
Tudo no mesmo lugar, mas do avesso
Correu os dedos pelos lençóis de algodão egípcio, deixando que deslizassem pela imensidão cinzenta. Fitou o dossel, ouvindo o tiquetaquear do relógio. As cortinas ondulavam com o vento, permitindo que ele pudesse ver a madrugada se aprofundando e a lua refletindo seus fulgurantes raios para dentro do quarto. A lareira havia sido acessa ao anoitecer pelos elfos domésticos e mantinha o ambiente aconchegante, ainda que o lado de fora estivesse congelando. Cerrou os olhos suavemente, lutando contra a própria sanidade que insistia em sussurrar em seu ouvido que aquilo não era uma boa ideia. Era tarde demais. Sirius Black não voltava atrás.
O inconfundível estalido preencheu o quarto e ela aparatou exatamente em frente ao cabideiro, onde pendurou a pesada capa. Na penumbra, o vulto esguio caminhou pelo quarto, soltando os sapatos em qualquer direção e esvaziando o conteúdo dos bolsos sobre a poltrona.
- Você demorou... – A voz aveludada rasgou o silêncio e ela manteve-se imóvel, com a mão pousada sobre a varinha.
- O que diabos você está fazendo aqui? – Virou-se e, ao deparar-se com ele, ralhou com o rosto franzido de raiva. – Você mexeu em alguma coisa? – Ergueu a sobrancelha, com um olhar desesperadamente repreensivo.
- Calma, Bellinha! Seus segredos estão seguros comigo. – Trazia na cara um sorriso dissimulado.
- Se eu encontrar alguma coisa remexida, você vai se arrepender de ter se atrevido!
- Relaxa! Eu pensei que você ia gostar de me ver.
- EU? – Ela gargalhou até que a cabeça pendesse para trás, num tom sombrio. – Vou te dar um minuto para sair daqui antes que eu mesma desapareça com você.
A garota tornou a virar-se de costas, parando em frente a penteadeira e começou a tirar as joias que usava, depositando-as sobre o móvel. Sirius ergueu-se da cama, deixando para trás o lençol que encobria a sua nudez. Aproximou-se de onde ela estava, parando logo atrás e envolveu a cintura da moça com um dos braços, colando o corpo curvilíneo contra o seu. Com a outra mão, afastou os grossos e negros cabelos que lhe cobriam a nuca, pousando os lábios sobre a pele alva. Arrastou a boca por sobre o pescoço dela, até que estivesse bem próxima a orelha.
- Por que toda essa pressa em me ver pelas costas, priminha? Você sabe que não adianta... – Rodou o corpo dela para que ficasse em frente ao seu, prendendo-a firmemente entre ele e o móvel. - Eu sou a tua sina.
Bellatrix estava inerte, sentindo os seus lábios derramarem-se pelo colo dela. Afastou as tranqueiras com o braço, impulsionando-a para que se sentasse no tampo da penteadeira. Abria sem cuidado os primeiros colchetes do corselete que a garota usava, quando sentiu um dos pés dela subir por seu corpo, deslizando pela sua pele e lhe causando arrepios. Sorriu para ela com volúpia e o instante de distração foi suficiente para que a mulher chutasse seu peito com força. Tropeçou em um dos sapatos que ela tinha abandonado e caiu contra o chão.
- Quem você pensa que é, seu merdinha? – Ela entrelaçou firmemente os dedos no cabelo dele, puxando-o para cima e o jogando na cama. – Perdeu a língua? Ou não consegue mais esconder a covardia?
- Bella... Você não precisa agir tão pudicamente comigo! – Massageou o couro cabeludo dolorido. – Minha visita no meio da noite não é exatamente uma novidade para você.
- Eu já disse que quero você fora daqui, Sirius! – Cruzou os braços a frente do corpo.
- Não entendo o porquê. Assim você me magoa, Bellinha! Até parece que você não sentiu saudades de mim.
- Passou o tempo de bancar a babá, meu querido. Tenho coisas mais interessante pra fazer.
- Hm... Deixe-me ver... Algum desses seus amigos sangues-puros que estavam tão ocupados pensando em torturar trouxas que nunca foram capazes de encontrar o caminho pro clitóris? – Se levantou e foi até ela, segurando seu rosto pelo queixo para impedir que ela desviasse o olhar. – Ou será que algum deles conseguiu te fez gozar a metade do que eu já fiz?
- Você é patético, moleque! As minhas companhias não te interessam. – Puxou o rosto da mão dele.
- Deixa de ser geniosa, Bella! Eu voltei louco pra te mostrar umas coisas que andei aprendendo... – Tornou a distribuir beijos pelo pescoço da moça, desenhando o corpo dela com as mãos.
Beijaram-se enfim, como dois revoltosos maremotos se encontrando. A língua dela desbravava sua boca sem qualquer resquício de delicadeza. As quatro mãos estavam perdidas entre os dois, percorrendo os corpos despudoradamente. Com toda a força que conseguiu reunir, Bellatrix abocanhou o lábio inferior do rapaz.
- Ai! – Afastou-se, sentindo o gosto de sangue tomar-lhe a boca. – Caralho, Bella!
- Acostumou-se mal com essas garotinhas sem-sal da Grifinória, priminho? – Uma gargalhada sádica lhe escapou pela garganta. – Eu não vou pedir de novo para você sumir daqui.
- Não precisa disso, vamos conversar...
- Eu estou farta de conversa, Sirius!
- Então cala a minha boca, vai! – Segurou o pescoço dela, enredando as pontas dos dedos nos fios negros. – Você sabe o quanto eu adoro uma mulher bem bravinha.
Desvencilhou-se e empurrou o corpo dele, fazendo com que tombasse de costas na cama. Com puxões violentos, abriu o que restava do corselete, deixando que a peça caísse ao chão. A saia e a calcinha desapareceram rapidamente e Sirius permitiu-se contemplar sem embaraço o corpo bem delineado da moça. O desejo circulava espesso por suas veias, fazendo com que seus músculos pulsassem.
- Você é pior do que um carrapato, Sirius Black. – Xingou rispidamente, subindo na cama.
O rapaz sorriu, vendo que os negros olhos faiscavam lascivamente quando se aproximou dele. Os lábios finos passeavam pela extensão de sua carne, sorvendo sua pele. Ela sentou-se sobre o seu corpo, devorando cada pedaço dele com os olhos. Bellatrix era um crime que ele não se cansava de cometer. Seu corpo vibrava pelo dela, cheio de uma gana que o levava à beira de sua própria destruição. Cerrou os olhos por um breve instante, deixando que o calor dela tomasse conta do seus sentidos. Se estar com a prima era seu completo suicídio moral, a morte nas mãos dela era uma experiência divina.
