
Ficha 72
O suor escorria espeço pelas têmporas do homem grandalhão. Ele mantinha a testa franzida, tirando o lenço do bolso constantemente para secar o rosto. A neve da semana anterior havia sumido, mas o frio se sustentava do lado de fora, anunciando o inverno que viria nos próximos dias. Apesar disso, a temperatura era perfeitamente agradável dentro do sala, controlada através de feitiços caloríficos, e Andrômeda mantivera o blazer leve que estava usando. O cliente a quem ela atendia, por outro lado, parecia prestes a derreter.
- Gostaria de um copo de água, Sr. Goyle? – Perguntou educadamente, com um sorriso forçado no rosto.
- Não, querida. O que eu quero é que vocês revisem o meu pedido.
- Eu sinto muito, senhor. O seu pedido já foi revisado pelo gerente. Não há nada que possamos fazer.
- Veja bem, Srta. Black, não é possível que vocês se neguem a me atender. A minha família é uma das mais antigas clientes deste banco!
- Nos sentimentos honrados por isso, Sr. Goyle! Gringotes está sempre buscando recompensar seus clientes fiéis. Entretanto, a sua linha de crédito já foi estendida quatro vezes esse ano. Eu sinto muitíssimo, mas não há, de fato, nada mais que eu possa fazer pelo senhor.
- Estou certo de que uma última extensão não seria um problema para vocês.
- Infelizmente isto não é possível, Sr. Goyle. Fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para ajudá-lo. Como eu lhe expliquei, o senhor precisa quitar as três primeiras parcelas do acordo e só então poderá tentar uma nova extensão.
- E de onde pensa que eu iria arrumar 25000 galeões de uma hora para a outra?
- Realmente não posso ajudá-lo, senhor. Mas quem sabe o setor de penhores? – Sussurrou a última parte, estendendo um pedaço de pergaminho sobre a mesa. De cabeça para baixo e com a mão esquerda, rabiscou o nome “Edwin Godard – Terceiro andar, sala XXI”.
O homem tomou o papel, escondendo-o dentro do bolso do terno com a maior velocidade que conseguiu. Secou o rosto mais uma vez e então levantou-se, arrastando a poltrona com um rangido alto.
- Foi um prazer atendê-lo, Sr. Goyle. Estamos à sua disposição sempre que precisar!
- À minha disposição... Canalhas! Duendes imundos! – Pode ouvi-lo murmurando entre os dentes ao se afastar até a porta.
- O próximo, por favor. Ficha 72! – Arrumou rapidamente os fios de cabelos que haviam afrouxado no coque trançado.
Pela janela, a noite já começava a engolir o sol, tingindo o céu de tons alaranjados. Embora fosse sábado, o banco estava aberto em horário excepcional para suavizar o tumulto que antecedia as festas de fim de ano e permitir que os clientes resolvessem suas pendências antes do feriado. Fitou o quadradinho de pergaminho rabiscado, marcando mais um traço ao lado dos anteriores. Este seria seu 21º atendimento hoje e ela estava exausta. Se fechasse os olhos, poderia dormir por pelo menos três dias.
O inverno costumava fazê-la desacelerar um pouco, mas esse ano estava sendo especialmente penoso. Sentia-se capaz de adormecer de pé, ouvindo as mesmas ladainhas desesperadas dos bruxos que vinham solicitar empréstimos. No início, trabalhar no setor de crédito havia parecido uma ideia interessante. Discreta, refinada e pertencente ao mesmo círculo social dos clientes, Andrômeda Black era a pessoa perfeita para ocupar aquele cargo. Mas agora, um ano e meio depois, estava enjoada de ver os mesmos rostos insistentes. Só havia uma coisa mais rara no setor do que um empréstimo quitado sem renegociação: Um rosto novo.
Enquanto esperava o cliente se aproximar, tirou da gaveta um saquinho de pastilhas de eucalipto e colocou duas na boca, para aplacar o enjoo que toda aquela agitação estava lhe causando. Ergueu os olhos lentamente, acompanhando as roupas simples até alcançar o rosto emoldurado pelos cabelos vermelhos bem cortados. Suavizou o semblante, percebendo que arregalara os olhos diante de um cliente novo.
- ‘Dia! Sou a ficha 72. – O rapaz estendeu-lhe o pequeno pedacinho de pergaminho.
