Tarde demais pra voltar a dormir

Harry Potter - J. K. Rowling
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Tarde demais pra voltar a dormir
Summary
Uma gota caindo na água reverbera no lago inteiro. Uma troca de olhares que se estende pode mover todas as peças ao redor. James Potter e os problemas são velhos amigos, prestes a se conhecer muito melhor. O que há por trás dos encantadores olhos que parecem persegui-lo por todos os lados?Para Narcissa Black, tudo é heterogêneo. Em que ponto do infinito tudo se mistura? Se você procura uma história de drama, amores e nós do destino se entrelaçando, é tarde demais pra voltar a dormir!Essa é uma história sobre o que poderia ter acontecido enquanto os marotos estavam em Hogwarts, sob a sombra da Primeira Guerra Bruxa. A maior parte dos personagens e cenários descritos pertencem a J. K. Rowling e são utilizados nessa fanfiction sem nenhum tipo de intenção comercial. Algumas datas e ordens de acontecimentos foram alteradas para que a história pudesse fazer sentido.
Note
Olá, pessoal!Gostaria de lembrá-los que essa história se passa nos anos 1970, então algumas atitudes, falas e pensamentos dos personagens podem parecer ultrapassados e inaceitáveis para os dias de hoje. Lembrem que tudo está inserido em um contexto! Fumar em qualquer lugar era um hábito da época, por exemplo.Aproveito pra lembrá-los de ter moderação com o consumo de álcool e cigarros, que é bastante frequente nessa história.Por fim, alerto que a história é ampla e vai comportar um monte de possibilidades, se você não se sente confortável com linguagem chula, violência, homossexualidade/bissexualidade, bullying, cenas de sexo e outros tópicos delicados, eu tomaria cuidado!ATENÇÃO!!Este capítulo contém cenas de bullying.
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Orgulho e glória

A detestável música instrumental soava por toda a mansão, o que Sirius julgava como uma tentativa de criar a aura alegre e festiva que aquela casa não possuía e induzir os convidados a sentirem-se empolgados com o que a noite lhes prometia. Utilizar a delicadeza dos violinos e do toque ao piano para esconder a podridão das pessoas: Amável!

Entre os cômodos internos, os empregados apressavam-se, com bandejas repletas de taças de cristal e petiscos enfeitados a ponto de parecerem bibelôs. Os elfos haviam dedicado profundo esmero a produzir as entradas e o banquete que seriam servidos, o que chegava a lhe causar um embrulho no estômago. Lhe enojava ver que as desprezíveis criaturas encontravam a alegria de suas miseráveis vidas em servir pessoas vis como a sua família.

A decoração de Natal pendia do teto e espalhava-se por todos os cantos, entre luzinhas, enfeites e visgos. Ao lado da escada, uma enorme árvore reluzia, sustentando uma imponente estrela de ouro puro. Gastou alguns segundos para fechar as abotoaduras, arrependendo-se amargamente por parar tão próximo a escada no exato instante em que a voz adstringente encheu seus ouvidos.

- Estou certa de que só pode se tratar de uma brincadeira... Em pleno noivado da primogênita da casa Black, não há razão que justifique tamanha falta de elegância!

- Mamãe... – Respondeu entre os dentes, girando sob os calcanhares e fazendo uma reverência em frente a mulher. – Fico feliz que meus trajes a tenham agradado!

- Druella não pode ter permitido uma escolha tão insolente! – A fisionomia sisuda de Walburga encontrava-se evidenciada pelo coque banana em que seus cabelos estavam rigidamente presos. Caminhou em direção ao filho, fechando até em cima os botões da camisa que ele usava, de forma rude.

- Mas o que pensa...?

- E tire imediatamente essa enorme quantidade de porcarias do pescoço! – Ordenou em voz baixa, mirando de forma descontente as correntes que adornavam o colo dele.

- Mamãe! – Puxou as mãos dela sem cerimônia, desvencilhando-se.

- Walburga... – A voz de seu pai soou pela primeira vez, denunciando que sempre estivera ali.

- Depois não entendem por que eu me esforço em estar sempre atrasado. – Sirius revirou os olhos, reabrindo os botões da camisa até o meio do peito.

- Um paletó de veludo bordô, Órion! Francamente! Essa família ainda tem um nome a zelar.

- É só um garoto querendo atrair olhares, querida. Deixe-o se divertir!

- Não quando a diversão se dá às custas do nome da nossa família! Não vê que ele faz só para me provocar, Órion? Para esfregar na cara de todos as cores daquela deplorável casa e mostrar-se como pária?

- Querida, não vamos tumultuar a noite da nossa sobrinha por tão ínfimo motivo. – Estendeu o antebraço para que ela pousasse a mão. - Devem estar a nossa espera no salão de baile.

- Tio Órion! – A voz esganiçada de Narcissa cortou a tensão que tomava o ambiente. De cima da escada, acenou com um sorriso de puro deleite no rosto, antes de descer os degraus com destreza.

- Pensei que não seria agraciado com a sua presença tão logo, minha sobrinha! Chegamos ao fim da tarde e sua mãe nos disse que você já estava se arrumando. Me entristeceu profundamente ser preterido de sua afável companhia!

Órion Black era um galanteador e o seu sucesso nesse papel Sirius jamais poderia negar. Tudo em sua aparência era milimetricamente pensado para parecer tão natural quanto o charme que era inerente a ele. O terno que usava era elegante e bem cortado. Os cabelos outrora negros, já bastante rajados de tons grisalhos, estavam sempre perfeitamente penteados, num corte rente, mas não muito. O rosto quadrado estava limpo, como se tivesse sido barbeado há poucos instantes, destacando o nariz bem desenhado e os lábios finos. As sobrancelhas seguiam retilíneas sobre os olhos pequenos, de um azul suave, e se curvavam de forma acentuada somente nas extremidades. O queixo reto garantia-lhe o exato ar de confiabilidade e respeito que necessitava. Mas seu maior trunfo era o sorriso alinhado, que parecia sussurrar “acredite em mim, sou o homem perfeito para o que você estava procurando”. Era aquele exato sorriso que Sirius tinha herdado e adorava distorcer a seu favor.

- Era meu dever ficar bonita para encantar os seus olhos! – Deixou-se enlaçar pelos braços estendidos do tio, soltando o corpo esguio sem receio.

- Você sabe sempre do que eu preciso, minha pequena Cissy! – Beijou o topo da cabeça da garota. – Deixe-me ver...

Esperou que ela girasse em torno do próprio eixo, exibindo o sofisticado vestido. Tinha que admitir que a especialidade de sua prima era escolher roupas categoricamente apropriadas para as ocasiões. Narcissa posicionava-se exatamente sobre a linha que separava o adequado das tendências modernas. O vestido branco era curto, suficientemente provocante para despertar olhares entre os rapazes, mas não o bastante para gerar qualquer burburinho entre as senhoras. As mangas longas e a ausência de decote contrabalanceavam a cintura marcada, que se abria numa saia reta cujo comprimento era satisfatório para lhe encobrir um pouco abaixo das coxas. Dois laços minimalistas adornavam sua cintura, um de cada lado, e deles partia um suave tracejado sobre o vestido cujo formato triangular lhe cobria parte do busto e tornava improvável que qualquer um desviasse o olhar dali. Os cabelos louros eram afastados do rosto por uma larga tiara, mostrando suas orelhas que ostentavam pequeninos brincos de pérola.