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Fechou silenciosamente a porta do quarto, caminhando em passos lentos pelo corredor. No andar de baixo, o ruído das louças tilintando anunciava que o dia já havia começado na mansão Black. O delicado papel de parede resplandecia em ornamentos dourados, indicando que do lado de fora o sol cintilava em seu esplendor. Tocou a superfície do papel, sentindo as ranhuras sob os dedos. Se o clima do lado de fora fosse chuvoso, os tons de dourados seriam substituídos pelo prata e todas as noite tons de ônix ocupavam as paredes, variando sua intensidade de acordo com a quantidade de nuvens que encobrisse o céu noturno. Regulus amava aquela casa e todas as suas peculiaridades!
Tio Cygnus havia sido o primeiro a casar-se e o dote dos Rosier fora tão generoso que jamais passou pela cabeça de seu avô Pollux outro alternativa que não fosse deixar aquela casa para ele como herança. Tio Alphard, excêntrico e solteirão, herdou de seus avós a casa de campo, onde podia dedicar-se sem interferências à suas pesquisas herbológicas. Por fim, sua mãe havia recebido dos pais uma charmosa casa localizada em um balneário, que devia estar fechada e coberta de teias de aranha há pelos menos 10 anos. Temporadas na praia não eram algo que pessoas como Walburga Black costumavam apreciar e um episódio de quase afogamento de Sirius tinha sido o suficiente para justificar o abandono do lugar.
Por sorte, Órion havia sido o herdeiro incontestável da casa localizada no Largo Grimmauld, onde viviam. Não tinham do que reclamar. Sua avó Melania e seu avô Arcturus haviam feito de tudo para tornar a casa o mais suntuosa possível, ampliando o esplendor que se acumulara ao longo das décadas. Apesar disso, ela nunca chegaria aos pés do que aquela mansão significava. Séculos de cultura, tradição e opulência jamais poderiam ser sobrepujados por uma casa que originalmente fora construída por trouxas, num bairro rodeado deles por todos os lados. Bela arquitetura e ornamentos majestosos não eram capazes de competir com um lar estruturado magicamente desde sua fundação. A imponência daquela mansão estava justamente em comportar todos os detalhes que seus antepassados haviam planejado e executado. Além disso, era inegável que tia Druella possuía não só um olhar apurado, mas também a notável elegância para gerir um lar que faltava à sua mãe.
Do quarto de banho logo a frente, ouviu um barulho gutural espalhar-se. Franziu o cenho e foi até a entrada em passos decididos. Bateu na porta duas vezes com firmeza antes de empurrá-la suavemente, só o suficiente para perceber que estava trancada. Encostou a orelha contra o mogno, tentando entreouvir o que se passava. Refletiu por alguns instantes até que o entendimento o atingiu, alguma das garotas estava vomitando.
- Está tudo bem, prima? – Indagou, esperando que a resposta em alta voz trouxesse à tona a identidade da dona.
- Tudo bem, Reg. Já encontro vocês para o café da manhã! – O timbre de Andrômeda soou logo antes da descarga.
Revirou os olhos decepcionado. Ansiara que a vítima fosse Bellatrix, para que sua mente pudesse fantasiar e criar mil versões do paradeiro dela na noite anterior, mas estava enganado, era só a Andy. Não havia graça nenhuma naquilo. Estiveram juntos por toda a noite até que ela havia se recolhido para dormir. De fato, a comida também não tinha lhe caído bem, deixando-lhe horas acordado sentindo a garganta queimar.
- Bisbilhotando tão cedo, priminho? – A voz fina da prima mais velha lhe perfurou os ouvidos, vinda do fundo do corredor, e a risadinha que se seguiu o lambeu com um nível extremo de deboche.
Sem dar a ele ao menos um olhar, a moça apressou o passo e desceu as escadas com agilidade. Em poucos segundos, restou apenas a imagem dos cabelos longos e negros esvoaçando atrás dela. Desceu as escadas logo depois, muito mais lentamente. Se fosse possível de alguma forma no mundo real, ninguém seria capaz de questionar que Bellatrix era filha de uma tempestade de verão: Fugaz, incisiva e imprevisível. Assim como todos da sua família, ela era uma incógnita. Estava certo de que por ter nascido depois, havia chegado tarde demais para compreender todas as nuances dos seus familiares. As trocas de olhares, os sussurros, as regras implícitas, as conversas interrompidas quando ele se aproximava e os subentendidos que ele nunca era capaz de alcançar. Sirius era só dois anos mais velho e sempre parecia perfeitamente imerso em tudo. Será que seu irmão só havia aprendido a fingir bem? Era como se todos escondessem dele segredos sobre o que havia acontecido quando ele era criança demais para perceber. Antes que pudesse dar-se conta, seus pés interromperam a descida e ele ponderou um instante, decidindo convergir à direita no primeiro andar. O caminho era natural e o carpete parecia adaptar-se sutilmente às suas pegadas.
A porta estava invariavelmente aberta e foi irresistível entrar no cômodo, que em completo silêncio era ainda mais esplendoroso. As enormes janelas permitiam que a luz tomasse todo o ambiente, ressaltando sua vacuidade. Móveis, quadros ou enfeites eram desnecessários e a sala estava completamente vazia, exceto pela tapeçaria pendurada na parede que fazia divisão com o corredor. Seu coração saltou, açoitando seu peito.
- A Mui Antiga e Nobre Casa dos Black. – Murmurou, deixando que as palavras acariciassem seus lábios ao sair.
O profundo negro tomou sua visão e sentiu-se tentado a tocar a tapeçaria, mas conteve-se. Os dedos formigavam de vontade, por isso enfiou as mãos nos bolsos decididamente. Havia glórias que ninguém jamais seria realmente digno de tocar. O desenho da árvore estendia-se em bege por toda a peça, viva e pulsando. Em relevo, os nomes de seus familiares flutuavam sobre os galhos cujo emaranhado delineava as intricadas relações de sangue. No canto inferior, as letras prateadas pulsavam: “En stirps nobilis et gens antiquissima Black.” Mais abaixo, em letras menores, o avô de sua mãe havia adicionado “Toujours Pur!”.
