuja expectativa de perder sempre parecera inconcebível em tão tenra idade.

Elevou o queixo, para demonstrar superioridade para os que estivessem olhando. Ela sabia que boa parte dos presentes estava. A notícia da expulsão de Andrômeda se espalhara fluidamente pelos círculos sociais e, ainda que a verdadeira razão se mantivesse no campo da especulação, todos os olhares despejavam-se sobre a família Black naquele último dia de 1975. À medida que a criança florescesse no ventre da moça, o motivo seria velozmente conhecido por todos. Tão rápido quanto toda a história seria esquecida, Narcissa desejava.

Diante de tamanha turbulência, precisavam parecer fortes e passar uma sensação de que a união familiar estava mais sólida do que nunca. A robustez do noivado de Bellatrix e seu futuro entrelace com a casa Lestrange ajudariam a afastar os comentários. Entretanto, necessitavam mostrar-se inabaláveis diante dos julgamentos desde o primeiro momento. Era essencial que passassem a impressão de estarem tão firmes em seus valores que a repentina expulsão de um membro não seria capaz de abalar seus rijos alicerces familiares.

- Então eu disse: Você só pode estar brincando, vadia! - Harriet Burke esganiçou, causando uma explosão de risos.

Ela fingiu participar das risadas, enquanto questionava-se quanto tempo aquilo tudo ainda ia durar. Narcissa tinha bastante prática e mesmo assim estava sendo um martírio manter-se bela e impassível quando sua garganta estava travada pela angústia. As risadas de seus amigos lhe pisavam os ouvidos. O círculo de pessoas parecia capaz de devorá-la, tão vivazes eram suas vozes e suas cores! Tudo em sua volta era muito rápido, muito forte, muito berrante. Bebericou a taça sem nenhum ânimo, sem fixar-se a nada do borrão que era o ambiente a sua volta.

Seu estômago vazio ardia, mas não conseguia sequer pensar em alimentar-se sem sentir as entranhas se revolverem. As finas tiras que prendiam o sapato apertavam o seu tornozelo e seus pés latejavam pelo incômodo de serem submetidos ao salto alto e ao bico fino do calçado. Arrumou o colar de pérolas no pescoço, afrouxando-o ligeiramente, numa última tentativa de diminuir o incomodo. Arrancaria aquela porcaria assim que chegasse em casa!

- O que você acha, Cissy? Cissy? – A pergunta dirigida a ela pela voz de Effie a trouxe de volta a realidade.

- Desculpa, eu não estava ouvindo. – A sutil rouquidão de sua voz guardada há quase dois dias a espantou. – Preciso tratar de um assunto com Bellatrix. Com a sua licença! – Anunciou antes de abandonar o salão de baile.

O peso dos julgamentos empurrava sua cabeça para baixo, enquanto ela atravessava o ambiente. Contudo, ela manteve o porte altivo até estar longe da vista. A decisão que vinha postergando foi tomada em um instante e tornou-se irrevogável para ela. Jogou tudo para o alto, recusando-se a perder mais tempo com aquilo. Para nenhum dos presentes, a abolição da presença de Andrômeda tivera importância. Para além de uma boa fofoca, a vida da garota não significava nada. Era simplesmente como se nunca tivesse existido no meio deles, ainda que uma semana atrás ela fosse inerentemente parte daquele ambiente. Todos a fitavam, mexericando sobre o que a loira tomaria como modelo: Seguiria a mais velha, enlaçando-se em matrimônio a uma família respeitável ou seria influenciada pelo mal exemplo da outra?

Não tinha motivos suficientes que a obrigassem a se submeter àquela inquisição velada. Não lidaria com aquilo enquanto seu peito estivesse tão dominado pela dor da ausência.  Tomou o próprio agasalho das mãos do elfo responsável pela chapelaria, murmurando um agradecimento atravessado. A escolha do sobretudo quadriculado em tons de dourado que havia ganhado como presente de aniversário de Gwen havia sido estrategicamente feita para tentar esconder com o brilho da peça a opacidade que ela sentia por dentro.

Tateou o mesmo bolso três ou quatro vezes até finalmente encontrar a caixinha. Seus dedos tremiam, talvez pelo nervosismo de estar abandonando a festa, talvez pela falta de açúcar no sangue. Acendeu o cigarro com a ponta da varinha, tragando aliviada enquanto caminhava até a porta da mansão.

- O que pensa que está fazendo? – Sua mãe prendeu os dedos em volta de seu pulso, falando em voz baixa.

- Meu cérebro está a ponto de explodir. Tenho uma dor de cabeça terrível, mamãe! Estou indo pra casa.

- Ainda estamos no início da noite, as pessoas vão falar!

- As pessoas já estão falando e eu ainda estou aqui. Eu vou pra casa.

- Cissy!

- Só hoje, me deixe não ser a garota perfeita, mamãe. Só hoje! E eu prometo que vou dar a você tudo o que desejar de mim. – Implorou.

Os dedos de Druella afrouxaram o aperto, permitindo que a filha se desvencilhasse. Deixou a mãe para trás, sem dar a ela mais nenhuma palavra. Seguiu para o jardim, acompanhando o caminho livre de neve até os portões. As luzes vindas do salão brilhavam, mas ali só a ponta do cigarro e a lua iluminavam seu rumo.

- Aonde caralho você vai? – Foi a vez de Sirius puxá-la pelo braço, saindo de algum canto escuro em que estava isolado do lado de fora.

- Estou indo pra casa. Minha cabeça está estourando! - Continuou caminhando pelo jardim e o garoto seguia seus passos de perto, prendendo-a.

- Ótimo! Excelente! Vá embora e cague tudo pela sua própria conveniência.

- Você não hesitou antes de fazer isso e destruir a comemoração do meu aniversário, né?

- Essa porra não importa mais depois de tudo.

- Talvez não, mas quem sabe seja a minha vez de usar essa carta! – O portão se abriu e ela saiu na rua deserta.

- Você acha que eu estou adorando ficar aqui, fingindo que nada aconteceu com a Andy?

- Não diga o nome dela.

- Por que não? Ela não morreu, sabia? Ninguém acaba só porque a família é preconceituosa e escrota.

- Você pensa que está sendo fácil pra mim? Não consegue entender o quanto tudo isso está doendo? Acha que eu estou fugindo pra me divertir ou que estou pouco me fodendo pra impressão que isso vai passar?

- Parece, já que vai embora como uma covarde enquanto eu sou forçado a ficar aqui brincando de família perfeita!

- Vai se foder, moleque! - Ela empurrou a ponta acessa do cigarro contra a pele da mão que o primo usava para segurá-la e, assim que ele puxou o membro açoitado pela dor, aparatou.

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- James Potter na área, qual a urgência urgentíssima com a qual posso ajudá-lo, senhor?

- Por que tanto sarcasmo com seu querido amigo, Pontinhas?

- Você já me chamou quatro vezes só hoje, Almofadinhas. Será que não consegue nem mijar sem que eu esteja presente? - Refletida pelo fragmento de espelho, a figura de James revirou os olhos.

- Na verdade, não, filho da puta. – Ele girou o espelho para que o amigo pudesse contemplar o amplo ambiente do banheiro em que estava trancado.

- Caralho! O fundo do poço chega para todos. – Potter gargalhou a ponto de deixar que a cabeça pendesse. – Bonito banheiro! Tem bom gosto, esses Rowle. – Zombou, rindo mais um pouco antes de tomar um longe gole de cerveja amanteigada.

- Vamos, continua! Vai caçoando do meu sofrimento!

- Oh, Merlin! Pobre Almofadinhas! Submetido miseravelmente a uma festa de luxo com todos os tipos mais caros de comida que podem existir, os melhores músicos da Grã-Bretanha e pelo menos catorze gostosas que dariam tudo pra meter um beijo na sua boca.

- Se você estivesse no meu lugar, não acharia essa merda tão incrível.

- Obviamente a festa não chega aos pés das promovidas pelos seus pais, eu sei. É um desrespeito com a sua pessoa ser obrigado a frequentar uma festinha de quinta como essa!

- Você não tem ideia, Pontas! Eu juro... Não é nem meia noite e a porra dessa festa já virou um enterro!

- Da sua prima? – Sirius franziu os lábios, concordando. – É... Deve demorar um bom tempo pra esquecerem isso.

