
Número cinco
Debruçou-se sobre o parapeito, encharcado pelo tédio. Dez dias de convivência diária com suas primas e tios já tinham sido mais do que o suficiente e agora Regulus sentia falta de Hogwarts. Talvez se estivesse em casa, pudesse arranjar alguma coisa mais interessante para fazer, sem estar constantemente atado a programação dos outros. Seus pais haviam inicialmente decidido estender a estadia de Natal pelo fim de semana e, por fim, prolongá-la até a segunda-feira, para comemorar o aniversário de Narcissa. Estava cansado daquela formalidade que os forçava a estender-se em longas visitas. Agiam como se não pudessem simplesmente aparatar e desaparatar quando quisessem na casa de seus tios.
Nos primeiros dias, havia se dedicado a esquadrinhar cada centímetro da mansão, rememorando os contornos majestosos e os detalhes luxuosos. Agora, fitava as próprias unhas com total desinteresse. É claro que não poder fazer magia fora de Hogwarts tornava tudo aquilo menos suportável, motivo pelo qual ele sentia falta da escola. Se quisesse ser um grande bruxo, deveria treinar suas habilidades de forma constante, dia após dia. Mas as leis o obrigavam a tirar férias. Que tipo de bruxo poderoso tirava férias da magia?
Bufou, mirando a paisagem de um branco infinito. Pro inferno com a neve! Nem a porcaria do jardim podia servir como distração debaixo de um clima tão inconveniente. Andy estava no trabalho, Bellatrix desaparecera em um de seus compromissos misteriosos e Sirius havia se enfiado sabe-se Merlin aonde. De companhia restavam-lhe apenas os elfos domésticos e os gritinhos irritantes das amigas de sua prima, que vinham da sala de chá. A única alternativa que lhe sobrava era encher a barriga com os comes e bebes deliciosos providenciados por tia Druella para as patricinhas que se amontavam ao redor de Narcissa. Desceu os degraus de dois em dois, diminuindo com rapidez a distância entre ele e a cozinha.
- Não se pode nem fantasiar em paz... O Wilkes praticamente tem dona! – A voz estridente de uma das garotas ressoou pelo primeiro andar, seguida por risadinhas e repreensões para que falasse baixo.
Regulus revirou os olhos, fatigado pelo comportamento frívolo das moças. Garotas conseguiam ser tão estúpidas quando estavam juntas! Tagarelavam sobre maquiagem e celebridades com tanto frisson que o deixavam enjoado. Defendiam com afinco a diferença entre o rosa antigo e o rosa chá, como se essas cores sequer existissem! De uma hora para a outra passavam a usar o mesmo modelo de saia, que estava na moda, mas ficava igualmente horroroso no corpo de todas, para jogar fora na estação seguinte, considerando que se tornara obsoleto. Nenhuma delas se preocupava em encontrar um cérebro dentro da cabeça do namorado, desde que ele fosse dotado de um corpão gostosão. Agora mesmo, podia ouvi-las fofocando, apinhadas como galinhas. O quadribol era o único terreno em que ele se sentia seguro daquilo. Dentro do campo, não havia espaço pra tanto blábláblá.
Tomou uma tortinha de uma das bandejas que flutuavam em direção ao cômodo, enfiando-a inteira na boca e engolindo de uma vez. Deliciosa! Como se aquelas mexeriqueiras merecessem algo tão saboroso... Deu uma mordida numa segunda tortinha, erguendo as sobrancelhas ao deixar a ideia que lhe ocorrera preencher sua mente. Fitou o hall vazio, correndo os olhos de um lado para o outro. Talvez ele pudesse dar uma lição nelas e melhorar um pouco seu tédio com uma só tacada. Sorriu, com a mente borbulhando.
Saiu pelos fundos, olhando ao redor para ter certeza de que ninguém o estava observando. Não teria uma segunda chance. Caminhou pela propriedade até encontrar algum pequeno graveto que pudesse estar espalhado pelo chão. A parte seguinte não foi tão fácil, mas ele sabia onde procurar. Foi até próximo do muro, onde seus tataratataravós, ou sei lá o que, haviam mandado construir uma pequena gruta. Espalhou superficialmente a neve que cobria as pedras, buscando a rachadura já conhecida. O pequeno espaço entre as pedras e a parede era o ninho perfeito para encontrar um lagarto-dos-muros igualzinho aos que Sirius amava esconder junto aos pertences de Bellatrix. Enfiou o graveto no espaço, movimentando-o só o necessário para que os animaizinhos começassem a debandar. Antes que fugissem, escolheu o azarado que seria usado para o seu show e o enfiou no bolso. Caminhou com pressa de volta aos fundos da casa, olhando constantemente para as janelas, receoso de que alguém estranhasse suas atitudes fora do comum. Mas era óbvio que ninguém estava preocupado com ele. Abriu um sorriso, sentindo o sabor doce da vingança.
- Com pressa, Reg?
O ódio borbulhou em seu peito, seguido da vergonha de ter sido pego. Virou o rosto na direção da voz, para enxergar seu irmão encostado na parede ao lado da porta dos fundos, fumando um cigarro.
- Não é da sua conta.
- Ah, sim. – Ele soltou a fumaça, dando de ombros. – Se fosse, eu te diria que está subaproveitando a boa ideia que teve.
- Do que está falando?
- Esse presentinho que você está levando pra Cissy. – Fez uma firula com a mão em que segurava o cigarro, apontando discretamente pro bolso do mais novo.
- Porra. – Murmurou, frustrado.
- Como pretende entregá-lo?
- Eu... Só... Eu... Pensei em colocar perto da porta.