Fitou os nomes que conhecia tão bem, permitindo que o orgulho adormecesse seus sentidos. Regulus trocaria qualquer coisa que pudesse possuir por aquela tapeçaria. Contudo, tinha ciência de que ela pertenceria infinitamente àquela casa. Essa era uma das maiores razões pela qual apreciava tanto a mansão. A casa do largo Grimmauld possuía uma versão da tapeçaria replicada nas paredes. Era dotada de conteúdo precisamente idêntico, mas incapaz de igualar-se em esplendor. Estavam magicamente ligadas e tudo que fosse alterado em uma, se rebateria na outra. Entretanto, a tapeçaria original possuía uma energia vital que pulsava, de forma profunda e penetrante. Qualquer um que se aproximasse do cômodo sentiria a potência e a vivacidade que adivinham dela.
- Se ficar aí vai perder o café... – Andrômeda exclamou com um sorriso no rosto, parada à porta.
- Não me canso de admirá-la! – Admitiu, soltando o ar.
- Eu poderia passar horas olhando e ainda não seria capaz de me afastar! Tem a ver com a magia dela, eu imagino. Você não sente seu coração acelerar quanto entra?
- Sinto-me terrivelmente pretencioso em fazer parte dela.
- Eu sei... – Concordou, com um semblante pensativo. - Mas você tem a vida toda para contemplá-la, Reg. O desjejum não vai esperar tanto!
A moça estendeu a mão na direção dele, sorrindo de forma convidativa. Hesitou alguns instantes, antes de caminhar até a prima e permitir que envolvesse seus ombros com um dos braços. Os lábios mornos pousaram em sua testa e Regulus sentiu seu estômago esquentar, envergonhado. Até quando as primas ainda o considerariam um bebezinho?
Desceram as escadas lado a lado, sem que Andy afastasse o corpo esguio do dele por um instante. Passaram juntos pela larga porta da sala de jantar, ladeada pelas cristaleiras. Na enorme mesa de madeira nobre, a família estava sentada tomando o desjejum e eles demoraram alguns minutos para atravessar o cômodo até o lado oposto. Finalmente, Andrômeda desvencilhou-se dele para assumir seu lugar tradicional. Exceto em jantares comemorativos, todos conheciam exatamente o arranjo que deveriam seguir. Tio Cygnus, ostensivo, em sua posição de comandante do lar, ocupava a ponta, reinando absoluto. Ao seu lado direito, tia Druella fulgurava como a lua, brilhando apenas pela ação do sol, ainda que ninguém pudesse negar seu suave destaque. Do lado esquerdo, Bellatrix, portando-se como a herdeira definitiva do trono. Em seguida, Andrômeda e só então Narcissa, delineando a linha de sucessão. Após sua tia, estava o lugar que tradicionalmente era de seu pai. Ao lado dele, deveriam seguir-se sua mãe e só então os filhos. Dada a sua ausência, Sirius estava sentado ao lado da mulher loira, com olheiras profundas e o rosto amassado, denunciando que havia se levantado à poucos minutos.
- Bom dia! – Andrômeda saudou, enchendo um copo com água.
- Bom dia, meu bem! – Deu a filha um olhar carinhoso. - Como vai, Regulus? Seus aposentos estavam de acordo com o seu gosto? Teve uma boa noite de sono? – A mulher esticou o pescoço para sorrir em sua direção.
- Perfeitos como sempre, titia. Muito obrigado!
- Cissy estava nos falando da sua façanha no último jogo de quadribol. Você vai entrar para o time titular? – Ela o fitava com os olhos interessados, embora os desviasse sutilmente para espalhar geleia em uma torrada.
- Não sei... Algumas pessoas não ficaram muitos felizes por eu ter apanhado o pomo sem prestar atenção ao placar. Mas era isso ou o Potter capturaria! – Deu de ombros.
Sirius ergueu os olhos do croissant com um sorriso debochado e o garoto crispou os lábios, esperando pelo escárnio que sairia da boca do irmão. Travou o punho, segurando com força a cadeira. Trocaram olhares enviesados, cientes de que discordavam plenamente sobre aquele assunto.
- Não há nada repreensível na sua atitude, Regulus! Seus colegas só não são fortes o suficiente para fazer o que precisa ser feito. – Enquanto dobrava as folhas do Profeta Diário e depositava-as sobre um canto da mesa, a voz firme de seu tio tomou o ambiente, impedindo que seu irmão se manifestasse.
Comeram em um desconfortável silêncio por alguns instantes, até que o farfalhar das asas invadiu a sala e um profundo ar de incômodo se desenhou no fino rosto de sua tia. A coruja pomposa pousou próximo a Bellatrix, quase derrubando a xícara de chá posicionada a sua frente. Ela deu um sorriso satisfeito, arrancando a carta do bico do animal e dando-lhe um pedacinho de pão.
- Bella! É necessário repetir que não são permitidas corujas nas horas das refeições? – Druella ergueu a sobrancelha repreensivamente.
- Sinto muito, mamãe. – Murmurou, contra a vontade, revirando os olhos. Seus dedos corriam ansiosamente pelo pergaminho.
- A carta poderá ser lida confortavelmente em seus aposentos, depois que você sair da mesa. – Frisou com dureza, vendo que a filha tencionava abrir a carta.
- Por Merlin, mamãe! Todas as manhãs papai lê o jornal à mesa. Qual a justificativa mirabolante pela qual sou impedida de abrir uma carta? – Soltou a xícara contra o pires bruscamente, para que o tilintar demonstrasse seu descontentamento.
- Calada, Bellatrix! Não seja insolente com a sua mãe! – A voz firme de Cygnus fez com Regulus se retraísse contra a cadeira, embora sua prima permanecesse com a mesma postura desafiadora.
- Quando for dona do seu próprio lar, você estabelecerá as regras. Aqui, prevalecem as minhas. E corujas não são permitidas durante as refeições, como você bem sabe, Bellatrix Black. – Ainda que os lábios da mulher estavam crispados, sua figura permanecia serena.
- Não demorará muito para isso acontecer. Logo será o primeiro passo para o grande dia, não é Bella? – Cygnus tamborilou os dedos sobre a mesa. A forma inquisidora como encarava a Bellatrix lembrou a Regulus o rosto de sua mãe, em todos os aspectos e nuances de sua altivez.
Num estrondo, Sirius cuspiu o café que tinha na boca como uma nuvem, antes de arregalar os olhos na direção da prima. Como se atrevia? Aquele petulante estava aproveitando-se da ausência dos pais para zombar descaradamente de seus tios! Desejou pisar no pé dele com toda a força, mas conteve-se, certo de que ele não hesitaria em usar aquilo para gerar ainda mais caos frente à uma situação tão delicada. A recusa definitiva de Bellatrix em casar-se com os pretendentes propostos pelo pai transformara-se em um assunto inquietante dentro da família.