- Impecável, minha querida! – Trouxe até aos lábios a mão dela, que ainda segurava, depositando um beijo cortês. – Aproveite a noite, os olhares estarão todos em você.

- Um palmo a mais de tecido não faria nada mal. – Walburga resmungou, inquieta pelo delongar da cena.

- Estou muito alegre em vê-la também, titia! – A moça sorriu, antes de pousar os lábios com ironia na bochecha da outra.

Os olhos negros de Walburga deixavam bem clara sua insatisfação, julgando cada mísero detalhe da sobrinha sem qualquer resquício de compaixão. A boca pequena tornava-se ainda menor por estar constantemente crispada e o queixo pontudo ampliava seu ar de escárnio. Mesmo que fosse difícil atribuir algo positivo a sua mãe, Sirius ouvia os comentários sussurrados e a fofoca. Por baixo da carranca, não se podia negar que Walburga Black era dotada de certa beleza, tanto quanto a sua presença era desagradável.

Para a alta sociedade, o casamento dela com o melhor partido da geração ainda estava entalado na garganta, duas décadas depois. A demora para que o primeiro rebento do casal nascesse viera para selar os boatos de que tudo era apenas uma fachada. Sirius tinha vontade de revirar os olhos todas as vezes que entreouvia um comentário semelhante. Era óbvio que o casamento era uma fachada. O que não era uma mentira naquele meio social de famílias hipócritas e frívolas?

Apesar disso, o ódio borbulhava na boca dos mais ferrenhos críticos, que desejavam ter fofocas a espalhar. Órion jamais arredara o pé da linha, mantendo-se impecavelmente fiel e dedicado a família. O filho perfeito, marido perfeito, pai perfeito... Sirius podia sentir o embrulho no estômago retornando, só em pensar. Sobre ele haviam sido depositadas todas as expectativas de que seria o sucessor do pai, forjado em igual perfeição. Afinal, o sangue Black corria com força total em suas veias! Uma pena que desprezasse tudo o que isso representava com idêntica força.

- Espero não estar atrapalhando tão precioso momento de reunião familiar. – Os quatro viraram o rosto na direção da cozinha, de onde Alphard Black estava saindo.

- Essa não é a entrada dos convidados, Alphard. – Sua mãe ironizou, os lábios vibrando suavemente para deixar o comentário tomar forma.

- Ah, não? Você sabe como sou um obtuso para essas regras, minha cara Walburga! – Ele deu de ombros, com um semblante chistoso no rosto e as pupilas cintilando para os sobrinhos. – Como vai, Órion?

- Contente em vê-lo, Alphard! – Órion estendeu a mão para apertar a do cunhado, dando a ele um sorriso encantador.

- Narcissa Black, minha pombinha!!! Me parece ter sido ontem que lhe dei o primeiro pufoso de estimação e agora está prestes a casar! – Segurou o queixo da moça, apertando-lhe em seguida.

- Sim, tio Alphard! Mas só depois que Bella estiver casada e Andy tiver um noivo. O noivado não é meu hoje. – Ela sorriu, arregalando os olhos em seguida para o primo, quando o homem se afastou na direção dele.

- Ah, sim? Merlin, devo estar mais atarantado do que julgava! – Piscou um dos olhos para Sirius, antes de aproximar-se e apertar-lhe a mão. – Meu querido sobrinho, que júbilo o encontrar em tão refinado estilo!

- Me alegra saber que lhe agrado, meu tio! – Trocaram um abraço afetuoso.

Tio Alphard era o irmão do meio, sempre amassado entre a despótica Walburga e o calculista Cygnus. Sufocado pelas personalidades dos irmãos, acabara escolhendo sair pela tangente. Jamais se casara e tampouco se interessara pelos assuntos familiares. A parte que lhe cabia da herança era poupada em sua quase totalidade e ele vivia de forma excêntrica no que um dia fora a casa de campo da família, que sob suas mãos se tornara um mirabolante laboratório herbológico. Se ele era um gênio ou apenas um lunático, dependia da lente utilizada por quem o estivesse julgando. Sirius o via como um pouco dos dois. O restante da família costumava incomodar-se com seu porte incomum, o que agravava ainda mais a afinidade que o garoto fazia questão de demonstrar para com o tio. Para Alphard, a imagem tresloucada era conveniente, o preço pela paz solitária que cultivava.

- Cygnus ficará satisfeito em vê-lo tão bem apessoado no noivado de sua primogênita, meu irmão! – Walburga comentou com escárnio, sem tirar os olhos dos óculos ligeiramente empenados e dos cabelos desgrenhados do homem.

- Merlin, vou precisar de um cigarro antes disso!

- Gostaria que Sirius e eu o acompanhássemos, titio? – Cissy fitou o primo com os olhos atentos, compreendendo o clima nublado que se desdobrava entre ele e sua mãe. Desde que Órion tinha desenvolvido uma brutal alergia a fumaça, a família inteira se habituara a afastar-se dele para fumar. Era a desculpa perfeita para que deixassem seu pai e sua mãe para trás. A garota era boa!

- Seria um prazer, minha pombinha! Um prazer para o seu velho tio! – Exclamou regozijado, enfiando as mãos nos bolsos para procurar a carteira de cigarros.

- As damas primeiro. – Sirius olhou para a moça e estendeu o braço em direção a entrada da mansão.

- Com licença! – Narcissa fez uma rápida mesura, dirigindo-se para o caminho que o primo apontava. Tio Alphard a seguiu, engatando um assunto qualquer no mesmo instante.

- Essa conversa não terminou aqui, espertinho. – Walburga exclamou entre os dentes, fuzilando-o com o olhar assim que a sobrinha e o irmão se afastaram apenas o suficiente, sem esconder o quanto estava contrariada. Descansou a mão sobre o braço do marido, deixando que ele a conduzisse ao salão de baile.

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Tamborilou os dedos no fundo da taça, sentindo o nervosismo afundar-lhe o estômago. Seus olhos vagavam pelo amplo salão, analisando os convidados que iam chegando. A noite estava glacial, mas a agitação dos presentes se unia ao crepitar das lareiras para deixar o ambiente caloroso. Em cada canto, pequenos grupos se amontoavam, num movimento infinito de lábios, que se alternavam para deliciar-se com os requintados petiscos, entornar bebidas caras e derramar-se sobre o próximo alvo de fofoca.

As festas dadas por seus pais eram famosas pela suntuosidade e o noivado de sua primogênita fora organizado para ser lembrado pela eternidade. As roupas luxuosas escolhidas pelos convidados denotavam seu anseio em ser alvos de atenção, especialmente as das moças em idade para casar-se. Embora Andrômeda se incluísse nesse grupo, sentia-se trivial com o conjuntinho salmão que vestia e profundamente incomodada com a saia que lhe apertava o quadril, mesmo tendo sido alargada pela modista.