- Conceito! Aclamação! Irreverência! – Sirius riu, aquela risada em que mais parecia estar ladrando e que Regulus odiava. – Você é inteligente, garoto. Mas te falta criatividade! Deixe o seu irmãozão aqui te ensinar uma coisa com a experiência que ele tem...
O rapaz caminhou até ele, envolvendo seu ombro com uma das mãos e apontando para o horizonte com a outra em que segurava o cigarro acesso, como se mirassem juntos o céu. O diabo era mesmo bom no que fazia! Olhando de cima, ninguém jamais imaginaria que estivessem sequer lembrando da existência das garotas.
- Colocar o presentinho perto da porta vai fazer com que nosso amiguinho tenha todo o tempo do mundo pra fugir e se esconder embaixo dos móveis antes que alguma delas decida sair. O espetáculo nem teria início! Mas se o que quer é transformar esse presente num motivo pra gritaria e confusão, deixe-me lhe ajudar um pouco.
- Fala logo, antes que o troço apodreça no meu bolso, Sirius.
- Por que nós não... Entregamos pra ela de bandeja? – O mais velho sorria com um semblante diabólico no rosto.
A tarefa de Regulus era simples, entrar na cozinha e dar um jeito de distrair os elfos domésticos, para que Sirius pudesse executar sua parte sem ser notado. Não foi difícil para ele começar a fazer exigências. Foi até o primeiro elfo que estava próximo a mesa, despachando as bandejas magicamente em direção a sala.
- Quanto tempo vou ter que esperar antes que me sirvam um copo decente de suco de maçã? – Fechou o semblante, encarando o elfo para deixá-lo nervoso.
- Perdão, senhor. Só um momento, senhor!
O elfo se afastou, deixando a mesa desassistida. No balcão, Lila estava concentrada em fazer tortinhas. Regulus olhou para a porta, onde Sirius jazia parado esperando. Caminhou, afastando-se um pouco da mesa, mas não o suficiente para causar estranhamento. O elfo retornou rapidamente, oferecendo o copo em sua direção.
- Mas o que diabos é isso? – Regulus cuspiu o gole de suco que tinha na boca.
- O suco de maçã, senhor. – Atordoada, a criatura arregalou os olhos para ele.
- Maçã? Maçã? Eu disse ABÓBORA! É difícil servir um homem corretamente nessa casa?
- Mas senhor, Mingu está certo de que o senhor disse maçã...
- Está questionando a minha palavra, elfo? – Ele virou o copo, espalhando a bebida no chão.
- Não, senhor. Mingu nunca questiona, senhor! – A voz da criaturinha estava repleta de pânico, quase um guincho.
- Em que podemos servi-lo, senhor Regulus? – A elfa velha se aproximou, abandonando a tarefa na pia.
- Eu só quero um copo de suco de abóbora, Lila. SERÁ QUE É MUITO DIFÍCIL TER O QUE PEDI?
- Lila vai providenciar o suco, senhor. Sem demora! Mingu, limpe isso!
- A-BÓ-BO-RA! Estou cansado de tanta incompetência! - Caminhou para trás, trombando propositalmente com outro elfo que se aproximava carregando uma bandeja de torradinhas com salmão defumado. Os petiscos estatelaram-se no chão, antes que qualquer um deles tivesse tempo de reagir. – MEU SUCO!!!
- Ai, calamidade! – Guinchou Lila, correndo nervosa pela cozinha.
Sirius aproveitou-se do pequeno caos para aproximar-se sorrateiramente da mesa. Vasculhou as bandejas dispostas, escolhendo a mais adequada para dar continuidade ao seu plano. Trouxe-a para a ponta, para que fosse a próxima a ser servida. Organizados a perfeição, aspargos frescos resplandeciam, envoltos em fatias de presunto parma. Ele sorriu, satisfeito. Ia servir perfeitamente. Um floreio da varinha foi suficiente para transfigurar o lagartinho num aspargo inquestionável e ele levou apenas mais um instante para trocá-lo por um dos verdadeiros, arrematando a fatia de presunto com cuidado. Abandonou a cozinha o quanto antes, esperando que o irmão lhe encontrasse no corredor. Regulus veio ao seu encalço instantes depois.
- Você está louco? – Sussurrou. – Estamos fora de Hogwarts. Você não pode usar magia!
- Porra, Regulus, como não pensei nisso? O Ministério vai chegar aqui em 3,2,1... – As mãos do mais velho deram-lhe sucessivos tapas na cabeça. – Aqui é uma casa cheia de bruxos. Acha mesmo que vão conseguir detectar que EU usei magia? E ainda que detectassem: Quem caralhos se importa com um menor de idade fazendo magia? – Sirius revirou os olhos cinzentos.
Abandonaram a discussão e viraram as faces rapidamente, acompanhando a bandeja de aspargos voar sobre suas cabeças até a salão de chá. O estômago de Regulus estava em ebulição e ele pensou que ia vomitar. Não tinha mais volta.
- O que acontece agora?
- Agora, meu querido, a bandeja vai entrar no meio da festinha... E Euphemia Rowle é gulosa demais para esperar sequer um instante antes de se servir. - O mais velho ampliou o sorriso demoníaco. – Ela vai pegar um inofensivo aspargo e...
- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH! – O grito de Effie foi o primeiro a soar, mas depois, o escarcéu se espalhou de forma generalizada.
- MAMÃE!!!! – Narcissa gritou.
- Merda! Vem! – Sirius o puxou e correram para se esconder abaixo da escada, tentando passar despercebidos.