Como a herdeira mais velha, deveria ser a primeira a se casar. Nos instantes iniciais, seus tios haviam feito vista grossa, atribuindo as negativas à personalidade forte da primogênita. Aos poucos, um rapaz após o outro foi sendo rejeitado, por mais dinheiro ou influência que tivesse. Negava cada um com uma justificativa mais ácida. Para os primeiros, alegou que possuíam gênios incompatíveis, que jamais suportariam viver sob o mesmo teto que uma mulher tão intensa. A outros, negou sob a justificativa de que não tinham o pulso necessário para casar-se com uma Black. Depois, parou de se dar ao trabalho de inventar uma desculpa, debochando deles ao atribuir apelidos pelas costas a cada pretendente que seus pais convidavam para o jantar: Paspalhão, Lambe-botas, Calça apertada e Criado pela vovó.
Aos 21 anos, Bella estava prestes a cruzar o limiar da idade considerada adequada para que uma moça de alta classe não estivesse casada. Em abril do ano seguinte, passaria a carregar o status de solteirona. A situação de Andrômeda, apenas um ano mais nova, acabava por complicar-se em consequência e seus tios estavam começando a perder a paciência. À medida que as opções se esgotavam e a fama de sua prima crescia, a história de Walburga Black ia se repetindo, para o desespero de tio Cygnus. No fundo, todos estavam cientes de que não existia no mundo um homem talhado para lidar com a força que Bellatrix era. Ainda que muitos tivessem se proposto a tal, apenas um conseguira convencê-la disso.
- Você está noiva? – Seu irmão indagou, com a voz esganiçada pela risada entalada na garganta.
- Ainda não. – Os lábios da moça se delinearam num sorriso satisfeito e seu olhos fulguravam.
- Quem? – Cissy parecia um cachorrinho ansioso, abanando o rabo e correndo os olhos curiosos na direção do pai, e em seguida para a mãe e a irmã.
- Os Lestrange. – Druella esclareceu com um sorriso suave no rosto, embora a veia em seu pescoço estivesse saltada.
- Rabastan? – Desenhou-se no rosto da loira um sorriso devasso.
- Rodolphus. – Seu tio esclareceu, sorvendo o café com força.
- Tanta demora... – Narcissa franziu o cenho, com uma evidente expressão de descontentamento.
- A escolha partiu da sua irmã, Narcissa. Não entendo a intenção do seu comentário. Os Lestrange são uma família de grande honra e prestígio!
- Não serei eu a acordar ao lado dele todos os dias... – A garota deu de ombros, tomando um grande gole do copo de suco.
- Estamos muito orgulhosos da sua decisão, querida! – Bateu a mão duas vezes sobre a da primogênita, de forma afetiva. - E agora que Bella finalmente escolheu seu futuro marido, Andy está pronta para fazer o mesmo. Sem tantas delongas, eu espero.
O olhar de Andrômeda era quase um grito de desespero. Concentrou-se excessivamente em desembrulhar um muffin de mirtilo, colocando uma garfada demasiadamente grande na boca, para incapacitar-se temporariamente de falar.
- Estou certo de que ela já tem o nome do futuro noivo em mente. – Sirius brincou, dando um sorriso de deboche na direção dela. – Conte-nos, Andy, será o professor Slughorn?
A moça deixou escapar uma risadinha, por trás do copo que encobria a boca. Monitora-chefe em Hogwarts, Andrômeda era dona de um histórico escolar impecável. O diretor da Sonserina a estimava profundamente, fazendo questão de citar seu nome sempre que possível. Embora detestasse Poções, a garota havia se visto obrigada a agradar o mestre, desenvolvendo uma inquestionável habilidade na matéria, que lhe rendera fama entre os aplicadores dos NOMs e dos NIEMs. Regulus sentia-se entusiasmado todas as vezes que ouvia o professor enaltecer suas primas, aguardando ansiosamente o momento em que ele iria se tornar o alvo dos elogios.
- Não seja desagradável, Sirius! – Druella o repreendeu com um olhar cortante. – Horace Slughorn é um homem muito respeitável, mas há muito tempo decidiu dedicar sua vida ao conhecimento. Andrômeda não terá dificuldades em encontrar um jovem honrado que lhe queira tomar por esposa!
- Confio que não tardará, para que ela possa abandonar o quanto antes essa terrível ideia de trabalhar naquele banco. – A figura de seu tio denotava toda a repulsa que sentia por ver a filha desperdiçar seu tempo a serviço de duendes. – Logo estará assumindo o verdadeiro papel para o qual nasceu: Comandar um lar bruxo com retidão, tradição e honra.
- Por favor, papai, não precisamos voltar a esse assunto outra vez... – Com uma figura cansada, Andrômeda remexeu-se de forma incomoda na cadeira, frente ao discurso do pai.
- Em breve estaremos completamente livres dele, meu bem. – O bigode de Cygnus ergueu-se quando ele abriu um sorriso satisfeito. Quase era possível ver as engrenagens encaixando-se dentro da mente do homem e Regulus desejou saber o que ele estava premeditando.
- E quando será o noivado? – Ouviu as palavras saírem de sua boca sem que tivesse controle do que estava dizendo, na ansiedade de fazer-se parte da conversa.
- Na véspera de Natal. – O anunciou foi feito com tamanho deleite que foi impossível negar o quanto Cygnus estava esperando que aquela pergunta viesse à tona.
- Como disse? – Foi a vez de Narcissa engasgar-se com a comida. – Papai, isso é daqui há três dias!
- Precisamente, meu anjo.
- Eu estava preparada para a festa de Natal. Mas um noivado? Não tenho vestes adequadas para essa ocasião! – Apertou com força o guardanapo antes de soltá-lo sobre o prato, encerrando a refeição.
- E quanto aos três milhões de vestidos que você tem no armário? São para as suas bonecas, irmãzinha? – Bellatrix acrescentou, revirando os olhos.
- Não se preocupe, Cissy! – Druella pousou os talheres delicadamente contra o prato. - Assim que todos estiverem prontos, vamos sair para dar fim a este problema.
- Compras? – Andrômeda afundou-se na cadeira, permitindo que seu enfado se deixasse conhecer por todos.
- Aproveite o ensejo e traga-me uma caixa de sapos de chocolate. Sim, priminha? – Seu irmão tirou alguns galeões do bolso, colocando-os sobre a mesa um a um. Perguntou-se seriamente se aquele idiota era incapaz de viver alguma situação sem zombar dela.