- O que me deixa ainda mais fulo é que todos fingem que tudo não está girando ao redor desse assunto, mas é óbvio que está. Hipócritas do caralho! Essa merda é demais pra mim, cara! Até a Narcissa já vazou... Não há nada na atmosfera desse lugar que não seja julgamento e um certo deleite por ver a família Black saindo da linha.

 - O que?

- É o que eu falei, Pontas. Esses abutres estão voando em cima de nós, morrendo de prazer porque pensam que nos pegaram no pulo!

- Não isso! A Narcissa foi embora?

- Dá pra acreditar? Ela que sempre fez questão de posar de Srta. Perfeição! Não aguentou a pressão. Inventou uma dor de cabeça pra se mandar.

- Ela te falou pra onde?

- Claro que não! Aquela escrota tá pouco se fodendo pra mim. – Foi a vez de ele revirar as pupilas. – Pela forma como os olhos dela estavam marejados, deve estar trancada no quarto. A patricinha nunca iria deixar que alguém a visse chorando. Afinal, minha fútil priminha parece ter revelado possuir um coração embaixo de tanto plástico! Quem diria!

- É... Quem diria!

- Eu não vejo a hora dessas férias de merda acabarem e eu me enfiar de novo em Hogwarts. Estou me coçando de saudades de Hogsmead e aquela porra toda! O Aluado e o Rabicho devem estar se divertindo muito mais do eu que nesse inferno. E ainda vou ter mais um monte de dias sem...

- Eu preciso ir, cara. – James o interrompeu, com o olhar perdido em um ponto acima do espelho. – Estou indo! – Gritou, ainda que Sirius não tivesse ouvido ninguém o chamar. - Minha mãe tá enchendo o meu saco pra sair do quarto.

- Fala pra ela que estou mandando um beijo.

- Eu falo. Vê se aproveita a bebida de graça e enche essa cara pra parar de me importunar.

- Você é um filho da puta, Pontas! – Sirius xingou, mas o reflexo no espelho já tinha desaparecido.

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O mundo acima de sua cabeça parecia girar. Envolta pelos lençóis cor-de-rosa da cama de dossel, ela se sentia tão pequena! A lareira flamejava, mas não o suficiente para aquecer seu peito. Estava cansada de estar tão vazia! Num impulso, lançou o braço contra o tinteiro, derrubando-o, junto com o colar de pérolas, da mesa de cabeceira direto para o chão. A tinta rapidamente se espalhou, manchando de preto o felpudo tapete verde-água. Afundou-se ainda mais nos lençóis, com o corpo sendo sacudido pelo pranto soluçado.

O diário com capa de couro, que ela segurava firmemente, tremia em suas mãos, aberto. Sobre as folhas, um nome transcrito centenas de vezes: Andrômeda Black. Se a magia carregada pelo caderno fosse realmente forte como Severus lhe prometera, sua irmã poderia continuar a existir ali de forma segura, naquele pedaço de pergaminho ao qual apenas ela teria acesso. Num mundo somente dela, tudo permaneceria no lugar certo, como tinha que ser.

O primeiro estalido despertou-a do torpor. O segundo fez com que virasse a cabeça, desconfiada, em direção a varanda, franzindo o cenho no tempo exato para que fosse capaz de acompanhar o terceiro alcançando o vidro. Levantou-se, fechando o diário e escondendo-o apressadamente debaixo do travesseiro. Abriu a tranca e afastou as portas. A quarta pedrinha passou voando ao lado de sua orelha e atingiu a estrutura da cama. Fora dos muros da mansão, um vulto flutuava envolto pela escuridão da noite e um pico de pavor tomou conta de seu corpo. Seu coração se acelerou-se ainda mais do que no instante anterior, se é que isso era possível, quando James Potter acendeu a varinha. Montado numa vassoura, ele acenou, minúsculo pela distância.

“Mas o que diabos?”, pensou enquanto corria até a penteadeira para tomar a própria varinha. Murmurou os sete contrafeitiços de proteção, respirando fundo entre cada um para não permitir que o nervosismo a fizesse errar algum deles. No momento seguinte ele pôde entrar no terreno, sobrevoando o jardim até alcançar a casa.

- Essa não é a maneira mais adequada de aparecer na casa de alguém. – Reclamou, assim que ele parou, flutuando, em frente a varanda.

- Então estamos quites, mademoiselle. Essa não é a maneira mais adequada de receber uma visita!

- O que você veio fazer aqui?

- Resgatar você. – Deu de ombros e abriu um sorriso confiante, enquanto passava a mão pelos cabelos.

- De que? – Ela revirou os olhos e deu-lhe um sorrisinho com o canto dos lábios.

- Um passarinho me contou que você estava mal. Pensei que uma mudança de ares podia te fazer bem. E também... – Coçou a nuca, pensando no que ia dizer. - Achei que seria um desperdício que você rompesse o ano sozinha!

- Eu não... Estou no clima pra comemorar.

- Te entendo! Numa festa de gente tão careta e pomposa, eu também não me sentiria no clima. Mas é sorte sua que eu tenha algo bem diferente pra te oferecer hoje, senhorita!

- Você é um vigarista, Potter! – Ela o fitou com um aspecto desconfiado, irônica.

- É sério! Você está tão acostumada ao conforto dos seus hábitos, que sequer consegue imaginar o tanto de coisas brilhantes que há por ai! O mundo é esplêndido, Narcissa!

- Se há tanta crueldade nele, não tem como ser tão lindo... – Sentiu a garganta voltar a se fechar.

- Você está certa. As pessoas são mesmo uma merda! Contudo, o mundo... O mundo é cheio de coisas incríveis! Se você se permitisse olhar além desses muros, ia enxergar o que estou querendo dizer! – Ele arrumou os óculos e virou a cabeça para mirar o outro lado dos portões da mansão.

- Foi muita gentileza sua vir aqui, Potter. Mas...

- Não me venha com essa! Qual é, Narcissa?! – James despenteou os cabelos, agitando-se sobre a vassoura e voltando a pôr os olhos sobre ela. – Olha só... Há coisas encantadoras lá fora! Há tanta beleza em tudo! Só me deixa... Me deixa te mostrar!

A garota perdeu-se na cena por alguns instantes, acostumando-se a sua veracidade. Parecia irreal que James Potter estivesse voando em uma vassoura, ao lado de seu quarto, na véspera de ano novo, soltando um discurso cheio de lugares-comuns. Pela primeira vez em dois dias, ela teve vontade de rir, mas amarrou os lábios. Ele era tão clichê! Entretanto, era exatamente isso que o fazia fascinante. Como era possível que tanta baboseira emocional mexesse de forma tão inquietante com o seu coração?

- Você está pensando demais! Não dá pra realmente viver assim, Narcissa! Alguma vez você já deixou seu coração no comando? -  Olhou dentro dos seus olhos, por cima dos óculos. - Você não vai se arrepender! Eu te prometo! Você confia em mim?

 - O quê?

- Confia em mim? – Estendeu a mão na direção dela, invadindo a varanda.

Afastou-se um passo de cada vez, andando de costas até dentro do quarto. Ouviu de longe o xingamento que o rapaz resmungou assim que ela desapareceu. Deu um sorriso, imaginando-o frustrado, enquanto ajeitava os travesseiros debaixo dos cobertores e apagava as luzes com um deslizar da varinha. Com o quarto iluminado apenas pelas brasas da lareira, o amontoado de plumas de ganso desenhariam de forma suficientemente convincente os contornos de seu corpo, caso o feitiço afasta-curiosos feito sobre a maçaneta falhasse e sua mãe decidisse checar se ela estava dormindo. Colocou a varinha no fundo do bolso e saiu, fechando as portas da varanda atrás de si. Potter era a primeira pessoa que a fazia sentir vontade de estar ao lado de alguém depois de tudo, então permitiu-se ser conduzida por seus desejos. Estava certa de que um profundo arrependimento viria pela manhã, mas naquele instante, ela não se importava.

James ergueu o rosto com o barulho, acendendo um sorriso exultante. Ela enfiou os braços com destreza nas mangas do casaco, dando uma segunda chance na noite ao sobretudo dourado. Apesar das luvas, uma suave descarga elétrica percorreu sua pele quando prendeu firmemente sua mão a do garoto, subindo no parapeito e só então transpondo a varanda para acomodar-se atrás dele na vassoura. Ainda tremia ligeiramente quando prendeu os braços ao redor da cintura dele, antevendo a queda. Potter virou levemente o tronco e segurou o rosto dela pelo queixo. Como ele podia estar tão confiante a uma distância tão grande do chão?