O escândalo das moças era difícil de conter, como fogo ateado em uma floresta. Ouviram Druella e Walburga entrarem na sala para tentar apaziguá-las. As vozes chegavam entrecortadas até eles, mas puderam entreouvir sua mãe atirando o lagarto às chamas da lareira, enquanto tia Druella escutava a versão da história contada pelas meninas. Sua tia pedia mil desculpas, servindo um copo de água para uma nervosa Euphemia. Jurou duas vezes que os responsáveis iriam pagar pelo incidente, ainda que isso não tenha sido eficaz para acalmar as estridentes meninas. Por fim, apenas o anúncio de que providenciaria Bellinis para todas foi capaz de amenizar o estresse pungente.
- Cygnus cansou de me dizer que essa elfa caquética tinha passado do ponto. Mas não quis dar-lhe ouvidos por apego! Agora estou arrependida. – Sua tia confessou em baixo tom para Walburga, assim que abandonaram o salão.
- Vejo que em breve minha coleção ganhará um precioso acréscimo! – A mãe dos rapazes deu um sorriso sádico e a imagem da parede adornada por cabeças de elfos mortos encheu a mente de Regulus.
- Caralho, caralho. – O caçula murmurou, as veias inchadas de arrependimento.
- Cala a boca, porra! – Sirius moveu os lábios, sem emitir qualquer som, enquanto as duas mulheres passavam por eles para se dirigir a cozinha.
- Elas vão culpar os elfos!
- Felizmente! Vamos nos safar ilesos.
- Não é justo que eles paguem pelo que nós fizemos.
- A vida não é justa, Reg. Como imaginou que isso terminaria? Que elas iam deixar pra lá? – Conversavam aos sussurros, de forma apressada.
- Não. Eu só... Não medi as consequências.
- Ótimo. Agora aprenda a mensurar o que suas escolhas vão causar antes de tomá-las.
- Não dá... Não dá, Sirius. – Balançou a cabeça, consternado.
- Merda, Reg. Não seja tão bom garoto! – Seu irmão tentou puxar seu braço, mas conseguiu se desvencilhar dele. – Puta que pariu!
- Não foram os elfos, mamãe. – Assumiu, em voz alta, saindo de onde estava escondido.
Os olhos de Walburga perscrutaram o ambiente, com sua típica expressão de julgamento. Tia Druella estava alarmada, cutucando as unhas nervosamente, esperando pela reação que a cunhada teria. Certamente não queria atrair mais atenção para o incidente.
- O que você está me dizendo, Regulus Arcturus?
- Não foram os elfos que colocaram o lagarto. Fui eu. – Admitiu, sentindo-se corar e baixando a cabeça envergonhado.
- Deve haver alguma explicação razoável... – Druella interveio, decidida a abafar um possível escândalo.
- Não há, titia. Eu só estava entediado.
- Entediado? E acha que isso é razão para perturbar o aniversário da sua prima e envergonhar a nossa família na frente dos convidados?
- É só um garoto, Walburga.
- Um delinquente! Eu vou mostrar agora o que é estar entediado, seu verme! – Apertou o braço do menino. – Sem saídas, sem amigos e sem um galeão sequer até o fim das férias, estamos entendidos? E sem magia. Quero a sua varinha no meu quarto AGORA.
- Sim, mamãe. – Murmurou, cabisbaixo.
- O mesmo vale para você, Sirius Black. – Walburga exclamou em um tom alto e mordaz, esperando que o mais velho saísse de onde estava escondido. – Uma transfiguração tão avançada jamais poderia ter sido feita pelo seu irmão.
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Bebericava o licor com especial desinteresse, sentindo o desejo por um cigarro se encorpar no fundo da garganta. Encarou o velho relógio sobre a lareira da sala de estar, almejando ser capaz de adiantar o tempo. Os poucos pertences que haviam trazido para a estadia na casa de seus tios estavam organizados no fundo da sala, apenas aguardando a hora em que encerrariam as formalidades e retornariam ao Largo Grimmauld. Sirius relutava em regressar àquela casa, evitando a convivência com a mãe o máximo de tempo que conseguia. Assim, passar parte das férias na casa dos tios havia sido um refresco. Contudo, no instante em que o estúpido Regulus cometera a idiotice de confessar a responsabilidade pela brincadeira que tinham feito com as amigas de Narcissa, tudo aquilo perdeu a importância. Só queria se trancar no próprio quarto e fumar um cigarro atrás do outro para entorpecer os sentidos e anuviar as ideias.
- Sempre me encho de melancolia quando as visitas de vocês se encerram. – Tia Druella comentou, descansando a xícara de chá sobre o pires de porcelana.
- Também é um pesar para nós. – O sorriso cativante de seu pai derretia-se sobre os lábios e Sirius se segurou para não revirar os olhos.
- Parece que a casa fica vazia... – Se ninguém mais além dos dois começasse a se esforçar para dar algum rumo àquela conversa, todos iriam morrer intoxicados pela falsidade a qualquer instante.
- Dessa vez não demoraremos tanto a estar juntos. – Tio Cygnus abriu a boca apenas para dar continuidade a enjoada bajulação. – Estou certo de que receberam o convite dos Rowle para a festa da véspera de ano novo.
- Sim. Mas Walburga e eu concordamos que os meninos estão precisando passar um tempo em casa. – Órion passou os olhos rapidamente pelos filhos. – Silêncio e calma para pensar bem nas últimas atitudes.
- Não me digam que vão perder a festa por isso! – O rosto de sua tia foi tomado por um semblante desacreditado. – Foi só uma brincadeira boba, Órion! Walburga, garanto que Cissy já não se importa nenhum pouco pelo que aconteceu.
- Por que eu me importaria que esses bárbaros tenham destruído minha festa de aniversário, não é mamãe? – A moça reclamou com a voz fina, ecoando as dezenas de resmungos que tinha soltado durante o jantar.