Estava acostumada com aquela atmosfera de olhares. Homens olhando uns aos outros e analisando quais arranjos familiares seriam mais vantajosos sob os olhares das mulheres que ansiavam pelo momento em que receberiam os olhares de inveja de todos e seriam banhadas pelo alívio de ver as filhas comprometidas com rapazes sobre os quais todos os olhares se derramavam para paparicar, apenas para que olhassem o suficiente e escolhessem uma das garotas que estavam a ponto de desmaiar de nervosismo, incapazes de aguentar mais uma noite frustrada em que não haviam sido olhadas.

Queria entornar a taça de champagne, mas seu estômago estava embrulhado e sua boca seca. Embora todos dissessem que Bellatrix seria o foco hoje, ela sabia que, mais do que nunca, as atenções estariam sobre ela. Andrômeda Black era a próxima. Tinha que ser. Porque não importava o quanto a magia avançasse e os tempos se modificassem, a alta sociedade bruxa continuava colocando acima de tudo os enlaces matrimoniais para a perpetuação do sangue puro.

Num dos cantos do salão, Corban Yaxley conversava com Cygnus e ela sentiu um arrepio percorrer seu corpo. Ela e o rapaz nunca haviam se dado bem, em Hogwarts ou fora dela. Yaxley era dissimulado e orgulhoso, capaz de passar por cima de quem interpelasse seu caminho. Tirou o olhar deles, suplicando que o homem não estivesse sendo bem cotado por seu pai na lista de seus pretendentes.

Levou os olhos ao outro lado, dando de cara com Isaac Macmillan, cuja expressão mantinha-se falsamente interessada na conversa do Sr. Lestrange, que provavelmente estava se gabando do noivado prodigioso de Rodolphus ou de qualquer habilidade excepcional que julgava que os filhos possuíam. Era difícil ver qualquer outro assunto sair da boca do velho. Controlou o riso, vendo o rapaz acenar para ela com um sorriso abobado. O apelido que Bellatrix lhe atribuíra era preciso, Macmillan era mesmo um lambe-botas. Viu o rapaz desculpar-se e abandonar o copo sobre a bandeja de um garçom, tensionando caminhar até ela. A música se encaminhava para o fim e ela correu os olhos pelo salão, desesperada para livrar-se de uma dança com ele. Xingou mentalmente a Narcissa e Sirius, por não terem aparecido ainda desde que a festa havia começado. Agora ela estava sozinha, à mercê daquela situação.

Bellatrix não podia salvá-la, ocupada como estava em distribuir seu charme de grupo em grupo, deslumbrante em um fluído vestido lilás de alcinhas, que lhe cobria até um pouco abaixo dos joelhos e que só passara a fazer jus a sua beleza ao ser sobreposto por uma negra estola de pele. Os cabelos escuros estavam presos para o alto em um coque despojado e usava uma maquiagem suave, que lhe dava um ar de que havia acordado lindíssima assim. Bom... Era justo dizer que ela costumava acordar lindíssima daquela forma! Mas a pintura era uma artifício para trazer-lhe um viço a mais, para dar aos outros a impressão de que estava alegre como nunca. Os saltos finos pareciam extensões de suas pernas longilíneas e ela flanava entre os convidados, sem jamais titubear. Andrômeda a invejou por um instante. Teria sido tão mais fácil se tivesse nascido mais parecida com a mais velha, segura e ciente de seu poder... Mas ela era apenas a doce e quieta Andrômeda.

Do lado de sua irmã, Rodolphus Lestrange cumprimentava os convidados. Caminhavam lado a lado de forma muito natural, como se o tivessem feito a vida inteira, os rostos estampados por uma felicidade que Andrômeda estava certa de que não sentiam. Rodolphus era cerca de uma cabeça mais alto que ela, embora a presença de Bella fosse tão imponente a ponto de quase anular a diferença de tamanho e de idade. O homem, de porte másculo e braços largos, beirava os trinta anos. De costas, tudo que Andrômeda podia ver eram os cabelos de um tom muito claro de castanho que desciam até o pescoço, em ondas suaves. Eram os mesmos cabelos que ele deixava propositalmente soltos sobre o rosto, para sombrear veladamente as feições.

Lestrange virou-se de lado, fitando a Bartô Crouch e sua esposa com visível enfado, enquanto bebia demorados goles de uísque.  A testa era larga, assim como as sobrancelhas, e margeada por linhas de expressão. De forma semelhante aos cabelos, uma barba espessa lhe cobria o rosto, numa tentativa de desviar a atenção da enorme marca vermelha que se estendia sobre o lado direito do rosto, desde a lateral do nariz até a pálpebra. Em cima da mancha, uma grotesca cicatriz reluzia, recusando-se a ficar oculta. Andrômeda conhecia pouco a história, somente os sussurros que se espalhavam pelo vento: Antes de entrar em Hogwarts, o garoto havia surrupiado a varinha da mãe para tentar arrancar de si a marca de nascença e terminara por sobrepor a ela uma cicatriz que nem o mais famoso medibruxo do Reino Unido foi capaz de remover.

Macmillan atravessava o salão, em direção a ela. Andrômeda semicerrou os olhos, desejando que não precisasse sentir os respingos de saliva do rapaz acumulando-se contra o seu rosto, enquanto dançava com ele e o ouvia comentar qualquer assunto inconveniente, numa vã tentativa de agradá-la.

- Apreciando o baile, Srta. Black? – A voz aveludada encheu-lhe os ouvidos e ela arregalou os olhos. – Se não for inoportuno de minha parte furtar-lhe de tanta diversão, me daria a honra dessa dança? - Thorfinn Rowle estendia a mão, sobrepujando a aproximação de Macmillan no último instante.

- Seria uma honra, Sr. Rowle. – Pousou a mão sobre a do rapaz, deixando-se ser levada por ele até a pista de dança.

Trocaram uma reverência cordial e ele envolveu sua escápula, conduzindo a dança com muita precisão. Tudo em Thorfinn passava uma impressão extremamente concisa, porque sua personalidade era indiscutivelmente metódica. Lembrava-se de vê-lo na sala comunal, debruçado por horas sobre enormes pergaminhos, desvendando runa por runa e transcrevendo-as sistematicamente para suas anotações. Sua atuação como apanhador no time de quadribol não se desviara disso, capturando o pomo com extremada destreza em cada partida. Talvez por isso, embora estivesse poucos anos a sua frente, sempre lhe parecera muito adulto.

- Creio ter lhe salvado de uma situação bastante delicada, Srta. Black. – Ele ergueu as grossas sobrancelhas, com um aspecto irônico desenhando-se no rosto.

- Acabo de contrair uma dívida eterna com o senhor. – Sorriu, fitando-o dentro dos olhos escuros.

- É uma honra para mim ser credor da senhorita.