- Não se atreva a fechar os olhos! – Ele exclamou, beijando-lhe o canto dos lábios.

Dispararam pelo índigo infinito que se descortinava a sua frente, entre rodopios, subidas e descidas. O embrulho em seu estômago aprofundou-se, lembrando a ela o motivo pelo qual preferia não andar de vassoura. James sorria de forma abundante, integrado inquestionavelmente ao ambiente. O vento bagunçava ainda mais os cabelos escuros, ampliando o ar de rebeldia que carregava. Ela deitou a cabeça sobre as costas do rapaz, apertando os braços em volta do peito dele. Deixaram para trás as construções e a paisagem abaixo deles foi se pintando de natureza. Sobrevoavam um enorme lago e Potter diminuiu a velocidade, para que planassem sobre ele.

 - Aqui em cima ninguém pode dizer o que a gente tem que fazer. Não é o mundo perfeito? – Ele soltou os braços da vassoura, abrindo-os e respirando fundo. – É como um sonho!

Narcissa se sobressaltou, abraçando-o mais fortemente. Como uma bruxa capaz de aparatar, não havia motivos racionais para que ela tivesse medo de cair. Porém, àquela altura, nenhuma parte da mente dela podia agir racionalmente. O garoto gargalhou, voltando a segurar a vassoura com uma das mãos. Com a outra, envolveu os dedos dela, mantendo-os sobre o próprio peito.

- Apenas respire. Respire e aproveite o que está ao seu redor! Eu não vou te deixar cair.

Uma fina réstia de lua minguante iluminava o céu, banhando a eles com seus reflexos. A loira prendeu o ar, liberando-o aos poucos pela boca até que seu coração retomasse o ritmo normal. Observou os intrincados padrões em branco que se destacavam sob a vassoura, formados pela neve acumulada nos galhos das árvores. Ao longe, as luzes de um pequeno vilarejo cintilavam. A fumaça das chaminés misturava-se às nuvens, que eles iam rompendo ao atravessar. O frio da noite lhe enregelava o rosto, mas ela sorriu. James puxou a mão dela até os lábios, beijando delicadamente seus dedos.

- É incrível, não é?

Era mesmo uma incrível visão! Ali de cima, tudo era tão pequeno... As casas, as árvores, as torres das igrejas. As cidades passavam por baixo deles como miniaturas. E as pessoas? Bem, simplesmente não dava pra vê-las! De súbito, Cissy sentiu vontade de rir e não se refreou. Jogou a cabeça pra trás, gargalhando. As pessoas eram tão insignificantes que tão pouca altura já era suficiente para apagá-las por completo do universo! Tudo aquilo a que ela dava tanta importância nem existia àquela altitude! Os julgamentos, preceitos, regras e até os comentários dos outros não tinham nenhuma relevância, diante de tamanha vastidão. Na imensidão do céu, tudo o que existia era o palpitar do coração de James Potter sob suas mãos.

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- Uma parte de mim desconfia que você tem algum estranho tipo de fetiche por becos.

- Nem sempre tem como chegar nos lugares fazendo uma entrada triunfal, bebê! Especialmente se essa entrada inclui uma vassoura voadora. Sabe como esse estereótipo sobre as bruxas é enraizado.

- Está dizendo que me trouxe a um...

- Vilarejo trouxa, sim. – Ele a interrompeu. - Eu só queria não ter que me esconder.

- E fez isso se escondendo no meio de um monte de trouxas? Soa bastante lógico.

- Não faça essa cara de nojo pra mim!

- Eu não estou fazendo cara de nojo! – Não conseguiu evitar que a própria voz soasse esganiçada, em tom defensivo.

- Está sim! O seu nariz está todo franzido. – Narcissa tocou o próprio rosto disfarçadamente e ele gargalhou. - Não precisa dar um chilique, mademoiselle. Você vai gostar, te juro! Além disso, aqui é outro fuso-horário e 1975 acabou de ganhar mais uma hora! Agora, dá pra resolver logo essa vassoura?

- Oui, senhorrr Potterr! Seu pedido é uma orrrrdem. – A loira brincou, rememorando a entonação da vice-diretora francesa.

Narcissa puxou a varinha e sussurrou o feitiço, acompanhando-o com floreios da mão, até que uma vassourinha do tamanho de uma chave estivesse flutuando a frente do nariz dele. James a prendeu entre os dedos e jogou dentro do bolso. Depois, uniu a mão à dela, puxando-a em direção à rua. A forma como ele segurava sua mão era resoluta, passando-lhe segurança. Sentiu o calor dele espalhar-se por seus dedos, penetrando a luva e aquecendo-a. Demorou alguns minutos até se acostumar a pegada firme, que a conduzia pela calçada sem titubear.

- Sem surtos, tá? Finja que estamos na King Cross. – Sussurrou no ouvido dela, quando avistaram as primeiras pessoas.

O vilarejo era bem pequeno e as modestas vitrines iluminadas lhe traziam uma sensação acolhedora. Na frente das lojinhas, arbustos bem aparados estavam enfeitados como árvores de Natal em miniatura, com as luzinhas cintilando em cores vivas, que se refletiam como bolinhas coloridas sobre a neve. Penduradas junto ao topo dos postes, delicadas estrelinhas dançavam ao sabor do vento. Sobre suas cabeças, cordões de luzes amareladas cortavam o céu, formando um túnel de arcos que atravessava de um lado ao outro da rua. A neve se amontoava nas beiradas das janelas e sobre os telhados. Ela esticou o braço, tocando as folhas de visgo que adornavam uma das últimas vitrines. O fim da rua abria-se em um largo, igualmente enfeitado em tema natalino.

- Lindo, não é? Deixa Hogsmead no chinelo. – Potter parou ao lado dela, correndo os olhos pelo espaço que se estendia a frente deles.

- Como diabos você descobriu isso aqui?

- Seu primo precisava ir a algum lugar trouxa pra fazer aquele monte de tatuagens... Acabamos vindo parar aqui.

- Vocês são loucos. – A frase foi morrendo em seus lábios à medida em que adentravam o largo e ela avistava o emaranhado de coisas.

- Por sorte!

Mais lojinhas e charmosos bistrôs contornavam o largo. Mesinhas estavam montadas na frente dos restaurantes, onde grupos de amigos ou pequenas famílias sentavam-se para conversar e compartilhar uma refeição, depois de passear pelo espaço amplo. Outros tantos aproveitavam as atrações distribuídas em barraquinhas pela praça. O burburinho recheado de risadas era um acalento.

James a puxava pela mão discretamente, para que o acompanhasse. Tagarelava próximo ao seu ouvido, parando para elogiar os artesanatos expostos diretamente aos feirantes e desejar-lhes um feliz novo ano. Aspirava profundamente o aroma delicioso das guloseimas preparadas aos montes nas barraquinhas. Vez ou outra, interrompia a caminhada para apontar-lhe pessoas vestidas com combinações horrendas de roupas ou usando cortes de cabelo duvidosos. Os trouxas pareciam ser especialmente bons em ser bregas. Divertia-se com isso, prendendo o riso a ponto de os olhos encherem-se de água.  Ela o seguia com uma risadinha suave, que lhe garantia um pouco mais de tempo para observar o rosto dele se iluminando durante o riso.

A área seguinte era como um pequeno parque e James gastou uma porção de moedas em dinheiro trouxa, que ela se perguntou como conseguira arranjar, para mostrar-lhe alguns jogos. O primeiro consistia em lançar argolas e tentar fazer com que caíssem ao redor de garrafas de vidro em variados tamanhos. As três chances foram gastas em vão, embora a última argola tenha ricocheteado muito perto do vidro. Ele deu de ombros, agradecendo ao vendedor, sem tirar do rosto o sorriso. O próximo jogo tratava-se de uma cesta pendurada a certa distância, onde ele deveria acertar uma enorme bola cor de laranja. Narcissa usou a mão para esconder as risadinhas quando as bolas passaram longe de entrar no aro. Potter bagunçou os cabelos, frustrado, mas voltou a dar de ombros uma outra vez. O terceiro jogo era composto por uma base em que ele deveria bater com uma enorme marreta, para fazer subir um mecanismo o mais alto que pudesse e James tampouco foi muito bem nesse. Ela não controlou a gargalhada quando o viu ralhar, frustrado.