- Narcissa, não seja rancorosa! Tudo acabou bem.
- Se você considera salutar embebedar minhas convidadas com Bellinis adulterados para que elas não lembrem do que aconteceu.
- Lamento dizer que o castigo vai ter que esperar, Órion. – Seu tio tomou um gole de uísque de fogo com uma expressão que causou a Sirius uma profunda inquietação. – Não podem perder a festa de réveillon dos Rowle. Será o noivado de Andrômeda.
A comoção foi geral e os ânimos se exaltaram, deixando para trás a pasmaceira em que estavam afundados. Bellatrix arregalou os olhos e se arrumou no divã, como se acordasse de um longo cochilo. Regulus, sentado numa poltrona, remexia as mãos compulsivamente. Narcissa se engasgou com o chá, derramando parte do que ainda restava na xícara direto no sofá, livrando por pouco o vestido de Druella. Sua tia e sua mãe se entreolharam satisfeitas, sinalizando confidências trocadas. Sirius apenas franziu o cenho, voltando o olhar para a prima favorita. Andy parecia ter levado um soco no estômago. A moça soltou a xícara na bandeja sobre a mesa de centro, completamente atordoada.
- Como é que é? – A mais nova rasgou o silêncio. – A Andy vai ser cunhada da Effie?
- Exatamente. – Cygnus Black estava exultante. As coisas estavam saindo melhores do que ele planejara, Sirius imaginou.
- Mas, papai! O noivado de Bella mal aconteceu! – Cissy coçou a cabeça.
- Sua irmã já não está mais em idade de esperar, meu anjo. E depois de ver a forma como ela e o Sr. Rowle pareciam em sintonia enquanto dançavam na véspera de Natal, imaginei que era a hora certa de agir. Marquei uma conversa com ele para a tarde de hoje e meu palpite mostrou-se correto. Acertamos tudo! O casamento será apenas no verão, assim seguimos a tradição, com Bellatrix já casada. – A fala de seu tio foi a faísca para que burburinho se espalhasse na sala.
- Uau, Andy! Que boa notícia! – Órion estendeu o braço para envolver o ombro da garota e apertá-la junto ao próprio corpo, tentando animá-la.
- Eu preciso arrumar um vestido apropriado. Não posso passar despercebida ao lado da Effie! – Narcissa disse, mais para si mesma, deixando que a mente se perdesse no próprio guarda-roupa.
- Finalmente tudo está se encaminhando. – Tia Druella bateu palmas docilmente, demonstrando sua agitação.
- Eu imagino o peso que saiu de suas costas, Druella. Ter duas filhas tão bem encaminhadas para o casamento é uma benção! – A declaração de sua mãe beirava o limite do quão afetuosa ela era capaz de ser.
- Eu não... Não vou me casar com o Rowle. – Sirius não desviou os olhos de Andrômeda e acompanhou o conflito da prima. Ela parecia ter sido mergulhada em água fria. Gaguejou duas ou três vezes, antes de conseguir dizer o que queria, ainda que em voz baixa.
O silêncio caiu sobre o ambiente de forma súbita. A atmosfera parecia ter sido tomada por dementadores e o coração de Sirius começou a saltar no próprio peito. Tão certo quanto o ar que estava respirando, entendeu que aquela noite não acabaria bem. Os olhares sobressaltados de seus familiares pareciam dotados da mesma certeza.
- Sua irmã perdeu tempo demais, meu bem. Não podemos mais nos dar ao luxo de recusar um pretendente. Sobretudo um tão adequado! – A loira mirou a filha, seu rosto ornado de certa incredulidade. Andrômeda era do tipo obsequiosa. Não era de seu feitio dizer não às decisões dos pais.
- O problema não é ele, mamãe. – As palavras foram espremidas para fora de seus lábios. - Eu não posso me casar.
- Não diga asneiras, Andrômeda! Assim que estiver usando a aliança de noivado, vai ter uma causa mais do que justa para demitir-se daquele banco imundo. – A voz rascante de Cygnus impregnou o ambiente com aversão.
- Eu não estava falando de Gringotes, papai.
- Pode me dizer então qual a excepcional razão que julga justa para desperdiçar um casamento tão auspicioso?
- Bem... Eu não seria feliz em um casamento assim. Seria como carpir a raiz de quem eu sou e jogar ao fogo!
- É o que você pensa agora, meu bem. Mas quando estiver no seu próprio lar, vai entender o valor disso. – Tia Druella estendeu o braço por sobre Walburga, no sofá ao lado, para apertar a mão de Andrômeda entre a sua. Pela expressão que tomou o rosto da tia, Sirius pode entender o quão fria a prima estava.
- Sejamos razoáveis, minha filha. Você já tem 20 anos! Teve tempo suficiente para se preparar. Agora é a hora de cumprir o seu dever para com a sua família. – A voz de Cygnus não deixava espaço para mais discussão. Ele virou de costas, para pousar o copo na mesinha de apoio.
- Eu não posso me casar, papai. – Ainda assim, Andrômeda insistiu.
- Vou repetir mais uma vez, porque você parece não ter entendido. – Disse entre os dentes, apontando a varinha para que a garrafa de uísque tornasse a encher seu copo. - Você vai cumprir o seu dever para com a sua família.
- Eu já estou comprometida com outro homem! – A torrente de palavras abandonaram a garganta de sua prima como bile, num tom de voz que Sirius jamais havia ouvido sair de seus dóceis lábios.
- Como é que é? – Narcissa repetiu.
- Eu estou apaixonada por Edward Tonks. – Os olhos da moça marejaram-se, dando o indício de que era a primeira vez que admitia aquilo até para si.