- Não será necessário, Sirius. Sua mãe me recomendou que providenciasse novas vestes para você e Regulus também. “Esses meninos são piores do que erva daninha”, foi o que ela me disse, se bem me recordo. Me pareceu que estava falando do quanto vocês crescem rápido... – O escárnio escorreu como mel pelos lábios de sua tia.
- Bom, o dever me chama. – Cygnus limpou o bigode com o guardanapo e levantou-se.
- Papai! Hoje é domingo! – No rosto de Andy, delineou-se uma expressão de injúria. – Você prometeu que ficaríamos juntos quando Cissy estivesse aqui!
– É necessário honrar os compromissos antes do lazer, meu bem! Preciso ter uma conversa importante com alguns amigos. Mas espero vê-los pontualmente para o jantar. Estou pronto para me certificar de que ainda posso vencer a todos vocês no pôquer com uma das mãos amarradas nas costas! – Caminhou até a esposa, depositando-lhe um beijo suave na têmpora. – Divirtam-se!
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Inspirou profundamente, enchendo os pulmões com o cheiro de especiarias que se espalhava pelo ar naquela época do ano. As ruas pareciam como um formigueiro, tão apinhadas quanto no fim das férias de verão. Seja comprar um presente de última hora ou os ingredientes para a refeição perfeita, todos tinham um motivo para ir ao Beco Diagonal naquele domingo que antecedia a festa de Natal.
Caminharam com destreza por entre a multidão, abandonando a rua principal onde agrupava-se a maior parte dos bruxos e seguindo sua mãe em direção a uma das vias laterais. Narcissa, empolgada com as futuras aquisições, ia ao lado dela, tagarelando sem parar. Para Druella, fazer compras significava um passeio pela Alameda Áurea. Estrategicamente afastada das lojas mais comuns, ali concentravam-se as boutiques e maisons frequentadas pela elite bruxa. Um passo para dentro daquelas lojas indicava um número considerável de galeões no cofre. Ou a intenção de causar essa impressão aos que estivessem observando.
A via era larga e as vitrines bem iluminadas, ainda que sem exagero. Tudo na atmosfera daquele lugar evidenciava um refinamento que a Andrômeda parecia extremamente premeditado. Era óbvio que tudo havia sido planejado para dar a impressão de exclusividade e sofisticação, impelindo os clientes a pagar muito mais do que seria justo pelos produtos. Ainda assim, era difícil não se sentir envolvida pela sensação luxuosa que a alameda emanava e ela tinha que admitir que certos artigos mais rebuscados só podiam ser encontrados ali.
- Que prazer encontrá-la por aqui, minha querida! – Os largos braços do homem se abriram, encurtando a distância até o encontro e envolvendo sua mãe em uma abraço.
- Ben! Que surpresa! – Druella beijou a face do irmão mais velho. - Evan, querido! – Sua mãe segurou o rosto do rapaz entre as mãos, erguendo a cabeça para fitá-lo. – Não nos vemos há, o que, pouco mais de um ano? Merlin, como cresceu!
- Olá, titia! Como vai? – Respondeu educadamente, com uma voz grossa que a surpreendeu. Seu priminho havia se tornado um homem! – Olá, Cissy! – Acrescentou, beijando sem embaraço o rosto de sua irmã.
- Como está Camila? – Sua mãe sorria, embora Andrômeda estivesse certa de que aquele era o último assunto sobre o qual ela tinha interesse.
- Revendo os preparativos para o almoço de Natal, detalhe por detalhe. Vocês mulheres nunca aceitam menos do que a excelência e você sabe como ela é perfeccionista! – Moveu os ombros, acompanhando a risada. – Sempre tem alguns itens de última hora... Ela nos incumbiu dessa missão! E vocês? Esses são os garotos de Órion?
A larga diferença de idade entre seu tio Benjamin e a esposa havia criado nela um inalcançável desejo de impressionar. Tinha a necessidade de destacar-se, para sentir que a escolha dela como esposa estava justificada a todos. Ao longo dos anos, tornara-se quase insuportável conviver com tanta competição, motivo pelo qual Druella fazia questão de manter apenas uma proximidade amigável com a família do irmão.
- Sim, estão passando as férias conosco! Viemos porque as garotas estavam precisando de algumas roupinhas novas para as festas. Vamos à Madame Raffinato!
- Muito bem! Estarão belíssimas, como sempre.
- Foi um prazer encontrá-los, queridos! Nos vemos na quarta-feira, sim?
- Quem sabe?! – O sorriso de seu tio indicava que não tinham a intenção de arredar um pé na direção da mansão Black.
- Não me digam que tem outro compromisso?! Será o noivado de Bella! – O prazer com que as palavras abandonaram os lábios de sua mãe era sonoro.
- Bellatrix ficará noiva? Que boa notícia! Quem é o felizardo? – Ergueu as grossas sobrancelhas com surpresa e curiosidade.
- Lestrange! O mais velho: Rodolphus. – Esclareceu, embora aquele detalhe não tivesse importância. O sobrenome era o que todos queriam saber.
- Meus parabéns, Bella! Que sejam muito felizes! – Acenou com um sorriso para sua irmã, que se mantinha parada ao fim do grupo.
- Muito obrigada, titio! Ficaremos alegres em partilhar nossa felicidade com vocês. – Declamou as palavras que esperavam-se ouvir dela, sem entusiasmo.
- Nesse caso faremos questão de comparecer!
- Então nos vemos em breve! Mandem um beijo para Camila, sim? – Druella deu um último abraço no irmão.
- Mandaremos. Lembranças ao Cygnus!
Afastaram-se, seguindo seus caminhos em sentidos opostos. Sua mãe os conduziu até o ateliê. O mercado da alta costura bruxa era dotado de especificidades. Cada uma das mulheres da alta sociedade tinha fidelidade a sua costureira e as clientes tornavam-se uma espécie de seita, defendendo sua escolha com unhas e dentes. As modistas de maior requinte eram restritivas e apenas os clientes mais distintos eram aceitos. Para Druella não havia alguém que produzisse peças tão elegantes quanto o ateliê de Madame Raffinato, cuja clientela devotada era extremamente selecionada. Muitas moças matariam pela oportunidade de usar um vestido desenhado por ela em uma data especial! À Bellatrix, que caminhava sem interesse, a ideia não parecia emocionar.