- Força não é exatamente meu talento... – Deu de ombros pela terceira vez, fingindo um desinteresse que ela sabia que não era real. – Mas vou te mostrar! Precisão é o que faz um bom apanhador!

- Você não tem que me mostrar nada, Potter. – Ela ainda estava se dedicando a conter os últimos vestígios da risada.

- Eu não posso ser tão humilhado assim na sua frente! Deixe-me ver, deixe-me ver... – Vasculhou as barracas ao redor, franzindo os olhos suavemente. – Ah, sim. Isso vai servir! – Sorriu satisfeito, tomando-a pelo braço para que seguissem até o jogo que havia avistado. -  Merlin, eu poderia matar por um desses M&M’s!

- Matar pelo que? – Perguntou, sendo arrastada por ele até uma tenda em que centenas de coisas estavam penduradas.

- Você não tem ideia, Narcissa! M&M’s não são só chocolates. São como... Como... – Ajustou os óculos, pensando numa definição apropriada. – Como pequenas gotinhas de pura alegria. É a melhor coisa que os trouxas já conseguiram inventar! Você vai ver, em um instante. – Sorriu, entregando o dinheiro ao atendente da barraca.

O jogo era aparentemente simples, como os outros também pareceram ser. James tinha três tiros para acertar os alvos ao fundo da barraca, utilizando uma espingarda. Merlin, como eram rudimentares aqueles trouxas! Tudo era sobre força ou armas. Coisas que seriam tão simples, com uma varinha... Um alvo derrubado dava-lhe direito a um prêmio pequeno, como os doces que James almejava e cujo valor deveria ser infinitamente menor do que o que ele havia acabado de pagar.  Caso conseguisse derrubar dois alvos, poderia escolher um brinquedinho ou bichinho de pelúcia. Três alvos derrubados correspondiam a um urso de pelúcia enorme, vestido com uma roupa e um gorro vermelhos, que estava pendurado para chamar a atenção de quem passasse.

- Boa sorte! – O atendente desejou, com um forte sotaque que lhe parecia russo, entregando a espingarda a ele.

- ‘Tá no papo! – James mirou por um longo minuto, mas o tiro passou por entre dois dos alvos. – Merda! Tudo bem, eu só preciso de um. – Mirou pela segunda vez, abrindo um sorriso presunçoso para ela quando o projetil atingiu em cheio um dos alvos. – Isso já é o bastante, meu amigo. Vou querer um dos M&M’s, por favor.

- Eu posso... tentar? – Perguntou, meio incerta, enquanto o homem entregava o pequeno pacotinho de doces a Potter.

- Você sabe atirar? – A voz dele saiu estrangulada, pincelada de um desespero precavido.

- Quem sabe você possa me ajudar? – Exagerou na expressão pidona, beirando a infantilidade.

James ponderou um pouco, analisando o redor, mas anuiu, sob os incentivos do balconista. Deu a ele mais um punhado de moedas, tomando a espingarda de volta. Observou os alvos com atenção, enquanto ele se aproximava. A arma que lhe entregou pesava um pouco mais do que ela havia imaginado. O garoto parou atrás dela, com uma das mãos pousadas em sua cintura. Com a outra, levou as delas para que envolvessem a arma, ajudando-a a posicionar o dedo contra o gatilho.

- Certo. – Falou bem próximo ao ouvido dela. – Escolha o alvo que você vai querer acertar... Então, feche um dos olhos, pra mirar melhor. - Como sobre a vassoura, seus corpos estavam muito próximos e Narcissa teve certa dificuldade em respirar. – Quando estiver pronta, prenda o fôlego e... atire.

Tentou se concentrar, soltando a respiração aos poucos, mas seu coração batia acelerado, talvez pelo medo de errar, muito mais certamente pelo calor que o corpo dele causava no seu. Como concentrar-se se a mão dele sobre sua cintura queimava sua pele, apesar das várias camadas de tecido? Os dois homens a observavam temerosos, esperando que ela fizesse alguma coisa. Merda, tinha que se mover! Aspirou, prendeu o ar e atirou. Assustou-se com o disparo e a adrenalina caiu como uma bomba em suas veias. Escondeu o rosto no pescoço dele, gargalhando. O rapaz usou o braço que a envolvia para apertá-la um pouco mais contra o próprio corpo. Ele também ria e o ar quente que abandonava seus lábios formou uma ligeira nuvem de fumaça ao lado da face dela.

- Bom disparo, menina! – O vendedor elogiou e ela voltou a mirar a barraca. Havia derrubado um alvo.

- Só sorte de principiante! – James balançou a cabeça, afastando-se dela apenas o suficiente.

- Vamos ver... – Repetiu o processo conforme ele lhe ensinara, concentrando-se antes de atirar.

- Eu disse! – Ele gargalhou, vendo o projetil passar longe de qualquer um dos alvos.

- Ainda me resta um tiro. – Afirmou, séria. Organizou-se mais uma vez, travando a mandíbula. Aquele cor de rosa a esquerda, decidiu.

O lapso entre o apertar do gatilho e o término da trajetória da bala foi quase infinito, delineando-se em câmera lenta diante de seus olhos. Não ia conseguir. Se tivesse desviado sutilmente a mira... Não ia dar. Ouviu os lábios de James se abrindo com a surpresa e virou, para encarar os olhos admirados do balconista. De algum jeito, ela tinha conseguido! O alvo cor de rosa permanecia intacto, mas o amarelo, dois alvos para a direita, estava virado.

- Puta merda. – Potter xingou baixinho.

- Bons disparos, garotinha. Bons disparos! Pode escolher o seu prêmio.

- Uau! Eu... Nossa! – Vasculhou os brindes atulhados, aturdida pela confusão de cores. – Aquele ali! – Apontou, deixando um sorriso se pintar em seu rosto.

- O meigo leãozinho? – O vendedor perguntou, indicando o bichinho pendurado.

– Não, senhor. De jeito nenhum! Eu quero o outro, do lado dele. A cobra.

- Narcissa!! – James a repreendeu, afastando-se subitamente.

Segurou o bichinho e o apertou contra o rosto, sentindo a textura aveludada da pelúcia. O homem deu a eles um sorriso, esperando que se afastassem, o que eles começaram a fazer depois de desprenderem um polido agradecimento. Caminharam lado a lado, acompanhando o fluxo dos outros transeuntes.

- Que péssimo gosto!

- Escolhi com tanto carinho... É um presente pra você, meu querido! – Deu uma larga risada, estendendo a cobra de pelúcia na direção do rapaz, fazendo com que a pequena língua vermelha tocasse o rosto dele.

- Merlin! Credo! Tire essa coisa de perto de mim!

- É só uma adorável cobrinha, Potter.

- Quando você poderia escolher um leão!

- Está com medo, grifinho? – Provocou, balançando a cobra na frente do rosto do garoto.

- O que diabos era pra ser grifinho? – Gargalhou, empurrando o brinquedo na direção dela. - Pode ficar pra você, minha querida. Combina com seus olhos!

- Tudo bem! Eu sou uma sonsinha orgulhosa! – Olhou pra cima e abriu um sorriso, emoldurando o rosto com a pelúcia.

- É. Definitivamente uma sonsinha, Srta. Black! – Brincou com o duplo sentido da frase, erguendo a sobrancelha num olhar charmoso.

James segurou seu rosto pelo queixo com uma das mãos, olhando dentro dos seus olhos. Aquele instante foi suficiente para acordar as borboletas em seu ventre. O garoto desceu a mão pelo pescoço dela, fazendo-lhe cócegas na pequena faixa de pele exposta. A cútis alva ia se acendendo pelo toque dele. Com a outra mão agarrou a cobra, esticando-a, para em seguida dar uma volta ao redor da garganta dela. Puxou o sobretudo dela sutilmente, para acomodar melhor o bichinho.

- Narcissa.

- Sim? – Ela estava no meio de uma risada, entre as cócegas causadas pelos dedos dele.

- Seu colar.

- Sim! Uma cobra, como toda sonsinha merece! – Brincou, rindo mais um pouco, mas ele permaneceu sério.

- Não. Aquele que você sempre usa, com as fotos.

Um balde de água fria a atingiu, rasgando a atmosfera divertida que haviam construído nas últimas horas. Ainda que sua mandíbula se mantivesse congelada no riso, ela empalideceu. Podia ler no semblante dele o arrependimento, dando-se conta de que havia tocado no assunto errado. As borboletas em seu estômago pararam subitamente de bater as asas, dando lugar ao terrível buraco que ali se instalara há dois dias. O silêncio parecia espremê-los, tornando tudo extremamente desconfortável. O não falar conseguia ser muito pior. Então, ela soltou o ar pela boca.