- Eu não conheço essa família. – Regulus exclamou ingenuamente e Sirius sentiu vontade de meter-lhe um soco na cara.
- É claro que não, Reg! Porque eles não são bruxos. – Bellatrix despejou as palavras de forma venenosa.
- Excelente show, Andrômeda! – As palmas espaçadas e irônicas de Cygnus chamaram a atenção. – Excelente esquete para apresentar no aniversário da sua irmã, meu bem! Agora, voltemos aos preparativos.
- Eu não estava brincando, papai. – Ela atreveu-se a dizer e Sirius tencionou se encolher contra a poltrona.
- Quem diabos é esse patife? – Os olhos de seu tio estavam inflamados.
- Ele é um bom rapaz! Íntegro, excelente em magia. Teve um desempenho impecável na prova de seleção para Gringotes!
- Eu deveria saber... Esse maldito banco! Eu estava certo em querer impedi-la, mas sua mãe achou que seria uma boa experiência! Que deveríamos aceitar que os tempos são outros! – Soltou o copo de uísque sobre a mesinha, derramando a bebida sem importar-se. A ensaiada calma não convencia. Por trás dos olhos dele, podia-se ver claramente o ódio fulgurando e o descontrole se avolumando.
– Eu amo o Ted, papai. A vida ao lado dele me parece... Certa. Eu só...quero ser feliz!
- Ah, o amor! Essa baboseira que vocês insistem em acreditar que tem substância! Isso não será mais do que uma lembrança tão logo você esteja noiva, Andrômeda. Você irá até o banco amanhã e vai dar um basta nisso tudo. Eu nunca mais quero ouvir uma palavra sobre uma Black estava envolvida com um nascido trouxa.
- Eu gastei muito tempo da minha vida me dedicando para ser o que vocês pensavam sobre mim. Mas não posso simplesmente abdicar de quem sou para manter uma estúpida tradição!
- Por Merlin! Por que não para com esse discursinho encrespado e diz logo a verdade? – Bellatrix revirou os olhos, cuspindo as palavras. Apontou um dos dedos finos para Andrômeda, sem titubear. – Ela está grávida!
A face de Andrômeda desfez-se em mil pedaços, pintando-se de total desespero. Seu pai mantinha-se congelado ao lado da sobrinha, ainda envolvendo o ombro dela com o braço. A mais velha satisfez-se ao observar as expressões de espanto da família. Tia Druella parecia prestes a desmaiar, desfalecendo contra a caçula. Narcissa estava incrédula, mas consciente o bastante para apertar a mãe contra o próprio corpo, impedindo que ela viesse a cair. Seu irmão trazia no rosto o mais perfeito retrato da falta de entendimento do que se passava. Sirius, por sua vez, respirou fundo, engolindo a informação como faria com uma refeição indigesta. Cygnus e Walburga refletiam um ao outro perfeitamente, resvalando ira para todas as direções.
- Por favor! Vomitando todas as manhãs, bocejando o dia inteiro sem qualquer razão pro cansaço, perdendo as roupas! Vocês não podem ter sido tão tolos a ponto de não ter notado.
- Como você ousa? – O tom de Andrômeda era de pura mágoa, fitando a irmã que a apunhalara.
- Como eu ouso? Como VOCÊ ousa? A nossa família é a mais importante família bruxa do Reino Unido! E você age como uma prostituta suja, deitando-se com um maldito sangue-ruim?
- Ai! – Sirius deixou escapar, mas arrependeu-se em seguida.
- Não é necessário alarde, Cygnus. Sei aonde ir e esse problema estará resolvido amanhã pela manhã. – Sua mãe exclamou com a voz firme, tão diretamente para seu tio que o restante dos presentes parecia não existir.
- Estava certo de que você não me deixaria na mão, Walburga.
- De que merda vocês estão falando? – Andrômeda estava chocada. – Vocês não podem estar sugerindo...
- Arrancar essa criatura de dentro de você, é claro! – A sisuda mulher usou um tom que encerrava o assunto.
- Vocês só podem estar loucos! Eu não vou me curvar a morte pela conveniência de vocês!
- Você não tem escolha! – Seu tio estava exaltado, as veias do pescoço saltadas.
- Eu vou ter essa criança! Vocês não vão me impedir de seguir aquilo que eu decidi pra mim!
- Isso não é quem você é, Andy! – Um último fiapo de voz escapou da garganta de tia Druella, que devotava um olhar desesperado para a filha.
- Eu suponho que agora é, mamãe. Sou isso, muito mais do que uma pessoa que se submete a um casamento no qual nunca será feliz, simplesmente para perpetuar uma convicção ultrapassada de que ser puro-sangue nos faz melhores. Olhe pra mim agora! Uma perfeita puro-sangue que jamais será ninguém.
O tapa estalou sonoramente no rosto da moça, mas Walburga não alterou em nada a própria postura. A marca dos dedos tingiu-se de vermelho na face de Andrômeda e lágrimas de humilhação amontoarem-se com as outras que já enchiam seus olhos, prestes a explodir. Sirius desejou ter o poder de acabar com tudo aquilo em um instante, mas estava aprisionado na poltrona, acorrentado pelo angústia. Os anos passariam e ele nunca se perdoaria por não ter agido naquele momento.
- Como se atreve a ser tão egoísta? Não percebe que a sua imprudência custará o bom casamento de suas irmãs?
- Não seja inescrupulosa! Tentar virar o jogo colocando as minhas irmãs contra mim? – A expressão de Andrômeda era de profundo tormento, as pupilas movendo-se em agonia. - Me atrevo porque sei que não mereço ter uma vida miserável como a sua, titia. De que o seu sangue puro serviu se ninguém sequer se importa com a sua existência?