As mãos longas do rapaz a giravam em seu próprio eixo, afastando-a e trazendo-a para si conforme a música. Sob a claridade amena dos lustres, a pele em tons de ébano resplandecia, avivada pelo terno de cor terracota.  Os lábios graúdos estendiam-se em um sorriso discreto, carregado de ironia. Andrômeda deixou que sua atenção se perdesse nas arestas milimetricamente aparadas da barba desenhada que ele sustentava.

- Me custou muito acreditar no noivado de sua irmã, se me permite dizê-lo.

- Surpreendeu a todos nós, Sr. Rowle.

- Imagino que Bellatrix estava começando a cansar de tanta morosidade. Ela não me parece o tipo romântico, que esperaria o quanto fosse por almejar um marido a quem pudesse amar.

- Bella? – Andrômeda riu, vagando pela ideia por um instante. – Ela sempre esteve procurando o casamento que lhe pudesse ser mais vantajoso, já que era inevitável que se casasse em algum momento. Mais dia ou menos dia, este momento teria que chegar. Mas não espero que ela vá se tornar a típica esposa, com filhos perfeitos aprendendo a tocar piano e um assado esperando no forno, se entende o que quero dizer.

- Esse não é o perfil das irmãs Black, não é senhorita? – Os olhos dele sorriam, cheios de uma comicidade sarcástica.

- Eu não me arriscaria a dizer que temos um perfil comum. – Apertou os lábios e ergueu suavemente o ombro, como se estivesse se desculpando.

- Não mesmo. Mas se há uma coisa que os Black têm em comum é serem tão incomuns. Uns mais dos que os outros. – Ao fim de uma volta, o rapaz a trouxe mais para perto do que era confortável para Andrômeda. – Seria um erro dedicar o mesmo olhar à Bellatrix e à senhorita, por exemplo.

- Creio que o senhor chegou tarde demais para tecer tamanho elogio, Sr. Rowle. Minha irmã já está comprometida.

- É nisso que se engana, senhorita. Estou exatamente no tempo certo.

Ele a inclinou levemente para trás, sustentando seu tronco com a mão que estava pousada em suas costas, interrompendo a dança para acompanhar o fim da música. Os olhos negros cintilavam com um brilho travesso, embora o ar do rapaz se mantivesse sério, fitando-a sem desviar a visão. Voltou a erguer o tronco, afastando-se delicadamente e fazendo uma suave mesura. Observou o salão com uma velocidade aflita, buscando alguém que a pudesse resgatar e suspirou satisfeita, avistando perto da porta de entrada um rosto que lhe confortou.

- Percebo que não será necessário que eu a salve por mais uma dança. – Acompanhou o olhar dela.

- Não, agora está livre para aproveitar o baile sem preocupar-se por minha causa. Não quero aumentar minha dívida para consigo, Sr. Rowle!

- Irei cobrá-la no momento oportuno, Srta. Black. – Deu a ela um sorriso enviesado, quase zombeteiro, mas cheio de charme.

- Não tenho a menor dúvida disso.

Devolveu-lhe o sorriso de forma educada, movendo-se lentamente para longe dele. Atravessou o salão repleto de convidados, desviando dos pares que já se posicionavam para a dança seguinte, em direção ao semblante cheio de escárnio que a esperava com duas taças nas mãos. Respirou aliviada, sentindo-se finalmente livre de incômodos.

- Quando o gato sai, os ratos se divertem... – Ele murmurou com o jeito habitual de falar, quase sem abrir os lábios.

- Enquanto o gato não chega, a rata tenta sobreviver. – Tomou a taça da mão dele, sentindo a boca ser preenchidas pelas borbulhas da bebida.

- Eu estava falando deles, minha querida. – Uma risadinha escapou pelos lábios do rapaz, antes que ele a acompanhasse no champagne.

- Senti terrivelmente a sua falta, Lucius! – Envolveu o amigo num abraço e depositou um cândido beijo no rosto bem barbeado. – O Reino Unido não parece tão cinzento sem você.

- A América é absurdamente cafona, Andy! Parece ter sido pessoalmente construída pelos Longbottom.

Surpreendida pela associação inusitada, deixou que um pouco de champagne escapasse de sua boca, em gotículas que se espalharam pelo ar. Permitiu-se rir em bom tom, sendo seguida pelo rapaz pouco depois. Se havia alguém mais ácido que seu amigo, era difícil dizer. De fato, a competição entre ele e Bellatrix era acirrada.

- Isso quer dizer que você irá se estabelecer aqui de novo? Abandonar essa ideia boba de fazer fama e fortuna às custas de boas relações com os... Como eles dizem? No-majes?

- Paspalhões! – Ele revirou os olhos tão fortemente que a garota se questionou se conseguiriam retornar ao lugar. Riram juntos por mais algum tempo. – Como se mudar a forma de chamá-los fosse torna-los diferentes do que são.

- O MACUSA deixou de parecer tão interessante? – Arqueou a sobrancelha, alfinetando-o.

- Há coisas muito mais interessantes acontecendo por aqui... – Lucius deu um olhar de esguelha pelo salão, fingindo bebericar o líquido despretensiosamente. – O noivado de Bellatrix, por exemplo. Com um Lestrange! Deve ser o acontecimento da década.

- Do século, eu diria. – Seguiu o amigo, procurando a irmã com os olhos. – Só perderia para uma união entre as famílias Black e Malfoy.

- Não se atreva a dizer isso em voz alta! – A repreendeu, rindo em seguida. – Seu pai pode ouvir e querer casá-la comigo!

- Por que não, Lucius? Pensa que eu seria uma má esposa? – Pestanejou de forma forçada, fingindo melosidade.

- Péssima, minha querida. A pior de todas!

Correntes de alívio percorriam seu corpo junto com as risadas. A voz rascante, o nariz avantajado, a língua ferina e os olhos finos de Lucius Malfoy a faziam sentir-se em casa. Depois de sua família, o rapaz era, seguramente, a pessoa a quem Andrômeda mais amava. Como todo bom sonserino, Lucius era ambicioso e perspicaz. Uma oportunidade de se destacar e ser favorecido jamais lhe passava despercebida, nem mesmo as companhias escolhidas ao entrar em Hogwarts, aos 11 anos. Seus sobrenomes eram atrativos naturais um para o outro, ainda que nunca tivessem brincado juntos durante os eventos sociais para os quais tinham sido arrastados pelos pais na infância. Meninos e meninas não costumavam se dar muito bem naquela época. Isso acabou não sendo um problema para eles dois.

Embora Andrômeda fosse atenciosa com todos que cruzassem seu caminho, Lucius enxergara nela a companhia perfeita para ouvir seus comentários mordazes. Encontraram um no outro um agradável equilíbrio: Andrômeda com a mansidão e o comedimento que faltavam a ele, Lucius com a ousadia e a confiança que ela tanta necessitava. Floresceram juntos, dedicando-se aos estudos com afinco e estimulando-se a abraçar as oportunidades que apareceram em Hogwarts. Exceto por um pequeno desconforto, quando ela fora selecionada para ser monitora-chefe, ao invés dele, não havia rusgas entre os dois. Ao lado dele, sentia-se confortável para ser ela mesma, sem tolher constantemente seus sentimentos e pensamentos.