- Sente-se, por favor, Sr. Weasley!
Deixou que um sorriso verdadeiro se desenhasse em seu rosto. Ao menos por alguns minutos, teria um respiro dos maçantes velhos ricos. Sentado desconfortavelmente na cadeira, Weasley segurava firmemente uma pasta de couro gasta contra o peito. A gravata borboleta lhe dava um ar meigo e ele parecia uma criança acuada, com um olhar nervoso. Não o conhecia de perto, mas já o vira algumas vezes, nos poucos anos em que haviam sido contemporâneos em Hogwarts.
Embora nunca tivessem conversado, Andrômeda sabia bem quem ele era. Arthur Weasley era um dedicado funcionário do Ministério da Magia, que havia se formado em Hogwarts e pertencido à Grifinória. Em qualquer lugar era possível identificá-lo devido ao estilo das roupas e a cor vibrante dos cabelos que havia herdado da família Weasley. Mas, a mais importante informação que tinha sobre ele não estava relacionada à sua família paterna. Arthur era filho da número quatro: Cedrella Black, a quarta pessoa a ser queimada da tapeçaria da família. Deserdada e expulsa por casar-se com um traidor do próprio sangue.
Isso ocorrera bem antes de Andrômeda nascer, mas ela memorizara cada um daqueles quatro. Desde criança, a tapeçaria a fascinava. Passava os dedos em todos os nomes, traçando as linhas que ligavam cada um de seus familiares. Até hoje, apenas quatro pessoas haviam sido expulsas da família, por razões variadas. Ela não descansou até que seu avô Pollux lhe contasse o que tinha acontecido com cada uma delas. Apesar do ramo familiar de Cedrella ser bem distante daquele ao qual Andrômeda pertencia, aquele rapaz desprovido de luxos era seu primo de alguma forma.
- Arthur, não é? Meu nome é Andrômeda Black. Em que Gringotes pode ajudá-lo hoje?
- Bom, eu... É. – Ele pigarreou, depois de respirar fundo. – Eu e a Molly, Molly é minha esposa, eu e ela, nós... Estamos esperando um bebê.
- Uau! Meus parabéns, Sr. Weasley!
- Obrigado, obrigado! Não importa que essa seja a terceira vez, é sempre uma emoção!
- Ah! – Andrômeda deu-se conta de que havia erguido as sobrancelhas e forçou-se a sorrir. – Como eu poderia ajudá-lo nesse momento tão significativo?
- Nós moramos em um apartamento. É pequeno, modesto, comportava bem à recém-casados. Mas com três crianças, um quarto só não funciona mais. Precisamos nos mudar antes da chegada do bebê. Entende, senhorita?
- Eu compreendo! Entretanto, creio que o senhor tenha cometido um equívoco de setor. O financiamento fica no quinto andar.
- Não, eu... Minhas economias e as da Molly eram suficientes para comprar a nova casa e já o fizemos. Só que... O Billy... É o nosso menino mais velho. Tem 5 anos. Um garoto espetacular! Muito inteligente, Srta. Black! Muito inteligente!
Nervoso, o homem abriu a pasta e depois de remexer por alguns instantes, sacou de dentro uma pequena foto. O magro garotinho de cabelos alaranjados corria em direção a câmera, carregando um pássaro de dobradura e parando à apenas alguns centímetros do fotógrafo, sorrindo para mostrar o espaço deixado por um dente caído. Por dentro, o coração de Andrômeda parecia ter derretido e ela se sentiu quente e confortável vendo os olhos do rapaz brilharem pela primeira vez naquela conversa. Arthur Weasley era um cara legal! Dava pra ver no rosto dele o quanto amava a mulher e os filhos. Ela não se lembrava de ter visto um sentimento tão genuíno em alguém em toda a sua vida. Sentiu os olhos ficarem marejados por defrontar algo tão puro.
- Ele é lindo, Sr. Weasley! Parabéns!