Iriam lembrar-se para sempre daquele instante como o estopim. Cygnus levantou-se de um pulo e Andy fez o mesmo, por reflexo. Merda, merda, merda! Os largos dedos do homem enredaram os finos cabelos da filha, puxando-a com brutalidade pelo cômodo e largando-a com força contra o chão, próximo a porta. As lágrimas corriam livremente pelo rosto da moça e os soluços começarem a escapar-lhe. Ela se encolheu contra a parede. Todos os outros engoliam em seco. A varinha do homem estava estendida, inequivocamente apontada para ela. A boca dele preparou-se para lançar um feitiço. Se algum deles sequer se movesse, a tentativa poderia sair pela culatra. Seu tio estava completamente fora de si. Há muito abandonara a figura do pai de família respeitável. Diante dos olhos de todos, Cygnus Black se transformara em uma besta.
- Ela está desarmada, Cygnus. – Órion finalmente interveio, quebrando a atmosfera com um tom de voz pacificador, entremeado pela tensão.
Os segundos pareciam milênios. Seu tio soltou a varinha sobre o aparador, respirando ofegante. A ira derramava-se por seu olhos. Sirius buscou a prima e viu o medo estampado na figura dela. O homem arregaçou as mangas num minuto, correndo em seguida os dedos pelo quadril. Abriu e puxou o cinto de couro escuro, enlaçando-o na própria mão.
- Ótimo, Órion! Se ela quer se tornar uma porca trouxa... Vou tratá-la como uma!
Num átimo, apenas o suficiente para que o cinto subisse ao ar, Sirius encontrou no fundo de si a coragem que tanto buscava. Ergueu-se e, correndo, postou-se entre os dois, encobrindo a prima. Os olhos de Cygnus cintilaram de ódio, a fúria fazendo com que tremesse.
- Eu não vou permitir que atente contra ela na minha frente! Se quiser tocar nela, vai ter que passar por mim primeiro.
- Suma daqui agora, rapaz!
- Bata!
- Saia já de onde não deveria ter se metido, Sirius Black! – Sua mãe gritou, completamente descontrolada.
- Bata! – Ele ignorou o que Walburga ordenava, encarando o outro. – Vamos, titio! Ou a coragem que você tem para bater na sua filha grávida não é suficiente para atingir seu sobrinho insolente?
Respiravam ofegantes, os olhares desafiando um ao outro. Ninguém mais ousou se mexer. Encaravam-se como os adversários que eram, cada um transbordando de ódio pelo que o outro representava.
- Ela não é minha filha. - A faixa de couro estalou como um chicote, atingindo o peito e o braço do garoto.
- PARE! – O grito de Andrômeda era de profundo desespero. – Pare! Por favor, papai!
- Nunca. Mais. Dirija... A palavra... À mim ou à qualquer outro membro dessa família! – Expulsou a frase pausadamente, ainda estremecendo-se de cólera. – Eu não sou seu pai! – Voltou a apertar o cinto com força entre os dedos. – Você tem uma hora pra juntar as suas tralhas e sair daqui. Deixe pra trás tudo que estiver relacionado a esta família. Você já não pertence a ela.
- Cygnus... Ela pode pensar melhor. Vocês estão com a cabeça quente! De manhã, podemos retomar a conversa com mais calma. – Órion voltou a quebrar o silêncio, mantendo a voz baixa.
- De manhã eu quero que ela esteja bem longe daq...
- Eu não vou mudar de ideia. – Andy interrompeu, quase em um murmúrio.
- VÍBORA INGRATA E TRAIÇOEIRA! – Seu tio retornou a explodir, batendo violentamente com o cinto no espelho que estava sobre o aparador. Os cacos se espalharam pela sala e Sirius notou que alguns lhe açoitaram a pele. – Você arruinou o NOME DA MINHA FAMÍLIA! SAIA DAQUI! AGORA! VOCÊ E ESSA CRIA IMUNDA QUE CARREGA! – Respirou fundo, antes de repetir. - Uma hora.
- Eu vou ajudá-la a fazer as malas. – Como se subitamente despertasse, tia Druella exclamou com a voz forte.
- Fique onde está, mulher! – Cygnus ordenou, impassivo.
- Não há necessidade disso, Cygnus. Eu apenas vou ajudá-la a empacotar tudo!
- Eu não quero NENHUM membro dessa família voltando a dirigir-se a essa vadia. Ouviram bem? – Virou-se na direção do centro do cômodo, onde os outros permaneciam sentados, em choque. - E o primeiro a me afrontar terá o mesmo destino que ela!
- Ela cresceu no meu ventre e se nutriu em meu seio. Foi sustentada pelas minhas mãos que ela aprendeu a andar. Sua primeira palavra foi um chamado a mim! – A voz da mulher estava embargada e ela parecia não conseguir continuar. - Você não vai tirar o direito de me despedir da minha filha!
- VOCÊ CONHECE AS REGRAS! E ela também.
- Não me importa o que a sua família diga, Cygnus! Eu não vou deixá-la ir embora assim.
- Você pertence a essa família, Druella! E eu ainda sou o chefe dela! OU VOCÊS TODOS PERDERAM O RESPEITO QUE DEVEM A MIM? – Gritou, exasperado.
- Vamos Cygnus, seja razoável! Isso não vai mudar nada. – Órion interveio mais uma vez, numa desesperada tentativa de conciliação.
- DANEM-SE TODOS! Uma hora e mais nada. SAIAM DA MINHA FRENTE, AGORA! – Esbravejou e caminhou até a lareira, encostando a testa na estrutura, para mirar as chamas. – Walburga... – Retomou, em uma voz calma rajada de desprezo. – Leve as meninas pro seu quarto já! Uma fruta podre contamina as outras.