- Era Rosier, não Black. – Justificou-se, olhando para o chão. – Pensei que ela precisava mais do que eu, sabe? Dinheiro e tudo mais... Para o bebê.

Permitiu que seus olhos divagassem, tentando anuviar a mente com as cenas alegres que se passavam ao seu redor. Deu-se conta de como o vento estava frio, lambendo seu rosto em silêncio. O sobretudo já não era suficiente e, de repente, tudo o que queria era estar de volta aos seus cobertores. Puxou a cobra para tirá-la do pescoço, enfiando-a no bolso do casaco. A brincadeira perdera o sentido e a graça sumira num instante. Envolveu o próprio corpo com os braços, numa vã tentativa de se esquentar um pouco.

- Quer um desses? – Desmanchou a quietude, estendendo o pacotinho de doces na direção dela. – Vão te fazer se sentir melhor.

- Não, obrigada.

- Sério, você devia tentar! Agora mesmo eu vou comer alguns, pra não me sentir mal por ser tão burro. - Pelo canto dos olhos, ela o viu pescar algumas bolinhas coloridas e colocar na boca, mastigando com vontade. Depois, James derramou mais algumas bolinhas na própria mão, estendendo na direção dela. - Tem coisas que não parecem, mas ajudam quando nada mais pode...

Tinha uma figura tão pesarosa, que ela se sentiu mal em negar. Timidamente, tomou uma das bolinhas e levou na boca. A casquinha de fora era doce e resistia só o bastante para que a textura crocante contrabalanceasse perfeitamente a cremosidade suntuosa do saboroso chocolate que tomou conta de seus lábios. Ele tinha razão: Era como uma minúscula partícula de júbilo. Como as cócegas que ele lhe fizera a pouco. Como vê-lo gargalhando.

- Eu sinto muito. – Ele murmurou, visivelmente desconcertado.

- É. – Não havia mais nada que pudesse dizer sem desabar na frente dele.

- Se eu não estiver sendo um idiota em dizer isso agora, tem uma outra coisa que acho que você iria gostar...

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- Número 37, para os delicados pés de uma princesa. – Flexionou os joelhos, fazendo uma reverência, antes de entregar os patins para ela.

- Bobo! – Narcissa balançou a cabeça, afastando-se no banco para que ele pudesse se sentar também.

O visão dela estava perdida, admirando o ambiente a frente deles. Radialmente, cordões de luzinhas coloridas se estendiam sobre a pista, acompanhando seu formato circular e formando uma espécie de toldo. A hora já estava avançada, por isso, poucos grupos ainda ocupavam o espaço, o que era perfeito, porque o teriam quase exclusivamente para si. Calçou os próprios patins, amarrando-os com vigor, para que ficassem firmes nos pés. No número que ele usava, os patins disponíveis para o aluguel eram de um tom escuro de café. Os de Narcissa eram de um bege claro, perfeitamente adequados a cor da meia calça que ela usava. Era assustador como até algo totalmente fora de controle lhe caia exatamente da melhor forma possível.

- Vamos lá? Não temos muitos tempo antes da pista fechar.  – Chamou, para trazê-la de volta a realidade.

- Vamos.

Ela depositou a mão sobre a sua e caminharam desajeitadamente até a abertura da pista. James entrou primeiro, segurando o parapeito e estendendo a mão para que ela tivesse apoio para fazer o mesmo. A garota deslizou, soltando sua mão. Aproveitou o sossego para voltar a observá-la, como fizera durante toda a noite. Era notável o quando a ruptura familiar a havia afetado. Narcissa Black, sempre tão segura e dona de si, estava hesitante. Ainda que ele tivesse se esforçado para manter a conversa, a garota preferira o silêncio em muitos momentos. Por trás da fachada, a tristeza estava estampada em seus olhos, tornando-a circunspecta. Raspando o gelo com os pés, a loira desenhou um círculo sobre a pista, ao redor dele. Ergueu um pouco uma das pernas para dar início a um salto e, antes que pudesse dar-se conta, perdeu o equilíbrio, estatelando-se no chão e escorregando pelo gelo, alguns metros pra longe.

- Você tá bem? – Ele foi até onde ela estava. – Não sai tão fácil sem um bom feitiço de estabilidade nos patins, certo?

- Ai, merda! – Narcissa bateu a mão espalmada na testa. – É claro, eu deveria ter pensado nisso.

- Vá com calma! - Estendeu os braços para ela, ajudando-a a levantar. – Não queremos nenhuma boneca de porcelana em pedacinhos.

- Vá pro inferno, James Potter! – Mostrou a língua para ele, tornando a deslizar para longe.

Contemplou enquanto ela se afastava, descrevendo trajetórias curtas na mesma direção que ela. Narcissa era suave. Deslizava placidamente pela pista, com ares de fada. Os braços compridos cortavam o céu, fluindo nas mais diversas direções, enquanto ela ia traçando figuras amplas sobre o gelo. Por um instante ou outro, franzia o cenho, deixando escapar no semblante a concentração que empregava para realizar os movimentos. Contudo, a expressão de esforço logo era substituída por um sorriso satisfeito, ao fim de cada figura bem executada, e ela voltava a avançar com tanta graciosidade que fazia parecer natural estar sobre aqueles patins. James era um patinador com razoável habilidade, assegurado pelo feitiço fixa-pé. Sabia que ela tinha treino, porque todas as famílias tradicionais eram sócias de clubes onde havia patinação. Mas, estava surpreso em ver como ela conseguia, mesmo com os patins trouxas, flanar angelicalmente sobre a pista, como uma pluma.

Como era possível que fosse tão insuportavelmente impecável? Era o único jeito que James conseguia encontrar para descrevê-la: Perfeita pra caralho. Em certos momentos, chegava a parecer etérea. Questionava-se, em seus muitos devaneios, se a paixão que sentia por ela lhe cegara completamente a vista, borrando os aspectos humanos da moça. Sim, era bem provável que estivesse envolvido e inebriado a ponto de elevá-la a um nível quase divinal. Entretanto, como poderia ver diferente se, mesmo quando demonstrava suas fraquezas, como a dor escondida sob o semblante quieto daquela noite, tudo apenas a fazia parecer mais irrepreensível?

Como poderia encontrar vestígios de algum defeito em alguém que acertava uma pirueta sem ensaio, daquela forma, um giro meticulosamente dando prosseguimento ao outro, as mãos unidas elevando os braços pelo corpo até estarem erguidos acima da cabeça? Onde estaria o erro daqueles poucos fios de cabelo soltando-se do coque que ela usava pela velocidade do giro, juntando-se às bochechas coradas pelo esforço para dar-lhe um ar tão singelo? Como apontar uma falha no sorriso que ela abriu, vendo que ele a observava? Como questionar o brilho encantador nos olhos dela, balançando a cabeça em censura e parando tudo para vir na sua direção? Narcissa simplesmente... Não tinha como ser real.

- Dá pra parar de ficar me secando? – Provocou, com um sorriso divertido.

- Eu não estava te secando!

- Estava sim.

- Ok, talvez eu estivesse. – Desarrumou os cabelos, ganhando tempo. – Mas não é minha culpa que você seja tão fascinante, Srta. Black! Eu sou fraco demais pra desviar o olhar.

- Ah, por favor!

- Sério! As vezes não dá nem pra acreditar que você é mesmo de verdade.

- Quer examinar? – A garota esticou o braço, para que a beliscasse. Narcissa permaneceu parada, deixando que ele se ajuntasse, dando um impulso para trás no último segundo.

- E então você simplesmente desaparece, como um sonho? – Elevou um pouco a voz, para alcança-la mesmo a distância.

- Eu já lhe disse antes que não sou um sonho, Sr. Potter. – O fitou, com uma figura séria, deslizando de volta a ele. Traçou um círculo em seu entorno, para logo depois segurar suas mãos e puxá-lo pela pista. – Só quero que me siga!

Num primeiro instante, Narcissa delineou um zigue-zague no gelo, abrindo e fechando os joelhos, em linha reta, até a entrada. Ele a seguiu, embora não tivesse metade da precisão ou um terço da graça que ela exalava. A moça ofereceu a mão, para que ele a segurasse. Juntos, seguiram circulando a pista. A música que soava pelos auto falantes foi crescendo, até sobrepujar o silêncio de concentração que se estendeu entre eles.