- Obrigado! Eu... Onde eu estava? Ah, sim! O coitadinho estava com uma alergia terrível. Terrível! O corpinho estava sempre coberto de vermelho. Molly quase enlouqueceu e nada conseguia curá-lo! Tivemos que levá-lo a St. Mungus e você sabe como esses tratamentos custam caro, não é, Srta. Black? Agora, não nos restou nenhum galeão para o berço do novo bebê e as roupinhas. Não guardamos os antigos porquê... Bem, pensávamos que não teríamos outro bebê! Eu... Devo conseguir cobrir nossas reservas com o meu salário em alguns meses. Mas o bebê não pode esperar todos esses meses! E Molly é muito teimosa, Srta. Black! Sequer aceita ouvir a ideia de pedirmos emprestado aos pais dela. Nesse caso, Gringotes é a minha última esperança.
O fulgurante vermelho dos cabelos do homem chegava a impressionar pela vividez e tornava difícil olhar para qualquer outra coisa. Mas, pelo canto do olho, viu o loiro rapaz se aproximando. Parou ao lado de sua baia, enfiando a mão no bolso e a fitando com um semblante sério.
- Me desculpe se estou interrompendo, senhor. Eu poderia falar com você, Srta. Black?
- Só um instante, sim? Eu já saio para atendê-lo. – Indicou o corredor com o olhar e o observou seguir o caminho que ela assinalava. – Me perdoe pela interrupção, Sr. Weasley. Gringotes ficará feliz em ajudá-lo a receber seu filho da melhor forma! Só vou precisar conferir o seu comprovante de renda e analisar o seu histórico de crédito para poder lhe oferecer as melhores opções. Pode, por favor, preencher com seus dados este pergaminho? – Estendeu o formulário e uma pena para o cliente. – Vou deixá-lo à vontade e retorno em um instante.
Ergueu-se da mesa e caminhou até o corredor, onde o rapaz a esperava. Trajava um terno de profundo tom marinho, que acentuava seus olhos azuis, e os cabelos loiros estavam arrumados em um topete com gel. Ele era o perfeito retrato do bancário formal.
- Eu prefiro que você não fale comigo durante o expediente.
- Estou ciente disso. Mas fiquei atolado e não consegui sair na hora do seu intervalo. Será que podemos conversar no fim do turno?
- Está bem! Em 30 minutos na copa. Mas não posso demorar, tenho que buscar minha irmã na estação.
- Prometo que vou ser rápido.
Fitaram-se por alguns instantes e ela se forçou a se desvencilhar daqueles olhos que lhe hipnotizavam. Caminhou de volta para dentro da sala, vendo que ele ainda se demorou alguns instantes no corredor. Abrindo o arquivo atrás de si, buscou por Arthur Weasley e confirmou que era a primeira vez que o jovem tentava obter crédito. Tomou um dos contrato pré formulados e a ordem de pagamento, antes de sentar-se novamente em frente ao rapaz. Passou os olhos detalhadamente pelo pergaminho, lendo cada uma informações que ele havia descrito. Depois, conferiu o comprovante de renda e consultou o caderno de opções de crédito, buscando as que poderiam ser oferecidas a clientes de nível ordinário.
- Estamos contentes em participar de um momento tão importante como esse, Sr. Weasley! A melhor oferta de Gringotes hoje para clientes com o seu perfil é de crédito consignado, com a taxa de juros a 9,5%. Sugiro o valor de 800 galeões a serem pagos em 24 meses. Crê que isso se enquadra nas suas necessidades?
- 800? Talvez seja muito... Eu... Bom, é melhor assim. Isso nos daria uma folga caso algum dos garotos fique doente de novo.
- Ótimo! Em um instante vou preparar o contrato para que o senhor analise.
- Fico muito grato, Srta. Black! Não sabe como está me tirando um peso das costas! – Ele assentiu, satisfeito.
Correu a pena pelo pergaminho de forma ágil, transferindo as informações para os espaços em branco. Na parede, o relógio tiquetaqueava, lembrando a ela que não podia se atrasar para buscar Cissy e seus primos. O caos das festas de fim de ano na família Black estava prestes a começar. Pelo menos, encerraria o dia satisfeita, depois de ajudar a família Weasley com a chegada do novo bebê.
- Me perdoe se a minha pergunta for incômoda. Mas se importaria em me dizer quem era aquele colega que veio falar com a senhorita? O trabalho no ministério me dá a oportunidade de cruzar com muita gente, mas não lembro de tê-lo visto em algum lugar.