- Como quiser, meu irmão.
Sua mãe se levantou, caminhando em direção a porta. Narcissa a seguiu. A imagem da loira banhada em lágrimas desconcertou a Sirius. Cissy não demonstrava nunca o que estava sentindo, mas agora, estava visivelmente desestruturada. Bellatrix veio atrás dela, sem desmanchar o semblante mordaz. Sobre o peito da moça, reluzia o maldito colar que reforçava o abismo que agora existia entre ela e a irmã.
- Você é fraca. Exatamente como eu pensava! – Os lábios franziram-se com vontade e num gesto que surpreendeu a todos, ela cuspiu no rosto da irmã.
Um soluço magoado foi a única reação da miserável Andrômeda, que se encolheu ainda mais, aos prantos. Sirius desejou torturar a mais velha até que se arrependesse do orgulho injustificado que ostentava. As três mulheres abandonaram o cômodo, perdendo-se na escuridão que tomava o interior da casa.
Regulus veio logo atrás e Sirius percebeu a disposição com que se preparava para imitar o gesto da prima mais velha. Estendeu o braço no exato instante em que se aproximava o suficiente, esmurrando o peito do irmão para deixá-lo sem ar. O garoto tossiu, dobrando o próprio corpo ao meio e Sirius o empurrou para a porta. Seu pai permaneceu parado em um canto, observando atentamente as atitudes do cunhado, preparado para agir caso necessário. Pela primeira vez, Sirius sentiu-se capaz de admirá-lo genuinamente. O esvaziamento do cômodo deu-se justo na ordem reversa a de um nascimento. Assim como na chegada de um novo membro da família a mãe era sempre a primeira a recebê-lo em seu colo, Tia Druella fechou o cortejo, estendendo os braços para acolher a filha e ajudando-a a levantar. Limpou as lágrimas de seus olhos e envolveu a cintura da moça com ternura, conduzindo-a até o âmago da mansão Black pela última vez.
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
O rosto fino estava impassível, embora o corpo magro estremecesse visivelmente, encostado no corrimão. Ela sabia que a dor perpassava ferozmente o coração de Druella Black nessa noite, em grande parte, por sua culpa. Não! Precisa apagar esse pensamento. A vida a qual ela se dedicaria a partir de agora não tinha nada de errado! A culpa pelo sofrimento que as duas enfrentavam era das tradições antiquadas, que as aprisionavam em um mundo de infelicidade. Sua decisão fora apenas seguir seu coração em direção ao homem que ela amava. Partir não fora uma escolha sua!
Apertou firmemente entre os dedos a alça de couro da mala que continha todos os pertences que possuiria a partir daquele momento. Estava deixando para trás tudo o minimamente relacionado à sua família e a pessoa que ela havia sido até aquela noite. Na bagagem, seguiam com ela suas roupas, seus livros e o desejo de ser dona da própria história. Não podia enganar ninguém: Estava sendo consumida pelo medo. Mas não havia temor maior do que o de fraquejar no propósito que falava tão alto em seu coração! Além disso, ela nunca poderia voltar atrás das palavras que haviam sido proferidas.
Virou o rosto uma última vez para ver a figura da mãe, parada em silêncio, observando sua garotinha ir embora. A vida nunca era exatamente como imaginávamos, mas Andy duvidou que ela sequer tivesse chegado a cogitar a ideia de perder uma filha tão cedo, ainda que naquelas circunstâncias. Andrômeda não estava fisicamente morta, porém sabia que, para a sua família, deixaria de existir para sempre. A lâmina afiada do destinado estava rasgando a sua presença do convívio de sua mãe, que lhe fora concedido por um tempo tão curto! Não havia um fio grisalho sequer no cabelo de Druella, mas nessa noite, ela estava enterrando um de seus bebês.
Não teve forças para dirigir nenhuma palavra que pudesse lhe servir de consolo. Andrômeda não era capaz de entender o que ela sentia, mas desejou marcar aquela despedida como a mulher que lhe dedicara a vida merecia. Com um floreio ligeiro, conjurou uma rosa branca e a soprou, fazendo com que flutuasse até a mãe. A loira estendeu os dedos para segurar a flor e a encostou no rosto. O toque das pétalas trouxe à pele da mãe a sensação de um último beijo, antes de desparecer no ar.
Aspirou o cheiro daquela casa, que viveria para sempre em suas memórias de infância. Abriu a pesada porta de entrada uma derradeira vez, fechando-a atrás de si lentamente. Assim que ela cruzasse aquele jardim, abandonando a segurança dos portões da mansão, Andrômeda Black já não existiria. Seria puramente Andrômeda, em busca de uma nova identidade. A partir dali, seria uma pessoa completamente nova. Como se nascesse de novo, aos 20 anos, desligada de qualquer coisa e do único mundo que conhecia. Só havia uma certeza a partir de agora em sua vida. Pousou a mão sobre a barriga timidamente, ainda duvidosa de que deveria fazê-lo.
- Tudo vai ficar bem. – Murmurou, embora a angústia lhe apertasse a garganta a ponto de embargar a voz.
Caminhou lentamente pelo jardim, de olhos cerrados. O ar da noite estava pesado. Ou talvez, fosse só ela que não conseguia respirar. Prendeu as lágrimas, imaginando que poderia precisar delas em outro momento. Queria deixar a mansão de cabeça erguida, certa do destino que traçava ao assumir o comando da própria vida. Tocou as barras de ferro do portão, enganchando-as entre os dedos.
- Andy! – A vozinha aguda maculou o silêncio, num sussurro.