But if you feel like I feel, please, let me know that is real. You're just too good to be true! Can't take my eyes off you.

Deslizaram lado a lado, ela mantendo a cabeça levemente virada para trás, assegurando que seus olhares não se desviassem. O rapaz a girou em volta do próprio eixo, trazendo-a para si em seguida, mas ela voltou a se afastar, erguendo uma das pernas em quase 90º graus. James prendeu o ar, mordendo os lábios, receoso, sustentando-a apenas pela mão que prendia ao braço estendido dela.

I love you, baby! And if it's quite all right, I need you, baby, to warm the lonely nights. I love you, baby! Trust in me when I say...

Tornou a segurar uma das mãos dela, mas agora, estavam um de frente para o outro. Desenharam mais um círculo em volta da pista e Narcissa ia invertendo a ordem, ora de costas, sendo empurrada por ele, ora girando para conduzi-lo. As írises azuis dela cintilavam com um ar de prazer. As luzinhas coloridas piscavam alternadas sobre suas cabeças, refletindo pequenas esferas de luz no rosto da moça. Merlin, como era possível que seu coração estivesse tão apertado e ao mesmo tempo, tão inchado de sentimentos por aquela mulher?

Oh, pretty baby! Don't bring me down, I pray. Oh, pretty baby! Now that I've found you, stay and let me love you, baby. Let me love you!

Rodou o corpo dela e a puxou, colocando as costas da moça ao seu peito. Giraram juntos, esticando as pernas esquerdas para desenhar melhor a volta sobre o gelo. Envolveu a cintura dela com as mãos e trouxe-a para si, interrompendo a dança para fitá-la profundamente. Que se danassem todos os impedimentos: Ele a amava.

- Você não quer me beijar? – Ela sugeriu, ofegante.

Arregalou os olhos, surpreendido pelo explícito convite, mas não se deixou titubear por muito tempo, unindo os lábios aos dela. Mesmo de olhos fechados, podia ver as luzes coloridas dançando ao redor deles. Ela sorriu entre os beijos, prendendo as mãos na nuca dele para conseguir aproximar-se mais. Seu coração estava disparado no peito, num ritmo tão alucinado que James pensou que sofreria um ataque cardíaco a qualquer instante. Tudo se apagou e o silêncio retumbou em volta deles.

- Vamos fechar em 5, pessoal. Por favor, retornem para devolver os patins! – A voz entediada do senhor que administrava a pista anunciou.

Narcissa afastou a boca da dele, o mínimo que possibilitava que risada contida abandonasse seus lábios. Ela jogou a cabeça para trás, permitindo que o riso crescesse, alimentado pela quebra de expectativa. O rapaz riu também, ainda mantendo os braços ao redor dela.

- Parece que temos que ir. – Cochichou, colando a boca na orelha dela.

- É, vamos.

Ela deu uma última volta em torno do próprio eixo, antes de prosseguir deslizando até o portão de entrada da pista. O ponto em que o corpo dela estivera unido ao seu estava oco, formigando pelo contato recente e ele alcançou as costas da garota, cruzando os dois braços ao redor do quadril e plantando um beijo na alva bochecha.

- Está com fome? Quer comer alguma coisa? – Convidou, assim que entregaram os patins, depois de calçar os sapatos.

- Não muito, na verdade.

- Como não?

- Vocês garotos estão sempre morrendo de fome!

- SEMPRE! – Brincou, enlaçando os dedos de uma das mãos aos dela.

- Italiano? – Ela apontou o charmoso bistrô com um manear da cabeça.

- Não! Você precisa conhecer o Tony’s.

Segurando a cintura dela com as mãos, virou o corpo fino da moça para a esquina em que o barzinho estava localizado. O letreiro de luzes néon piscava, prestes a queimar. Os vidros da porta estavam extremamente engordurados e uma música lúgubre ligeiramente desafinada soava abafada, vindo lá de dentro.

- Tem certeza? – Narcissa ergueu uma das sobrancelhas, desconfiada.

- Vá por mim! A aparência não é das melhores, mas ninguém no planeta faz Fish and Chips como eles!

- Se você está dizendo... – Ela tentou girá-lo em direção ao bistrô, empurrando os ombros dele.

- É sério, você tem que provar! – James riu, arrumando os óculos para ver melhor uma das vitrines que cintilavam às costas dela. - Vai lá! Entra e pega uma mesa pra dois.

- Eu? E você, senhor especialista em trouxas? – A loira cruzou os braços na frente do corpo e riu, disfarçando o semblante alarmado.

- Se te perguntarem qualquer coisa, fala que está esperando uma pessoa. Eu só preciso resolver uma coisinha e já te encontro. – Beijou os lábios dela suavemente, antes de rir. – É sério, Narcissa! Eu prometo que já venho.

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A moça se arrumou na cadeira, afastando-se educadamente para que o garçom pudesse depositar as travessas no centro da mesinha apertada que ela e o rapaz dividiam. Deu uma última tragada, antes de apagar o fumo no cinzeiro imundo e enfiou o suporte de prata de volta dentro da carteira de cigarros, que guardou no bolso do casaco. A batata frita ainda fumegava. Ela aspirou profundamente, sentindo o cheiro salgado da fritura. Seu estômago roncou em resposta. Talvez estivesse com fome, afinal.

O bar escuro estava quase vazio, exceto por eles dois, sentados na mesa do canto, e um senhor visivelmente embriagado, que conversava no balcão com o dono do estabelecimento. No palco, mais uma canção melancólica era interpretada por um homem com cabelos oleosos que quase lhe cobriam o rosto por completo.

- Como ele consegue enxergar o violão? – Ela cochichou, enquanto James agradecia ao garçom que trouxera a comida.

- O Ranhoso deve ter uma boa ideia, você deveria perguntar a ele. – Um sorriso debochado tomou o rosto do garoto.

- Não vamos falar disso.

- OK, ok, mademoiselle. Então de que? – James mordeu um pedaço do peixe, lambuzando o restante no potinho de molho enquanto olhava para ela.

- Vamos falar de você. – Definiu, resoluta.

- De mim?

- É... Por que não me conta como foi o seu Natal?

- Se você quer saber... – Mastigou a porção de comida que ainda tinha na boca, antes de continuar. – Meus pais são velhos, eu te disse. A família inteira praticamente já morreu ou está velha demais pra sair da cama. Não é como se eu tivesse tios e primos próximos a quem visitar, o que pode ser ruim, mas tem seu lado bom: Eu não preciso ver as mesmas pessoas todos os anos.

- É uma forma de pensar. – Segurou o riso, apertando os lábios um contra o outro. - E o que fizeram esse ano?

- Fomos convidados pelos Longbottom. Mamãe e a Sra. Longbottom são amigas desde Hogwarts. Ela gentilmente insistiu que passássemos a comemoração com eles, depois de perguntar para mamãe o que ela iria fazer no feriado, na classe de pintura. Não foi de todo mal, sabe? Ela tem um filho... Frank. Um cara legal! – James ia colocando uma batatinha atrás da outra na boca, fazendo pausas para mastigar. – Conversamos um bocado. Ele está terminando o treinamento de auror.

- Uau! – Franziu a boca, num expressão de admiração.

- Fez a coisa toda parecer bem interessante! Fiquei pensando em retomar a orientação vocacional com a McGonagall. Mudar a carreira que vinha considerando.

- Para se tornar um auror?

- É, poderia ser divertido. Chutar as bolas de alguns idiotas...

- Alguns desses idiotas seriam bem versados em magia das trevas.

- Alguns.

O garoto ergueu a garrafa de cerveja, bebendo direto do gargalo. Narcissa enfiou a mão no bolso para puxar um lenço, que usou para limpar a boca da garrafa, antes de fazer o mesmo que ele. Nunca teria coragem pra enfiar qualquer coisa vinda daquele lugar xexelento na boca sem limpar antes. O líquido escorreu gelado por sua garganta, contrastando com a temperatura dos petiscos. Ainda que ela soubesse não ser maior de idade pela lei dos trouxas, não havia sido necessário convencer o garçom a servi-los a bebida. Ela podia tranquilamente se passar por uma mulher mais velha, especialmente com aquela quantidade absurda de maquiagem que utilizara para parecer apresentável na festa dos Rowle. De toda forma, era improvável que o garçom ligasse para o fato de eles serem adolescentes.