- Não é incômodo nenhum. – Ela ergueu os olhos por um instante, analisando a figura curiosa do cliente. Por que diabos estava perguntando aquilo? – Chama-se Edward Tonks. Departamento de câmbio trouxa. Com as olimpíadas chegando, precisávamos de todos os reforços possíveis. O senhor deve imaginar que não é fácil encontrar alguém com conhecimento suficiente para esse tipo de função. – Sorriu de forma educada, fingindo que a pergunta não significava nada para ela.
- Posso imaginar! Ainda somos muito leigos quanto se trata de cultura trouxa. – Fitou a parede atrás dela como se mirasse o horizonte. – Fascinantes, esses trouxas! Tão diferentes de nós e tão iguais ao mesmo tempo. Fascinantes! Não acha, senhorita Black?
- Claro. – Respondeu entre os dentes, sentindo o sorriso derreter em seu rosto.
Voltou a fitar o pergaminho, deixando que sua mente permanecesse focada na tarefa que executava e isso silenciasse todo o resto. Não podia permitir que a curiosidade sobre o assunto que Tonks queria tratar com ela a dominasse. Ia terminar o contrato do senhor Weasley, preencher a ordem de pagamento e calmamente orientá-lo quantos aos detalhes. Só então poderia fechar a mesa de trabalho e seguir para a copa. De nada adiantava o revirar de seu estômago. “Concentre-se no trabalho”, ordenou a si mesma, “No trabalho”.
- Aqui está a ordem de pagamento. Levando aos caixas, no primeiro andar, eles irão lhe fornecer a quantia de prontidão. – Finalizou a explicação do último documento, entregando-o em mãos ao rapaz.
- Muito obrigado, Srta. Black! Não tenho palavras para agradecer a sua ajuda. Molly e eu seremos eternamente gratos por nos salvar!
- Por favor, Sr. Weasley! Não há motivos para agradecer. Gringotes é que agradece ao senhor por confiar em nós para ajudá-lo durante uma fase tão especial. Sempre que precisar, estaremos aqui!
Apertou sua mão e ele se ergueu da cadeira. O semblante assustado havia desaparecido e sido substituído por uma sorriso orgulhoso e descansado. Os olhos estavam calmos e límpidos como piscinas. Poucas vezes Andrômeda tivera a oportunidade de ajudar alguém que realmente precisava dos recursos em última instância. Em todas elas, sentira-se leve e satisfeita. Hoje, seu peito havia se enchido de plenitude. Estava surpresa, diante da prova de como a felicidade podia ser tão simplesmente alcançada por algumas pessoas! Para a família Weasley, a felicidade era dar ao bebê que estavam esperando um bercinho e algumas roupinhas. Estava certa de que jamais esqueceria aquela negociação.
- Um feliz Natal para você e para sua família, Srta. Black! Boas festas!
- Para a sua família também, Sr. Weasley! Saúde e sorte para a chegada do seu bebê!
- Para o seu também! – Ele sorria, acenando. Rapidamente, o sorriso se desfez em uma figura nervosa e arrependida. – Por Merlin! Eu não quis dizer isso, eu... Foi um equívoco. Sinto muito, senhorita! O que eu quis dizer é: Muita saúde para a senhorita!
Deixou que uma risada escapasse de seus lábios, diante da confusão do rapaz. Como era atrapalhado! Vendo que ela não se ofendera, respirou aliviado e retomou seu caminho.
- Obrigada, Sr. Weasley! – Acrescentou no instante em que ele abandonava a sala.
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Empurrou a pesada porta de madeira e o cheiro pungente do café invadiu suas narinas, embrulhando seu estômago. Não havia ninguém. Fitando o relógio, concluiu que ainda tinha tempo. Enquanto esperava que o rapaz aparecesse, tomou uma xícara e encheu até a borda com um límpido e amarelado chá. Levou a louça ao lábios, sorvendo o líquido quente. O aroma suave da flor de laranjeira não foi o suficiente para mascarar o odor excruciante de café que estava entranhado naquela sala. Fechando os olhos, Andrômeda deixou que as lembranças trazidas por aquele cheiro lhe dominassem os sentidos.
Estavam tendo um outono incomumente quente naquele ano. Ainda assim, nunca houve um dia em que Cygnus Black dispensou a xícara de café ao fim da tarde. Ao contrário da maioria dos britânicos, influenciado pelas muitas viagens de negócios ao redor do globo, o homem havia se habituado ao café. Assim, o típico chá da tarde na casa dos Black havia se tornado um coadjuvante diante dos hábitos do senhor. Druella entrou no cômodo trazendo o aparelho de chá com os dois bules. Encheu com delicadeza a xícara do marido com o líquido negro encorpado e pousou o pires a frente dele, na escrivaninha.