Abriu os olhos e virou o rosto repentinamente. Enrolada num robe fininho, Narcissa vinha correndo em sua direção. Arremessou-se em seu braços e Andrômeda jogou a mala no chão para envolvê-la num abraço apertado. O corpo esguio da menina tremia absurdamente no frio de dezembro.
- Merda, Narcissa, você vai congelar!
- Tive que vir rápido, não dava pra perder tempo com um casaco e correr o risco que tia Walburga acordasse. – A respiração ofegante da caçula se avultava quente contra o seu pescoço. – Eu não podia te deixar ir sem... – Ela beijou candidamente seu rosto, entrelaçando os dedos aos de uma de suas mãos.
- Você é louca? Se te pegam aqui! - Repreendeu, sem largar a irmã.
- Abra as mãos! – A outra ordenou, ignorando-a sem titubear.
Os dedos alvos estavam firmemente fechados e Cissy depositou o conteúdo nas suas mãos abertas. O primeiro objeto ela reconheceu pelo peso, antes que a irmã afastasse a mão que o encobria. Na bolsinha de veludo cor-de-rosa, avolumavam-se dezenas de galeões: As economias escondidas da mais nova. Narcissa vivia prometendo que gastaria tudo com uma viagem para as três, em sua despedida de solteira.
- É tudo que eu tinha aqui, mas deve ajudar!
- Cissy, você não deveria! Se o papai souber...
- Cala a boca! Isso aqui também é pra você.
O segundo objeto pousou em suas mãos com suavidade e ela não conseguiu mais conter as lágrimas. Repousando sobre a palma de suas mãos estava o pequeno relicário com uma rosa entalhada, que a irmã jamais tirava do pescoço desde que havia ganhado. Não era tão leve quando parecia ser, dada a graciosidade com que Narcissa o ostentava.
- Cissy, isso eu não posso aceitar! Nada da família, lembra?
- Não é Black, Andy. É Rosier. – Sua irmã usou os próprios dedos para fechar os dela sobre a joia. – Pegue!
- Mesmo assim. É seu, Cissy! Eu não poderia...
- Você precisa mais do que eu. Venda! Pra ajudar com o bebê. – Sorriu. E foi o sorriso mais lindo que Andromeda poderia receber, ainda que o rosto da menina estivesse inchado pelo choro.
- Eu amo você, Cissy! – Murmurou, abraçando a moça com toda a força que possuía. - Eu sempre vou...
- Eu sei... – A voz fina estava trêmula. – Eu também, irmãzinha.
Apartaram-se e Andy limpou as lágrimas que escorriam pelo rosto delicado da caçula. Ela nunca duvidou que debaixo de uma casca tão fria, Narcissa escondesse um coração emotivo. Acariciou a bochecha da irmã com o polegar, despedindo-se daquele rostinho ainda juvenil que dificilmente voltaria a ver de tão perto, tentando guardar na memória cada um dos traços que o compunham, ainda que soubesse que invariavelmente acabaria por esquecê-los.
- Não deixe que eles estrangulem quem você é. Vá em busca dos seus sonhos, Cissy! Seja feliz!
- Eu vou. Prometo! – Balançou a cabeça, comprometendo-se. – Você também!
- Sim. – Ela se deixou sorrir, secando as próprias lágrimas dessa vez. – Toda essa vida valeu a pena, só porque pude ter vocês comigo. – Ela engoliu em seco, pensando por um instante em Bellatrix.
Olharam dentro dos olhos mutuamente por um longo período, numa despedida silenciosa. Nenhuma palavra foi necessária e nem seria capaz de conter o que aquele momento representou. Afastaram-se lentamente, sem parar de fitar-se, agarrando-se uma à outra até os últimos fragmentos, de forma que as pontas dos dedos fossem as últimas a se abandonar, quando não mais podiam se alcançar. Ainda que desejassem, já não conseguiriam se tocar. Pertenciam a mundos completamente diferentes agora. Ali, ficou selada a separação absoluta de suas vidas. Sem ter coragem de olhar para trás, Cissy correu em direção aos fundos da casa, abandonando-a definitivamente.
Ergueu os olhos para o breu que se estendia sobre ela. Desejou ardentemente que a chuva viesse como há poucos dias. Ou a neve, pelo menos. Despedidas combinavam com a melancolia das gotas derramando-se e a semente que ela estava plantando agora precisaria de água para frutificar. Mas não choveu. Sua despedida não seria coroada pela água, mas pelo fogo. Seu peito ardia, dilacerado. Seus olhos estavam queimados pelas lágrimas e sua garganta arranhava, seca.
Mirou uma última vez para aquela casa capaz de lhe causar sentimentos tão dicotômicos. A amava, por cada lembrança dos momentos alegres que havia vivido ali: Era um lar. Mas também havia odiado a mansão, pelo encarceramento que representava pra sua alma: Era também uma prisão. Agora, ela deixava aquilo para trás. As correntes, mas também os amores que estavam escondidos ali.
Pela janela do primeiro andar, acompanhou o espetáculo. A varinha de Cygnus ergueu-se, desenhando um círculo sobre a tapeçaria, para transformar em cinzas a história daquela que um dia havia chamado de filha. O portão rangeu quando ela o abriu e voltou a ranger ao ser fechado atrás de seu corpo. Alarmou-se ao avistar um enorme cão negro pelo canto dos olhos, mas a ilusão já havia se desfeito nas sombras no instante que levou para que ela virasse para encará-lo. Na forma de um Sinistro, o presságio lúgubre derramava-se sobre ela. A pessoa que ela sempre fora estava morta. Andrômeda Black havia se tornado a número cinco.
-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------