- É um projeto bem ambicioso, muitos NOMs e NIEMs. – Ponderou, acompanhando a imagem dele metendo três batatinhas ao mesmo tempo na boca. - O que você tinha escolhido antes?

- Jogador profissional de quadribol. Não dá pra perder um talento como o meu! - Ele deu de ombros.

- Mas é claro... Convencido!

- E você, o que escolheu?

- Bem, eu disse a verdade ao Slughorn. – Ela mordiscou um pedaço de peixe, analisando o rosto do garoto. - Meu grande sonho é ser mãe.

- Ambiciosa! – Ironizou, com um sorriso zombeteiro. - E ele?

- Me perguntou o que mais eu pretendia. Respondi que era provável que eu tivesse que ser uma dona de casa também.

- Porra! Eu daria tudo pra ver a cara dele!

- Ele me perguntou se eu não sonhava em ser algo mais. Tive que responder que pensava em começar uma marca própria de cosméticos, porque não aguentava mais aquela expressão de quem estava decepcionado com meu potencial desperdiçado. – Narcissa riu, tomando um gole da bebida.

- Por isso você continua em poções e herbologia?

- É. Por isso e por causa da Effie. Ela ama tanto herbologia que quase morreu de felicidade quando soube que eu ia continuar também!

- Esse é mesmo o seu sonho? – James se arrumou na cadeira. - Ou o que a sua família quer pra você?

- Os dois, eu acho. – Girou a garrafa de cerveja de um lado para o outro, fitando o líquido se mover no interior.

- Isso é bom... Que sejam a mesma coisa.

- É um saco que as pessoas me julguem tanto por querer isso! Dava pra ver na cara do Slughorn o quanto ele esperava diferente de mim. Parecia querer me empurrar algum desses trabalhos que considera mais importantes... Mas sabe de uma coisa? – Apontou pra ele, soltando sobre o prato o pedaço de peixe que segurava. – Não existe trabalho mais importante pra sociedade do que criar um indivíduo descente.

- Acho que você está certa. Não é justo julgar o sonho de alguém como irrelevante. Pensa bem... Se uma mulher não tivesse sonhado em dar à luz ao nosso cozinheiro, jamais teríamos tido a honra de experimentar a batatinha perfeitamente frita que estamos comendo agora!

- Cretino! – Devolveu a chacota, atirando uma batata nele.

 - Grifinória acaba de capturar o pomo e vence o jogo!!! – O rapaz brincou, depois de pegar o petisco ainda no ar e levá-lo direto a boca. – James Potter é o maior apanhador da década, do século, do milênio! É o maior que Hogwarts já viu! – Imitou o som da ovação da torcida, erguendo os braços em comemoração.

- Idiota! – Caçoou, sem conseguir conter a risada.

As gargalhadas borbulhavam em sua garganta e ele começou a rir junto. Adorava aqueles momentos, em que os dois submergiam nos risos, já sem saber ao certo o motivo para tanta graça. Era durante aqueles instantes que os olhos de James faiscavam de genuína alegria, cintilando por trás dos óculos em todo o seu esplendor. Ali, naquele lapso de tempo, ela acabava por se perder nele. Narcissa amava ver as ruguinhas que se formavam aos redor dos olhos do moreno e a forma como o nariz se movia, tremulando pelos risos. Aquele semblante tão divertido que ele sustentava fazia com que ela se sentisse muito mais leve, todas as vezes. Estendeu o braço por sobre a mesa, abrindo caminho entre as louças para tocá-lo. Segurou os dedos com suavidade, deslizando o polegar pelas costas da mão do garoto.

- Obrigada! – Pousou os olhos nos dele, fitando-o com profundidade. - Por me trazer aqui e me ajudar a mudar um pouco o foco.

- Eu só queria alguém pra escutar minhas últimas babaquices de 1975 e você era o alvo mais fácil, Narcissa. – Ele piscou o olho, sorrindo para ela.

- Merda, cai como uma boba! – Retribuiu o sorriso, apertando os dedos dele entre os seus.

- E a tortura não acabou. Ainda tem mais uma coisa antes de eu devolver a princesa raptada ao seu castelo...

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- Não feche os olhos!

Uma das mãos dela apertava firmemente o banco em que estavam sentados. A outra estava suando, entrelaçada com força à sua. Os pés dos dois balançavam soltos no ar, acima do riacho que cruzavam. Atrás deles, o vilarejo servia como cenário para emoldurar o rosto perfeito de Narcissa, que mantinha os olhos bem apertados, fechados pelo medo.

- Por que todos os seus passeios têm que envolver altUUURA? – Ela gritou, assustando-se com o solavanco do teleférico.

- É só um bondinho, Narcissa.

- Um bondinho... Um inocente bondinho! Eu nem sabia que essa porra existia até hoje, mas já desenvolvemos um profundo desafeto.

Não conseguiu segurar o riso, observando a figura da garota de olhos duramente cerrados. Os dois vilarejos vizinhos eram ligados por um teleférico, para que os moradores pudessem subir a montanha e passar de um para o outro sem dificuldades. James não se cansava de admirar o quão engenhosos eram os trouxas, criando soluções mirabolantes para um problema tão fácil de resolver com magia!

- Eu pensei que você ia apreciar...

- Deveria? Parece que estamos tentando nos matar!

- Eu já disse: Estamos seguros. Os trouxas fazem isso todos os dias.

- Bom pra eles. Muito bom pra eles! Mas eu não quero ficar completamente solta em uma ridícula estrutura de ferro balançando a 500 metros do chão!

- Olha pra mim. – Segurou o rosto dela voltado para si. Ela abriu uma das pálpebras, a íris azul estava acesa como nunca no breu que os envolvia. – Narcissa...

- OK. – Abriu também o outro olho, fitando-o diretamente.

- Eu já te disse hoje que não vou te deixar cair, não disse?

- Sim.

- Além disso, você sabe aparatar. Se qualquer coisa acontecer, é só voltar pra casa.

- Se eu me lembrar de fazer alguma outra coisa além de gritar!!!!

- Você vai. Não se preocupe. – Beijou os lábios dela com doçura. – Agora, aproveita essa vista! – Abriu o braço, desenhando um semicírculo no vazio para apresentar o ambiente que os cercava.

- Vou apreciar bem mais quando estivermos com os dois pés firmes no chão. – Murmurou, rabugenta, encerrando o assunto.

Ela se aconchegou contra o peito do rapaz, sem soltar a mão que prendia à estrutura do banco e se deixou admirar o horizonte. James abriu um sorriso bobo, sentindo a respiração nervosa dela. Quando poderia imaginar que terminaria o ano daquela forma?  O corpo fino de Narcissa estava apertado contra o seu, buscando por segurança. Passou o braço ao redor dos ombros dela, trazendo-a ainda mais para si. Inspirou profundamente, enchendo o peito com o ar frio, misturado ao perfume floral dela. Guardou as sensações que o rodeavam, para que pudesse rememorar aquele instante quantas vezes desejasse.

Não demorou muito para que o teleférico parasse sobre a montanha com um rangido, furando a bolha de calmaria que os cercava. Pulou para fora com agilidade, estendendo a mão para ajudá-la a descer. O alívio era nítido em sua expressão e ele escondeu uma risadinha.

- Vocês vão voltar? Vai fechar em meia hora. – O homem que operava as cabines interrogou, apontando todas as outras cadeiras vazia, ao longo dos cabos.

- Não, senhor. Esse é o nosso destino final.

- Nesse caso, tenham uma boa noite!

- Para o senhor também. E um feliz ano novo! – Ele desejou, com um aceno.

O sossego ao redor deles era quase absoluto, maculado apenas pelos passos que os dois davam em direção ao mirante construído alguns metros adiante. James prendeu a respiração, parando alguns passos atrás dela, maravilhado com a paisagem que se apresentava bem a sua frente. A neve cobria os telhados e as ruas, como um enorme e macio cobertor. As luzinhas de Natal, acessas em grande parte das casas, cintilavam visivelmente mesmo à distância, como vagalumes voando no escuro. Os riachos congelados eram longilíneos caminhos escuros, dividindo a terra. As árvores sem folhas traziam um aspecto sombrio ao panorama, completando junto à quietude o cenário de imensidão. A lua minguante traçava apenas uma fina linha no céu, não tendo ainda se tornado nova por pura vaidade. Os escassos fiapos de luar uniam-se às fracas luzes do parque para alumiar a figura da garota, parada com os braços abertos sobre o parapeito, concedendo a ela um ar quase imaterial. Colocou-se ao lado dela, pousando também as mãos sobre o peitoril.