Foram recebidas à porta pelo mordomo, cujo formato enrolado do bigode sempre dava a Andrômeda uma vontade quase incontrolável de rir. Uma das pasteurizadas atendentes se aproximou de sua mãe. Todas eram extremamente jovens, com cabelos escuros, olhos claros e sorrisos de plástico. Seria impossível diferenciá-las, ainda que tentassem. Em um instante, todos estavam confortavelmente sentados no sofá cor de rosa, bebericando vinho rosê em taças de cristal. Dessa parte, ela tinha que admitir, não se cansava jamais! Em sequência, as vendedoras aproximaram-se de cada um deles, apresentando peças estendidas em luxuosos cabideiros de veludo para a apreciação. Apontou três opções que lhe pareceram adequadas e seguiu em direção ao provador, sem deixar a taça para trás.
Detestou a forma como o vestido cinza de babados lhe vestiu, dando ao seu corpo um formato semelhante ao de um pinheiro de Natal. Suas longas pernas tornaram a salopette preta excessivamente provocante, pouco apropriada para a ocasião. Seria o conjuntinho salmão, então. Sorriu satisfeita, deslizando os dedos pelo blazer. Era seu favorito desde o início!
- Me ajuda aqui, Andy? – Narcissa empurrou a cortina do provador apenas o suficiente para passar, indicando os botões nas costas do vestido.
- Só um minuto. – Lutava com o zíper da saia, tentando fazê-lo fechar no quadril. – Estranho! Não serve. – Franziu o cenho, procurando a numeração na etiqueta. – É o meu tamanho! Deve estar marcado errado. Vou ter que pedir outro... – Revirou os olhos, jogando a peça sobre a poltrona de veludo, junto com o restante que havia experimentado.
- Shhh! – A irmã a repreendeu, aproximando-se até colar o ouvido na parede. – Ouviu isso?
- Isso o que? – Sussurrou, seguindo o exemplo da caçula.
A parede do provador era gelada e sentiu-se arrepiar ao encostar a orelha. Investigou o silêncio, por alguns instantes, indagando-se se a irmã estava ficando louca, até que identificou o ruído baixinho. Do outro lado, soavam murmúrios inquietos e respirações entrecortadas.
- Nada me impediria de te matar com as minhas mãos! – Embora abafada, a voz fina era inconfundível.
- Eu adoraria ver isso! – A resposta veio de uma voz masculina.
- O que diabos...? – Sem concluir o pensamento, Narcissa arregaçou a cortina.
- Cissy, espera! Merda! Volta aqui! – Gritava em sussurros, tentando impedir a outra. - Cissy!!!! - Enrolou o blazer contra o corpo, para esconder a lingerie, e seguiu a irmã em direção ao provador vizinho.
- Vocês estão loucos?? – Um semblante enojado pintava a face de Narcissa e sua indignação era audível, apesar da voz baixa.
- Calma, loirinha! Eu só estava ajudando a sua irmã a fechar o zíper. Não é, Bella? – Sirius ostentava um sorriso promíscuo, sem preocupar-se em cobrir a roupa íntima.
- Mamãe está na sala ao lado, Bella! – Andrômeda a repreendeu. - Que merda vocês estão pensando?
- Esse imbecil entrou quando eu estava de costas! Eu já estava tratando de colocá-lo para fora sem a sua ajuda, irmãzinha. – A última palavra foi dita em sílabas, como se a garota tivesse repulsa por cada letra.
- Sirius, saia, por favor! Ela vai ficar noiva dentro de três dias... Você me prometeu que isso tinha ficado para trás! – Interveio, deixando que a decepção se ilustrasse em seu rosto.
- Isso o que? – Narcissa virou-se em sua direção, avaliando com o olhar os outros três de forma nervosa. – O que diabos só eu é que não sei? – Respirava com desassossego, esperando a resposta.
Fitou sua irmã mais velha, tentando buscar nela uma decisão. Contudo, Bella permanecia quieta, recuada contra o espelho, com uma expressão ferina de quem avançaria sobre a caçula a qualquer momento. Moveu os olhos na direção de Sirius, cuja mandíbula estava trancada.
- Andy... – A voz da mais nova traduzia sua perturbação. – Você não vai me dizer que isso já vinha acontecendo, vai? – Arregalou os olhos, diante do silêncio que se fez.
- Fica tranquila, Cissy! Que motivos eu teria para esconder de você que esses dois estão se comendo desde que o Sirius criou pelos no sovaco?
- Santo Merlin! – Deu alguns passos para trás, até encostar-se na parede do provador. – Vocês... – Apontou a irmã e o garoto, tremendo suavemente. – São primos, sabiam?
- Bem observado, Cissy! Estou orgulhosa que tenha conseguido chegar sozinha a essa conclusão! – Bellatrix abriu um sorriso irônico.
- Ah, vai se foder! - Passava as mãos de forma inquieta no couro cabeludo, apertando as mechas loiras entre os dedos.
- Eu pretendia ajudar com isso... – Sirius deu de ombros.
- Cala a boca ou eu vou vomitar!!!
- Vamos ficar calmos! Agora! – Ordenou, antevendo que a situação se descontrolaria nos instantes seguintes. – Aqui não é lugar para isso. Em casa, conversamos.
- Faça-me o favor, Andrômeda! Não há nada o que conversar. – Bellatrix tomou as rédeas, finalmente. – A pirralha da Narcissa não tem nada com o assunto. Isso é entre mim e o Sirius.
- Idade parece não ser importante para você, Bella, se está trepando com um garoto 5 anos mais novo! – Cissy cutucou.
- E quem é você para dizer alguma coisa sobre com quem eu trepo ou deixo de trepar? Não me consta que tenho que pedir sua autorização para escolher pra quem eu vou dar, princesinha!
- Eu disse: Vamos acabar com esse assunto agora! – Segurou o braço de Narcissa com força, arrastando a irmã na direção da saída. – Sirius, fora! – Indicou com a cabeça o corredor. – Já!
O rapaz revirou os olhos, enfiando a calça com destreza. Estudou o ambiente atrás da cortina, atravessando o corredor em seguida, de volta ao seu provador original.
- Vocês duas estão agindo como crianças! – Censurou as irmãs, dando um último olhar para a morena. – Você deveria se dar ao respeito, Bella! Se nossos pais descobrem o que estava acontecendo aqui, vocês dois estão ferrados.
- Tem muitas coisas que nossos pais não deveriam saber, Andy. – O tom da moça era cortante e ela falava sem titubear. - E ainda mais coisas que não sabem e eu gostaria que continuassem não sabendo.
Labaredas lhe subiram pelos olhos e respirou fundo para não permitir que escapassem. Sentiu seu rosto corar. Bellatrix enfiou o próprio vestido sem dificuldade, fitando-se no espelho enquanto limpava o batom borrado do canto dos lábios.