Avistou pelo canto do olho os cabelos loiros esvoaçando e aguardou a aproximação certa de Narcissa. Virou o rosto para observá-la vir até eles, caminhando como se desfilasse em uma passarela imaginaria. Era notório o quanto sua irmã enchia-se de satisfação ao sentir-se observada por tantos olhares, fulgurando sob as luzes dos lustres.

- Onde diabos você se meteu? Eu quase fui forçada a aguentar a babação do Lambe-botas por uma dança! – Andrômeda a repreendeu baixinho, assim que ela se aproximou o suficiente para ouvir.

- Ai, merda! Estava fumando um cigarro com o Sirius e o tio Alphard. – Arrumou a saia, como se batesse poeiras imaginárias para fora dela. – Espere. Você disse quase?

- Rowle me salvou no último segundo.

- UAU! Então não foi algo, de todo, ruim. – Transmutou o sorriso devasso em uma expressão simpática em um instante, girando o corpo suavemente na direção do rapaz. – Como vai, Malfoy? Eu pensei que você ainda estivesse na América.

- Estava, mas agora meu retorno é em definitivo.

- Seja bem-vindo de volta!

- É uma gentileza da sua parte, Srta. Black. – Bebericou a taça, franzindo as pálpebras num julgamento da figura que acabara de adentrar o salão. – Eu devo estar enganado, mas aquele com o cabelo comprido é o primo de vocês?

- Ah, sim! Sirius faz o que pode para irritar tia Walburga, você sabe... – Andrômeda deu de ombros, sorrindo como se o garoto fosse uma criança travessa.

- Merlin, para que cultivar a aparência de um delinquente? Que escolha duvidosa! – A expressão de entojo que Lucius sustentava era óbvia.

- O cabelo comprido? Acho que cai bem para alguns homens seguros de si. – Narcissa virou a cabeça, desviando a atenção do garçom que estava lhe servindo uma bebida. – Você deveria tentar, sabe? Lhe daria um ar mais imponente.

Os olhos de Malfoy a analisaram sorrateiramente, avaliando a moça da cabeça aos pés. Andrômeda não gostava nada daquela olhadela minuciosa e preenchida de criticidade. Tinha certeza de que uma represália ácida estava prestes a pular da boca do amigo, mas Lucius preferiu continuar com a abordagem silenciosa. Decidiu intervir, evitando uma mudança de ideia.

- A propósito, Cissy, a sua trupe está a sua procura. Mais de um já me perguntou por você. Natanael Bulstrode, Effie Rowle, Gwen Yaxley,..

- Oh, inferno! Não deveriam estar saturados de mim? A recém nos vimos em Hogwarts.

- Me parece que eles sentiram sua falta, anjinho.

- Isso eu percebi. O único problema é a falta de reciprocidade. – Sua irmã suspirou, revirando os olhos. No canto esquerdo, Logan Travers acenava animadamente para ela, feliz em ver que Narcissa notara o grupo. – Bem, parece que o dever me chama e serei obrigada a desperdiçar meu precioso tempo derretendo o meu cérebro. Foi um prazer reencontrá-lo, Malfoy!

- Igualmente, querida. – Ergueu a taça, como se brindasse a ela. – Você realmente acha que eu deveria deixar o cabelo crescer? – Assim que a caçula se afastou, Lucius franziu o cenho, passando a mão livre sobre os cabelos cortados rentes.

- Em que isso implicaria? Ela é uma tola! Como pode falar tão perversamente sobre os amigos na frente de alguém com quem não tem quase nenhuma intimidade?

- Porque sabe que eu penso o mesmo. – A face do homem estava pintada de especial interesse. – Sua irmãzinha não é tola, Andy! Uma mulher de verdade sabe com quem pode jogar limpo. Veja Bellatrix, desprezou uma dezena de pretendentes até chegar ao Lestrange. Tudo porque sabe exatamente em quem quer chegar...

- Do que diabos você está falando?

- Do que todos estão falando, minha querida! Até parece que você é quem esteve fora do país por tanto tempo.

- Você quer dizer... Aquele homem?

- E do que mais os ricos andam fuxicando? Além da nossa aversão aos sangue-ruins?

- Shhh! Fale baixo! Você acha que a Bella está envolvida com essa gente?

- Se ela está eu não posso afirmar, mas o noivo dela... É límpido e evidente. E se você fosse esperta, faria o mesmo que ela: Encontraria rápido um noivinho rico e influente. Os ventos não vão demorar a mudar e é bom ter alguém pra te proteger quando isso acontecer.

- Lucius... – Ela hesitou, sentindo o estômago pesar. Estendeu a mão disfarçadamente, apertando os dedos do rapaz.  – Pode me prometer uma coisa?

 - Eu? Prometer algo a você? O que quer agora, Andrômeda Black, além de toda a minha atenção e fidelidade irrestrita? Minha alma? – Ele riu, numa gargalhada seca.

- Não estou brincando, seu estúpido. Me prometa!

- Pode pelo menos me dizer o que devo prometer, afinal?

- Se algo acontecer comigo... – Ela mordeu os lábios. – Você vai proteger as minhas irmãs.

- Bellatrix não me parece precisar de muita proteção, minha querida.

- Só prometa, Lucius! Você sabe o quanto elas significam pra mim! E se eu não estiver aqui para cuidar delas, quero confiar que alguém vai fazer isso no meu lugar.

As irizes de um límpido e absurdamente claro azul estavam fixas nela, ponderando cada uma das palavras, com uma fisionomia escrupulosa. Seu coração batia acelerado contra o peito e ela soltou os dedos dele, temerosa de que o amigo identificasse seu nervosismo.

- Está bem, Andy. – Murmurou aquelas palavras com desinteresse, julgando que se tratava de uma grande idiotice. -  Protegerei suas irmãs, como você mesma faria, no caso da sua ausência. Mas para onde diabos você iria? Não é como se uma Black pudesse simplesmente desaparecer no ar bem às vistas de todos...

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- Você está esplêndida! – Gwen enrolou a língua, para que cada sílaba se sobressaísse a anterior.

Narcissa retribui-lhe com um sorriso de canto, erguendo uma das sobrancelhas ao mirar a amiga, numa expressão sedutora. Gwen usava um vestido fúcsia extravagante, com um enorme laço cobrindo os seios. O fundo avermelhado dos cabelos faiscava em contrate ao tom da roupa. A garota não viera para passar despercebida.

- Está fabulosa também, Gweny!

- Para algumas de nós é simplesmente natural. – Ela deu de ombros, revirando suavemente os olhos e rindo.

- Definitivamente não para você, Gwen! – Logan zombou, recebendo uma careta em retribuição.

- O fato dela ter demorado quatro horas para se arrumar não desmerece a naturalidade da beleza, Logan! – Effie abriu um sorriso irônico, acompanhado em seguida pelas risadas do grupo.

- Algumas pessoas podem se esforçar por muito mais do que isso e ainda sim... – As pupilas de Gwen guiaram o olhar dos amigos até o outro lado do salão, para indicar uma solitária Alecto Carrow.