- Magnífico, não é?

Virou a cabeça, para contemplar a reação dela, mas Narcissa mantinha a face virada para a frente, sem mover-se. Apesar da impassividade, as lágrimas que lhe banhavam o rosto brilhavam sob a meia luz, denunciando-a. Seu estômago pesou. Não estava esperando ter que lidar com a emoção sendo demonstrada tão abertamente pela moça.

- Tudo bem? – James indagou, sem jeito.

- Estava pensando se ela está se despedindo do ano sozinha... Se está com frio. Com medo. – A loira baixou o rosto e James teve um vislumbre dos olhos completamente marejados.

 - Ela tem o pai do bebê, eu acho.

- Eu não sei nada sobre ele.

- Mas ela sabe, Narcissa. E isso basta. Ele vai cuidar dela. Aposto que eles estão juntos agora! Estão bem...

- Eu sei que não deveria, mas não consigo parar de pensar nela... É como uma obsessão. Penso no que está fazendo, imagino o que deve estar sentindo, o que diria se estivesse aqui... Nunca esperei perdê-la de uma hora para a outra! – Fungou, puxando o ar com força. – Eu ouvi as histórias sobre pessoas que foram queimadas da tapeçaria. Mas pra mim sempre foi ficção, uma coisa muito distante. Não era sobre nós. Não poderia ser! Ela esteve aqui o tempo todo, até que já não podia mais estar... Às vezes eu esqueço, por um instante, que tudo aconteceu. Sinto que a vida segue normalmente. E aí a lembrança me atinge como um baque enorme... Vou sentir tremendamente a falta dela! – Fechou as pálpebras, de onde mais lágrimas se derramavam. - Eu não achei que doeria tanto!

- Eu nunca perdi ninguém. – Admitiu, empurrando os óculos para cima no nariz. – Imagino que deva ser um vazio gigantesco! Um espaço enorme que fica pela presença que se foi... Mas deve melhorar. Vai doer muito, cada vez que você pensar nela. Mas depois... Vai parar de doer. O tempo vai tratar de transformar essa agonia numa saudade boa, Narcissa. Nas lembranças dos momentos alegres que vocês viveram juntas. – Colocou a mão sobre a dela docemente. – Ela não ia querer te ver sofrer.

- Não, não ia. – Parou um pouco, para recompor a voz embargada. - Ela era muito boa em explicar as coisas, em me fazer entender. Tinha uma enorme paciência e era tão carinhosa! Só esqueceu de me falar como lidar com tudo isso, antes de ir.

- Eu acho... Acho que primeiro você deveria ficar triste. E chorar um pouquinho, pra aliviar a dor no seu coração. E depois, não lamentar mais. Deixá-la ir... E lembrar só do que foi bom.

- Você está certo. – Expirou intensamente, transformando o ar que saia das duas narinas em nuvens de fumaça a sua frente. – Mas ainda está doendo muito! – Os olhos dela voltaram a se encher de lágrimas com a confissão. – Eu vou chorar só mais uma vez, está bem? Depois vou ser forte, erguer a cabeça e seguir. Mas eu preciso chorar só mais uma vez. Uma última vez.

- Eu vou estar aqui todas as vezes que você quiser chorar, pra segurar a sua mão. – Prometeu, apertando os dedos dela entre os seus.

Os soluços da garota ecoaram pelo ar por um longo tempo, maculando a serenidade do ambiente. Não disseram nada, permitindo que o silêncio imperasse sobre os dois. Tampouco se tocaram, exceto pelo mão dele, envolvendo firmemente a dela sem se afastar. Aos poucos, os soluços foram se espaçando, perdendo a força, até se transformarem num pranto sentido e silencioso, que ela prolongou por mais alguns minutos, antes de enxugar os próprios olhos com as costas da luva.

- Sabe o que eu acho mais esquisito de tudo? – James retomou a conversa, observando pelo canto do olho como as palavras eram recebidas por ela. – A forma que as coisas ao nosso redor seguem seu curso, independente de nós.

Analisou o céu a frente deles, estendido como um enorme manto escuro acima da terra. Ainda que a lua pouco iluminasse o firmamento, pequeninas estrelas brilhavam em suas posições, unidas para traçar desenhos e destinos sobre os mortais. O fulgor de Narcissa tinha sido esmaecido pela melancolia. Seu coração estava apertado, desejando prendê-la num abraço sem fim e amenizar aquela dor.

- A gente tem a mania de pensar que tudo está ligado conosco. Que se uma estrela cadente cruzou o céu, é pra realizar o desejo que estava no meu coração! Mas as vezes, sei lá... Pode ser justamente o contrário. Não importa o tamanho da tempestade que esteja aqui dentro... – Ele tocou o próprio peito. – O sol ainda vai estar fulgurando em nível máximo do lado de fora. A gente escuta as crianças rindo pela janela, as pessoas caminhando em direção ao trabalho, os restaurantes cheios...E pensa que não pode ser. Como é que todo mundo continua agindo como se nada tivesse acontecido?

Ela franziu sutilmente o cenho, como se não compreendesse bem o objeto ao longe no qual suas pupilas se fixavam. James meteu a mão no bolso, sentindo os contornos das chaves, a varinha e a vassoura. O bolso oposto pesou em resposta, numa lembrança quase latejada de que também estava cheio. Levantou aos poucos os próprios dedos, afastando-os discretamente dos dela.

- Um dia você me disse que pensava que a sua família tinha uma relação especial com as estrelas. E desde então, eu comecei a acreditar que cada vez que uma dessas lágrimas saltasse dos seus olhos, uma delas ia se apagar sobre nós. Ou sei lá, que o brilho dos teus olhos quando você sorri era capaz de fazer surgir uma nova estrela no céu... Hoje eu tirei a prova de que nem você tinha esse poder. Elas continuam cintilando, mesmo com a sua dor.

- Você não deveria levar tão a sério os absurdos que eu digo. – A voz dela estava pesada, apertada pelo choro.

- Aí me peguei pensando que tudo isso era tão injusto! E que elas te deviam isso... Por todas as vezes que você chorou por não ter sido marcada como uma delas. – Deslizou os dedos para fora do bolso, trazendo preso neles o embrulho. – Eu gostaria de ter planejado melhor. Pôr um pouco de magia... Mas talvez a beleza esteja justamente na simplicidade do não-mágico.

Arrastou o embrulho pelo parapeito, até que estivesse ao lado da mão dela. Narcissa virou o rosto quando sentiu o presente tocar sua pele. A face tomou-se de uma surpresa culpada. Ela pegou a pequena caixinha, passando os dedos sobre o papel, como se o acariciasse.

- James, você não preci...

- Eu queria. – Interrompeu, antes que a ensaiada abnegação se prolongasse. – Queria que ao menos em você pudesse ser verdade: Que acendesse junto com os seus olhos, quando você sorrisse, e se escondesse quando as coisas estivessem difíceis.

Narcissa rasgou o embrulho sem pressa, deixando que a caixinha preta fosse se mostrando aos poucos. O vento soprou, levando o papel antes que um dos dois conseguisse segurá-lo e metê-lo no bolso. Tirou a tampa da pequena caixa de papelão, abrindo um sorriso quando avistou o pingente.

- Posso? – O rapaz perguntou.

A moça entregou o presente para ele, sem desmanchar o sorriso singelo que lhe cobria o rosto. Passou os dedos pela corrente com destreza, puxando-a para fora da caixa. Narcissa abaixou o sobretudo, deixando a pele alva a mostra. Caminhou até onde ela estava, posicionando-se atrás da loira. Ele ergueu o colar no ar, enlaçando o delicado pescoço com a fina linha de metal e travando o fecho na nuca dela, sem dificuldades. A garota levou a mão até o colo, tocando a pequenina estrela prateada com as pontas dos dedos.

- Feliz aniversário atrasado, Cissa! – Sussurrou bem próximo ao ouvido dela, cruzando os braços ao redor da cintura da moça. – E que seja um feliz ano novo para nós! – Completou, beijando-lhe a têmpora sob os fulgores dos primeiros fogos de artifício que despontavam no horizonte.

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