- É melhor para todos se isso acabar aqui, Bella. Haja como a mulher que finge ser! – Murmurou, saindo do provador com Narcissa em seu encalço.
- Não entendo tão bem de fingir como você, irmãzinha. – Foi a última frase que ouviram, acompanhada da risada aguda que a procedeu, antes de voltarem ao corredor.
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- Aqui, Reg. Usa esse!
Com as mãos cheias de farinha, Andrômeda estendeu o cortador de biscoito na direção do primo. Ao redor da bancada, estavam espalhados dezenas de utensílios para auxiliá-los na tarefa de assar homenzinhos de biscoito de gengibre. Os braços de Sirius estavam enrijecidos pelo esforço de misturar os quilos de massa.
- Eu nunca vou entender por que diabos não fazemos isso com magia! Estariam prontos em cinco minutos e nós poderíamos tomar uma bela dose de licor na beira da lareira, ao invés de passar horas emporcalhados de farinha. – Soprou os cabelos que caiam, sem poder usar as mãos sujas para afastá-los do rosto.
- É uma tradição, bichinho! Para passarmos tempo juntos.
- Poderíamos tomar uma bela dose de licor na beira da lareira JUNTOS!
- Nem tudo é sobre álcool, seu beberrão! – Com a ponta dos dedos, a moça espirrou um punhado de farinha contra o rosto do primo.
Os quatro riram juntos, mesmo que de forma tímida. Enquanto Andy trabalhava com o rolo de macarrão para abrir a massa com a espessura adequada, Narcissa encheu o último saco de confeitar com o glacê tingido de vermelho, colocando-o ao lado do verde e do branco.
- Os biscoitos estão assados, senhorita! – A elfa puxou a bandeja do forno, depositando-a em cima da bancada.
- Ótimo, Lila! Assim que o nosso pequeno e incompetente cortador terminar, já pode colocar a fornada seguinte.
- Ei! Eu sou um excelente cortador, sua desgraçada! – Regulus pisou no pé da prima com pouca força, como uma represália à provocação.
- Ah, sim! Nossos convidados vão adorar comer homenzinhos de gengibre de uma perna só ou sem cabeça! – Andrômeda gargalhou, com uma das sobrancelhas erguidas.
- Acho que está na hora de chamar a Bella. – Interrompeu os dois, depois de tocar a superfície dos biscoitos, sentindo a temperatura. - A primeira fornada já esfriou o suficiente pra ser confeitada.
- Não acho que ela está muito interessada em participar esse ano... – O semblante desapontado de Andrômeda fez seu peito pesar.
- Ela é a melhor com o saco de confeitar. Se um de nós quatro assumir, acabaremos com homenzinhos decepados e sangrentos!
- Detesto dizer isso, mas a Cissy está certa. – Sirius pegou um dos pequenos e tortos biscoitinhos e ergueu contra a luz.
- Você pode subir e falar com ela, Cissy. Não custa tentar.
- Tudo bem... Sempre sobra pra mim! – Arrancou o avental e deu meia volta, em direção a porta. – Se eu não voltar em 10 minutos, podem começar a assar biscoitos pro meu funeral.
A casa estava silenciosa, sob a penumbra do entardecer. Subiu as escadas vagarosamente, sentindo a melancolia do fim de tarde recair sobre ela. Bateu na porta duas vezes, esperando que a voz da irmã a mandasse entrar. Não houve resposta, apenas o silêncio se avolumando contra a pesada madeira. Onde Bellatrix estava metida? Desceu um lance de escada, procurando na biblioteca e na sala de jogos, entretanto, encontrou os lugares igualmente vazios. A mansão era imensa e havia dezenas de cômodos em que a garota poderia estar. Contudo, Narcissa conhecia a irmã. Se não estava em nenhum daqueles lugares, era improvável que estivesse dentro da casa. Em passos lentos, seguiu até sua última suposição.
Bateu na porta, passando para dentro do cômodo assim que a cálida voz a ordenou que entrasse. Em frente a lareira acessa, sua mãe mantinha o olhar concentrado nos pontos do bordado. Se estivessem na Grécia antiga, chamariam aquele cômodo de gineceu. Apesar da distância e do tempo que separavam os dois espaços, tinham funções semelhantes. Ali, em outras décadas, reuniam-se as mulheres, para tratar do privado, que era tudo que lhes pertencia. Por algum motivo, embora nunca lhe tivesse sido imposto, Druella adorava aquele cômodo, onde passava longas tardes, vendo a vida correr sob os pontos e linhas. Se queriam encontrar a mãe, este era o primeiro lugar ao qual recorreriam.
- Mamãe, sabe onde a Bella está?
- Ela teve que sair, meu anjo.
- Assim de repente?
- Você sabe como os amigos da sua irmã são...Impulsivos como ela. Querem tudo pra ontem!
- Ela tinha que confeitar os biscoitos... – Murmurou, chateada.
- Sua irmã está grandinha pra isso, Cissy. Acho que homenzinhos de gengibre não são mais do interesse dela.
- Mas a Andy...
- Andrômeda e Bellatrix são pessoas muitos diferentes, filha. – Interrompeu, antes que a menina pudesse terminar.
- Eu sei, é que... Eu fui pra Hogwarts por alguns meses e parece que tudo mudou!
- As coisas continuam correndo aqui fora enquanto você se aventura dentro daqueles muros, Cissy.
Mirou as chamas crepitando por alguns instantes. Será que de fato conhecia suas irmãs? A revelação de que Bella estava envolvida com o primo a pegou de surpresa, embora agora lhe parecesse que os sinais estiveram sempre claros, por todos os lados. Mas descobrir que Andrômeda sabia de tudo e estava escondendo dela tinha sido como se alguém arrancasse o tapete sob seus pés. Quem eram aquelas estranhas, cheias de segredos próprios? Bellatrix estava à beira de um noivado e nem havia escrito a ela sobre isso! Por que, tão de repente, havia se tornado quase descartável na vida das irmãs? Soltou um suspiro deixando que a frustração se expandisse para fora de seu peito.
- Venha aqui!