De fato, Alecto não era dotada de beleza em nenhum nível. Entretanto, o que mais lhe prejudicava não era o corpo atarracado, mas a expressão constantemente contrariada que trazia no rosto. Ao contrário de Bellatrix, a moça, ainda celibatária aos 23 anos, acabara entrando para o grupo de mulheres consideradas solteironas. Narcissa respirou com alívio, pensando em quantas vezes havia julgado que sua irmã poderia, pelo gênio forte, ir parar entre elas. O noivado com Lestrange representava o fim de uma era de receio para a família Black.

- É uma comparação injusta, Gwen! No seu potencial nós ainda podemos fingir acreditar. – A expressão de Natanael Bulstrode era uma provocação.

- Não fale assim dela! A Carrow só teve má sorte. – Matilda o repreendeu, com uma expressão compassiva escondido sob os olhos castanhos.

- Por que não, irmãzinha? Tem medo de que ela seja sua única amiga nos próximos anos? – A tensão entre os dois se formou de forma repentina, o que era comum quando a irmã mais nova de Natanael reunia-se com eles.

- Vá se foder, Nate! – Ela cerrou a expressão, fazendo com que o silêncio pesasse sobre o grupo.

Ainda que Matilda tivesse conquistado seu espaço no círculo de amizade por direito nos últimos anos, Cissy sentia-se aflita com a presença dela quase sempre. A diferença de idade entre os irmãos era ínfima e, talvez por isso, Matilda se sentisse tão irritada em ser subjugada por Natanael. Felizmente, um par de meses havia garantido que os irmãos entrassem em Hogwarts em diferentes anos.

Nate e Narcissa tinham uma boa relação, ainda que não fossem tão próximos. A escolha dos dois como monitores da Sonserina os tornara companheiros. Ela havia respirado aliviada quando o rapaz havia sido selecionado junto com ela, era inegável que Natanael era muito mais responsável e dedicado. Ainda que não tivesse problemas para conviver com o garoto, estava agradecida que os irmãos estivessem em anos diferentes, jamais conseguiria suportar aquela discussão constante, caso ambos estivessem nas mesmas classes que ela.

- Vejam só quem decidiu compartilhar sua magnífica presença com os reles mortais! – A densa voz de Effie captou a atenção dos amigos para a aproximação do grupo de garotos. – Damian! A que devemos a honra?

- Eu jamais perderia uma esplendorosa refeição gratuita, minha estimada Effie!  Não seria capaz de negar tudo que aprendi com você durante esses anos de amizade. – Mulciber curvou-se amenamente, numa mesura irônica.

- Idiota! – Os lábios escuros da moça se esticaram em um sorriso jocoso.

Como se sempre estivessem estado ali, os três garotos integraram-se a roda de conversa. Mulciber começou imediatamente a tagarelar orgulhosamente sobre como seu pai havia punido um elfo doméstico logo antes de virem para a festa, o que a Cissy pareceu a história mais tediosa que ela já havia ouvido. Ao lado dele, o rapaz magricela complementava a narrativa com certa frequência, interrompendo o outro para dar detalhes que levavam o grupo as gargalhadas.

Narcissa não simpatizava com a cara de rato de Raymond Avery, cuja presença Damian vinha fazendo o possível para agregar ao grupo. Avery era quintanista e costumava andar para todos os lados com Severus. Entretanto, desde que passara a fazer parte do time de quadribol, no ano anterior, ele e Mulciber haviam se tornado inseparáveis. Agora, os três viviam juntos, conversando baixo pelos cantos.

Mas Severus Snape não estava ali. Era óbvio que seu sobrenome não lhe dava peso suficiente para frequentar tal espaço. O terceiro rapaz que compunha o trio era seu primo. Enquanto as risadas soavam soltadas, Evan contornou suavemente a roda, até que estivesse disfarçadamente ao seu lado. Para os que observassem de fora, parecia que estavam inseridos sem distinção na esfera dos amigos. Contudo, ignoravam sumariamente a conversa dos outros.

- Você está maravilhosa! – Ele cochichou, curvando-se para aproximar a boca do ouvido dela o suficiente para que pudesse ouvir mesmo sob o burburinho do salão.

- Obrigada pela gentileza! – Deu um sorriso afetuoso ao rapaz. – Vou deixá-lo me conduzir por uma dança, em agradecimento pelo elogio. – Os olhos azuis fulguraram espirituosos.

- Eu adoraria, Cissy. – Ergueu a sobrancelha, com um meio sorriso no rosto.

Evan titubeou, erguendo a mão na direção dela e retornando o braço para junto do corpo assim que a música foi interrompida. Como se uma coreografia tivesse sido ditada, os grupos afastaram-se sutilmente até as bordas do salão, deixando um espaço no centro, onde seu pai e sua mãe encontravam-se, de braços dados. Parados exatamente sob o lustre central, o casal resplandecia. O orgulho e o alívio de ver o noivado da primogênita se concretizando estava estampada na figura dos dois. Druella Black fulgurava, o sorriso satisfeito descansando nos lábios bem desenhados em um sutil tom carmesim, impecável na figura da esposa dedicada. Naquele instante, sob a avaliação de seus pares, Cygnus sustentava a honra da família Black, com uma postura imponente.  Narcissa apertou os lábios, esperando que a voz encorpada do pai tomasse o salão.

- Sejam todos bem-vindos! É com inefável prazer que Druella e eu os recebemos nesta iluminada véspera de Natal para celebrar junto a nós uma ocasião tão singular para a nossa família! Muito nos alegra estar reunidos com vocês nessa noite para festejar algo tão nobre quanto as primícias da união sagrada entre duas linhagens. Nossas famílias caminharam lado a lado ao longo dos séculos, defendendo o que há de mais precioso para nós: A honra e os preceitos bruxos. Neste momento, as trajetórias das casas Black e Lestrange se unem, para perpetuar a pureza de nosso sangue e a glória de nosso espírito! Hoje, a família Black resplandece de júbilo, pois nossa descendência em breve florescerá, através da união de nossa amada filha Bellatrix e nosso estimado Rodolphus. 

O braço de seu pai se estendeu, como uma linha indicando o rumo para que os noivos seguissem até eles. A mão de Rodolphus pousou na omoplata de Bellatrix, direcionando-a enquanto caminhavam juntos. Parecia tudo perfeitamente espontâneo, mas todos aqueles sutis sinais reforçavam o arcabouço intransponível e silencioso das regras sociais. Cygnus era o patriarca, arrimo da família. Era seu dever conduzir as filhas em retidão até a maturidade, momento em que outro homem passaria a fazê-lo. Rodolphus representava o reinício, a nova família que germinaria a partir dali. A vitalidade de sua juventude era a energia necessária para guiar a esposa em direção honrosa e garantir que prosperassem juntos, perpetuando sua descendência. Tudo sempre era sobre eles: Os homens, suas regras e suas vontades.