Sua mãe soltou o bordado sobre o colo, estendendo o braço na direção da caçula. Caminhou até ela, sentando-se no pequeno espaço vazio que sobrava na poltrona e deixando que a envolvesse em seus braços. O inconfundível perfume de peônias encheu suas narinas, suscitando memórias doces. Druella Black tinha uma presença cheia de frescor. Era delicada, feminina e suave, como flores desabrochando. Mas, assim como a primavera renascia vigorosa sobre o inverno, era dotada de uma ampla força interior. Nenhuma das filhas havia amadurecido em uma personalidade semelhante. Bellatrix era quente, intensa e enérgica como um impetuoso verão. À semelhança do fogo, era incontrolável e imprevisível. A estação seguinte adequava-se perfeitamente ao espírito de Andrômeda: O ameno e gracioso outono. Por trás da timidez e aparente seriedade, existia uma personalidade afável, acolhedora e espirituosa. Para ela, restara o inverno: Calculista e imperturbável. À Narcissa estavam destinados o frio e a indiferença. Sempre havia pertencido àquele lugar. Agora, sentia-se derreter aos poucos, como se as nevascas de seu interior não conseguissem mais sustentar tamanha apatia.
- O que há? – Sua mãe perguntou docemente, beijando-lhe os louros cabelos.
- Não é nada.
- Você já viveu dentro de mim, Narcissa. Não é necessário bancar a frígida comigo.
- Acho que são coisas da minha cabeça, mamãe. Não sei... Parece que não conheço mais a Andy e a Bella.
- Suas irmãs estão se tornando mulheres, meu anjo. É bem provável que nem elas mesmas se conheçam no momento.
- Mas, eu...
- Você ainda é uma menina, Cissy! Pode não parecer agora, mas te garanto que quando olhar pra trás e lembrar desse momento, vai me dar razão. – Ponderou um pouco, antes de continuar. – Suas irmãs estão vivendo muitas mudanças. Uma fase complicada de decidir a vida. Bella logo vai se casar e não deve demorar muito para que Andrômeda faça o mesmo. Acho que elas estão tentando entender a si mesmas antes que tudo vire do avesso.
- Sinto que tudo já virou do avesso, mamãe.
- Dê a elas um tempo! – Beijou-lhe mais uma vez os seus cabelos, antes de sussurrar. - Elas também te amam.
Aconchegou-se contra o corpo magro da mulher, deixando que o silêncio assumisse o protagonismo. Naquele momento, entregou-se a sua fragilidade. Aninhada à mãe, permitiu-se sentir ao redor das barreiras que ela mesma havia construído. Dia após dia, experimentava a solidão de forma mais consciente, flertando com o desprendimento. Todos aqueles com quem tinha dividido sua vida até agora, amigos e família, lhe pareciam cada vez mais apartados dela. No fim de tudo, estava sozinha.
- Mamãe... – Desfez o silêncio, sentindo as palavras pressionarem sua boca para sair. – Como foi quando você se enamorou do papai? Como é... Você sabe... Se apaixonar?
- Por que essa pergunta agora, meu anjo? – Percebeu que sua mãe havia se sobressaltado suavemente. – É por causa do Evan? – Ouviu os lábios dela entreabrirem-se em um sorriso. -Notei que você corou quando ele lhe cumprimentou com um beijo.
- Não, mamãe! Por Merlin! – Franziu o cenho. – Evan é um amigo, só isso.
- Cissy... – Ergueu a sobrancelha, com um sorriso desconfiado no rosto.
- Eu me divirto. – Admitiu, mordendo suavemente a unha do polegar. - Mas não estou apaixonada por ninguém. Só queria saber...como é.
- Eu sempre tive uma ideia muito clara do tipo de homem por quem eu me apaixonaria. – Começou, depois de pigarrear. - Quando sua avó escolheu que eu estudasse na França, como ela, passei anos distante, imaginando cada característica que iria fazer com que eu amasse o meu futuro marido, conjecturando como seriam os rapazes das boas famílias. No momento em que finalmente estive frente a frente com Órion, depois de meses fantasiando com a ideia, enquanto nossos pais arranjavam o noivado, ele era exatamente como eu tinha sonhado! E eu não senti nada... Sabe aquele sorriso galante no rosto do Sirius que parece impossivelmente belo? O Órion a quem fui prometida poderia colocá-lo no bolso. Encontro após encontro, eu rezava para que meu coração disparasse por aquele rapaz cortês, inteligente e cativante. Nunca aconteceu. – Parou por uns instantes, acariciando seu braço. Narcissa deu-se conta de que estava prendendo o ar. – Foi só quando aceitei o convite do primo sisudo do meu noivo para uma valsa que senti minhas entranhas se misturando. Cygnus era fechado e quieto, olhava todo mundo com desconfiança e superioridade. O perfeito desenho de um homem a quem eu desprezaria pela presunção. Mas bastou que enlaçasse minhas cintura para me fazer querer jogar tudo para o alto.
- Você soube na primeira vez em que se aproximou?
- Pode parecer mentira e me fizeram querer acreditar nisso. Porém eu lhe juro, meu anjo! Eu já o tinha visto pelos cantos, mas quando me permiti olhar para ele de verdade, perdi tudo. Porque ele também me viu! Foi a primeira pessoa que me olhou dentro dos olhos. A maioria das pessoas não tem essa coragem. Quando você olha nos olhos de alguém, se permite ser visto. E as pessoas têm medo de mostrar quem são. Mas não o seu pai! Me apaixonei pela altivez daqueles olhos negros. O resto, veio em consequência. Num instante, tudo o que me parecera desprezível se tornou instigante. Eu queria conhecê-lo, saber o que pensava, ouvir o que ele tinha para dizer. A partir daquele dia, me dei conta do quão distantes os outros estavam de mim. Cygnus e eu tínhamos uma conexão. E quando estávamos juntos, não havia mais nada ao nosso redor.
Sentiu seu peito estremecer e o coração comprimir-se. Enquanto as palavras iam sendo postas por sua mãe, era a figura de James Potter que se formava sob as pálpebras de Narcissa. Seus lábios formigavam, rememorando os beijos que haviam trocado. A lembrança lhe queimou o ventre, fazendo com que suas maçãs do rosto se ruborizassem.
- Não se preocupe com isso, meu anjo. Você vai saber quando chegar o seu momento! Não há nenhuma outra sensação que se assemelhe tanto às asas das borboletas batendo em seu estômago. Elas lhe avisarão que aquele é o homem a quem você pertence.
Cerrou os olhos e apertou um pouco mais o corpo contra o da mãe, abrigando-se em seus braços e sentindo o calor adocicado que emanava dela. Houve tempos em que aquele colo era capaz de curar tudo. Desejou que isso ainda pudesse ser real. Todavia, nada que Druella fizesse poderia recompor as filhas. Narcissa não tinha dúvidas de que tudo estava mesmo ao avesso.
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