- Obrigado, Cygnus. – O homem apertou a mão do seu pai, parando próximo a ele, com Bella ao seu lado. Todos os presentes prendiam a respiração, aguardando a continuação da sequência de tradições. – Eu, Rodolphus Lestrange, considero-me digno e pronto para assumir este compromisso. Assim, inquiro diante de todos aqui presentes: Estimados Sr. e Sra. Black, concedem-me a honra de ter a mão de sua filha Bellatrix Black em casamento? - Firmemente, puxou do bolso a caixinha de veludo, abrindo-a para exibir o anel.

- Em nosso nome e de nossa ascendência, concedemos-lhe a mão de nossa filha Bellatrix em casamento. – Seu pai exclamou resoluto e Cissy perguntou-se se ele estaria nervoso.

As varinhas de seus pais estenderam-se lado a lado, envolvendo a aliança com feixes de luz. Narcissa ergueu-se na ponta dos pés, numa vã tentativa de enxergar o tamanho do diamante que adornava o anel. Os Lestrange haviam sido generosos? Ao seu redor, os convidados se amontoavam para fazer o mesmo e ela desistiu. Teria todo o tempo que quisesse para admirar o anel da irmã quando todos fossem embora. Agora, Rodolphus deslizava a joia delicadamente pelo dedo da garota, sob o som das palmas fervorosas. Os dedos longos de Bella estavam alvíssimos, a palidez evidenciada pela estola negra que ela usava.

O rapaz caminhou até o pai, parado a poucos metros, recebendo das mãos dele uma caixa maior também de veludo. Em seguida, retornou para entregá-la a Druella. Este era o momento favorito de Narcissa nos noivados! Sua mãe foi ágil em retirar a joia da caixa, aproximando-se das costas de Bellatrix, que afrouxou suavemente a estola. Tradicionalmente, a mãe do noivo deveria adornar a noiva com um colar passado de geração a geração na família. Entretanto, como Scarlett Lestrange já estava morta, coube a Druella desempenhar seu papel, marcando em frente a sociedade a casa a qual sua filha passaria a pertencer. Rodolphus colocou-se ao lado de Bella, recebendo as palmas da multidão. O peito da moça ostentava agora o símbolo da família Lestrange: O crânio de um corvo.

- Celebremos, meus amigos! À união das famílias Black e Lestrange! Que seja frutífera e fomente orgulho e glória! À Rodolphus e Bellatrix! – Cygnus ergueu a taça, sendo seguido por todos os presentes.

- A refeição será servida no salão de inverno. – Druella abandonou o silêncio finalmente, com um sorriso exultante no rosto. Cissy nem sabia que a mãe era capaz de sorrir tanto assim.

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Os flocos de neve flutuavam suspensos no ar por alguns instantes, antes de cair. Desenhavam sua trajetória em detalhes, para logo amontoar-se e misturar-se à multidão. Deixavam para trás o que haviam sido, para unir-se ao todo. Seus olhos perdiam e retomavam o foco junto com seus pensamentos. Num instante estava absurdamente concentrada e no seguinte deixava que lembranças embaralhadas lhe embaçassem a vista. Bellatrix, Andrômeda, seus pais... E então um pouco de James Potter, martelando no fundo do peito. Effie e Gwen e Severus e todos os outros emaranhados. Não sabia bem onde ela se encontrava no meio disso tudo.

O lento acercar-se do tempo lhe consumia. O fim da era, que se aproximava, tinha sido, em certa medida, o desencadeador de toda aquela ansiedade.  Ela iria deixar Hogwarts. Partir para uma vida sobre a qual não tinha o menor controle. Setembro jamais seria preenchido pelo reconfortante retorno ao Expresso, pelas risadas familiares, os reencontros almejados, a sucessão de dias suficientemente semelhantes para mantê-la segura e satisfatoriamente surpreendentes para fazê-la ansiar pelo que viria. Hoje, o futuro se abria não mais em alegres possibilidades, mas numa névoa de receio e angústia.

Uma parte de seu âmago ansiava por viver. Sentir em detalhes tudo que lhe fosse oferecido. Mergulhar de cabeça em águas cuja temperatura era desconhecida. A outra, implorava para que ela se afundasse em si mesma, deixando que tudo ao seu redor passasse enquanto ela se mantinha inerte. Não viver permitia-lhe não se submeter as dores e dissabores que a intensidade requisitava. O viver demandava uma chama interior que pulsava em labaredas de sofreguidão. Narcissa gostava da serenidade que a frieza lhe proporcionava.

Quem sabe misturar-se e deixar-se dissolver no meio de tantos anseios e tantas vontades fosse o melhor? Não pensar, mas permitir que os desejos e ideias dos outros sobre ela se tornassem verdade. Só sentir o sopro do vento sobre seu rosto, desenhando os caminhos à medida que eles a alcançassem. Passara cada um dos últimos anos certa de que era indiferente a tudo. Que muito pouco realmente importava e que ela seria capaz de aceitar tudo o que a vida lhe dedicasse. Agora, não tinha tanta certeza.  Diante de um mundo cru, pulsando em frente aos seus olhos, perdera a capacidade de não sentir.

Repousou as pálpebras, respirando fundo. Estava cansada de ir e então voltar. Decidir e então questionar-se. Tamanha confusão parecia capaz de engolir a Narcissa por completo. E as vezes, ela desejava que fosse assim. A escuridão podia ser acolhedora, a seu modo.

- Eu imaginei que te encontraria por aqui...

Não precisou abrir os olhos para reconhecer a pessoa que havia se aproximado, mas o fez, ainda que com relutância. Ergueu as pálpebras lentamente, como se emergisse aos poucos depois de um mergulho num lago. Evan estava parado a certa distância, com as mãos enfiadas nos bolsos e um semblante que misturava curiosidade e preocupação.

- Posso? – Indagou, indicando com um maneio da cabeça o banco em que ela estava sentada.

- Claro. – Ela se afastou um pouco, para que o rapaz se sentasse confortavelmente ao seu lado. Mantiveram o olhar no horizonte, silenciosos por alguns momentos.

- Sem apetite? Senti sua falta no jantar.

- É.

- Uma pena! Pensei que você ia gostar se eu te trouxesse um desses.

Virou o rosto para vê-lo enfiando a mão no bolso e tirando de lá um guardanapo. A expressão do rapaz mantinha-se concentrada, desembrulhando o que havia escondido nos entremeios do volumosos pano. Subitamente, ficaram claras as formas de um dos biscoitos de gengibre que ela, a irmã e os primos haviam confeitado. Ele quebrou uma das pernas do homenzinho com os dedos, levando-o aos lábios. Estendeu o tecido gentilmente na sua direção e Narcissa sentiu-se incapaz de negar a amabilidade. O sabor doce do glacê encheu sua boca e ela sorriu, cheia da nostalgia que aquele gosto lhe provocava.

- Obrigada! – Respondeu baixinho, vendo-o quebrar mais um pedaço do biscoito.

- Está tudo bem?

Ela respirou fundo, levando outra porção do doce aos lábios para ganhar tempo. Narcissa sabia que aquela babilônia era sua e não deveria tornar-se um fardo para mais ninguém. Como compartilhar um pouco do que sentia sem fazer com que Evan se afundasse em medos semelhantes? Não queria despertar nele receios com os quais não tivesse ainda se defrontando. Deixou então que ele apresentasse o assunto sobre o qual gostaria de conversar, dando-lhe uma reposta vaga.

- Eu só... Precisava respirar.

- Preocupada por causa da Bella?

- Não por causa dela... Eu só nunca imaginei uma futuro assim para as minhas irmãs.

- Casando-se por conveniência, você diz?

- É... Acho que só queria que ela fosse feliz.

- E talvez ela seja.

- Sendo forçada a dividir a vida com um homem a quem não ama?

- Essa é só a sua noção de felicidade, Cissy. Não significa que seja a dela.  – Evan não abandonou sua calma, mordiscando um pedaço do biscoito, contudo foi como se ele tivesse lhe dado um tapa. – Não fique louca comigo por causa do que eu vou te dizer agora! Acho que o que  te deixa tão alarmada com tudo é querer colocar a sua vida e a de todo mundo num mesmo molde. ‘Tá, seus pais escreveram a história deles assim e são felizes. Só que nem sempre uma mesma ação tem um mesmo resultado. Você pode se casar por amor e acabar miseravelmente infeliz, sabia? E tem gente que vai terminar tomando outros caminhos e mesmo assim vai se realizar. A Bella... Sei lá! Te parece que ela ia adorar uma vida que consistisse em ter um marido bonito e filhinhos bem-comportados para se orgulhar? Me surpreende que ela vá se casar! Se o Lestrange foi a pessoa que pareceu melhor pra ela, talvez seja a melhor mesmo. E pode ser que ela se arrependa depois. Mas ela fez isso porque quis, né? Sempre tem um outro jeito.

- Até que já não tem...

- Às vezes não. E tudo bem, também. Você vai lá e faz o melhor com o que tem à mão. O que eu quero dizer é... – Fez uma pausa para mastigar mais um pedaço do biscoito. - Ela não seguir o que você sonhou pra você, não significa que acabou com a própria vida. Talvez esteja seguindo o que começou a desejar pra ela mesma.

- É, entendi.  O que você quer dizer é que talvez eu seja uma imbecil incapaz de ver as coisas como boas se não forem do meu jeito. – Cobriu o rosto com as mãos, soltando o ar para tentar expelir a frustração.

- Ei! – Ele envolveu os pulsos da garota com os dedos. – Não é isso! Você sabe. – Puxou aos poucos as alvas mãos dela, afastando-as da face. – Não precisa de tanto drama, Cissy. Sou só eu.

- Por que sempre que estou sendo realista as pessoas dizem que estou sendo dramática? – Apertou os lábios, amarrando a cara.

- Porque você sabe ser a rainha do drama quando quer, Cis. Mas... – Segurou o queixo dela com o polegar, para que o fitasse. – É também por isso que é tão perfeita.

- Vá se ferrar!

- Ainda mais agora, agindo com teimosia.  É exatamente por isso que gostamos tanto de você, Cissy! – As írises cor de mel cintilavam divertidas em sua direção, lendo seu rosto por inteiro.

- Você deveria comer o resto da porcaria desse biscoito e ficar calado um pouquinho, Evan.

- Oh, céus! Juro que vou! Só... Tenta não se importar tanto com isso, ‘tá? Ela vai ficar bem. E você também vai encontrar o seu caminho.

O silêncio imperava, exceto pelo barulho dos dentes dele quebrando as últimas porções do homenzinho de gengibre. Ela correu os dedos pelos detalhes dos bolsos do próprio vestido, contornando os laços uma vez atrás da outra, respirando lentamente, até desanuviar os sentidos.

- Obrigada! – Exclamou, de forma tímida.

- Não por isso, Cissy. – Levou a mão até a dela, entrelaçando seus dedos gentilmente. – Mas se quer agradecer, poderia cumprir o que você me prometeu hoje.

- Eu prometi?

- Uma dança. Para agradecer a minha gentileza.

- Ah, é! Prometi. Mas mal se pode ouvir a música daqui, Evan!

- Isso não é um problema, minha cara. Além de um excelente dançarino, sou também um excepcional cantor!

- Você? Cantor?

- Absolutamente! Nunca te disse isso?

- Definitivamente não.

- Não é problema! Eu te mostro agora. – Ele se levantou e pôs-se a sua frente, estendendo a mão com cortesia.

Ergueu o corpo receosa, com o cenho franzido e segurando a vontade de rir. Caminharam juntos, deixando o banco e o guardanapo para trás.  Cissy imaginou que ele a levaria para o coreto, mas o garoto parou em um espaço mais aberto, longe dos olhos de algum convidado que pudesse estar bisbilhotando. Evan fez uma sutil reverência e esperou que ela fizesse o mesmo, antes de envolver sua cintura com os braços e trazê-la mais para perto de si. Narcissa cruzou as mãos em volta do pescoço do rapaz, repousando o rosto na curva da sua nuca. Os lábios dele cantarolavam suavemente, bem próximos a sua orelha, reforçando os escassos fios da música que começara a tocar no salão de baile e podiam ser ouvidos ali, no jardim.

- When the night has come, and the land is dark, and the moon is the only light we'll see...

Evan desafinou algumas vezes. Ainda assim, o ressoar baixinho da voz grossa, quase sussurrado, esquentou seu peito. A neve ia sendo polvilhada sobre eles, enfeitando a cena. Cissy cerrou as pálpebras, fantasiando que rodopiavam dentro de um globinho de neve. Deixou-se sorrir diante dessa ideia, acompanhando o ritmo em que o primo a conduzia.

 - If the sky that we look upon should tumble and fall. Or the mountain should crumble to the sea... I won't cry, I won't cry. No, I won't shed a tear. Just as long as you stand...Stand by me.

Deitou a cabeça no ombro do garoto, prestando atenção às suas respirações se sincronizando aos poucos. Subiu uma das mãos, acariciando a nuca dele com as pontas dos dedos. Tudo o que lhe afligia parecia pesar um pouco menos agora, sentindo o coração de Evan bater compassadamente contra o seu peito.

- So darlin', darlin', stand by me. Oh, stand by me. Oh, stand now! Stand by me, stand by me.

Ergueu a cabeça, fitando-o com um sorriso. Evan encostou a testa na dela e foi a vez de ele fechar os olhos. Deu-se conta de que a boca dele buscava a sua. Virou suavemente a face para o alto, fingindo fitar as estrelas. Não queria misturar as coisas e estragar o momento tão especial que havia se desenrolado entre eles. Segurou o rosto dele, acariciando a têmpora com o polegar. Embora pudesse ler a confusão nas pupilas do rapaz, não quis explicar.

- Whenever you're in trouble, won't you stand by me? Oh, stand by me...

Beijou a bochecha dele, deixando sobre a pele a marca do batom. Deslizou suavemente os dedos para dissipar a mancha e depois de dar-lhe um sorriso sincero, voltou a encostar o rosto no do garoto, aproximando a boca do ouvido dele.

- Obrigada! – Exclamou, para só então acrescentar algo com um sussurro. -  Eu vou estar aqui.

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