O horário antes do jantar era reservado para que as garotas pudessem brincar livres, depois de cumprir todas as atividades e ver a professora Trunchbolt abandonando a mansão pelo longo caminho do jardim. Para Andrômeda, esse era o melhor horário do dia. Estava livre dos bordados, das leituras, das tarefas escolares e de todo o resto. Por duas horas, podia deliciar-se com as mais variadas aventuras que a imaginação pudesse criar. Costumava contar os segundos para ver a gorda mestra dar as costas para elas e rezava para que fosse atropelada por um trasgo e não pudesse voltar no dia seguinte. Mas não precisou fazer essa prece naquele dia.
Assim que acordaram, mamãe havia ido ao quarto, trazendo a novidade: Enquanto elas dormiam, seu priminho tinha nascido! Tomaram café da manhã entre risos e expectativas. Druella arrumou os cabelos das três em cachos com laços de fitas e fez questão que usassem as meias incrustradas de pequenos pompons. Às 10h, estavam prontas para conhecer o novo herdeiro da família.
Bellatrix estava enojada com a visão daquela coisinha vermelha e enrugada sugando o seio de tia Walburga. Narcissa não fazia ideia do que estava acontecendo e chorava copiosamente no colo da mãe. Andrômeda, por sua vez, estava fascinada. O bebê de tia Walburga e tio Órion era um garotinho e havia recebido o nome de Sirius. Apesar de tão pequeno, observava curioso o entorno, com olhos de tom cinza.
- Os olhos da Cissy também eram cinza, mas depois ficaram azuis. – Ela fez questão de acalentar a tia.
Quando Andrômeda tocou a mãozinha dele, o bebê agarrou seu dedo, e ela pensou que aquela era a coisa mais fofa que já havia acontecido em toda a sua vida. Seu primo parecia com um adorável gatinho, um cachorrinho bonitinho ou qualquer tipo de bichinho fofo. Deu uma gargalhada e tocou a bochechinha rosada dele com a outra mão.
- Você e eu vamos ser amiguinhos, bichinho! Pra sempre!
Escondida dentro do armário de casacos, seu coração se aqueceu com a lembrança do cheirinho gostoso que o bebê Sirius tinha. Sentiu vontade de pedir à mamãe para levá-la até a casa de Tia Walburga de novo, mas lembrou-se o que Druella tinha dito quando a avisou que tinham que ir embora: “Sua tia precisa descansar”. Além disso, se saísse do seu esconderijo Bella poderia encontrá-la e ganharia a brincadeira. Pela pequena fresta que mantinha aberta para avistar caso a irmã se aproximasse, enxergava o pai e a mãe dentro do escritório.
- Você não está insinuando que a culpa de ter dado à luz a três garotas é minha, está?
- Eu não insinuo, Druella. – Papai estava sério. O que queria dizer “insinuar”?
- Elas são suas filhas, Cygnus! Saudáveis, perfeitas, do seu sangue. O que mais eu poderia fazer?
- A culpa não é minha! Walburga deu à luz a um garoto.
- Então esse é o problema? – Os dedos de mamãe apertavam furiosamente o bule. – Sua irmã dá à luz a um garoto e de repente as três filhas que eu lhe dei não são mais suficientes?
- De que me servem filhas mulheres? Para que eu invista anos e anos em sua educação e elas gastem tudo que receberam servindo a outra família?
- Meu pai fez isso para que eu servisse a você, Cygnus. E veja só o que estou recebendo em troca! Quem sabe você não casa uma de nossas meninas com o filho deles. Esse tipo de coisa parece bem aceitável para a sua família, não é? Desde que elas sejam incapazes de encontrar um pretendente.
- Cale-se! – Andrômeda se encolheu, ouvindo a voz rascante do pai. – Sua mãe não lhe educou para ficar calada?
- Não quando o canalha do meu marido está certo de que não lhe dei um herdeiro por escolha. O que eu poderia ganhar com isso? O fim da sua familiazinha hipócrita de merda?
Num pulo, o homem estava de pé, espalmando a mão no delicado rosto da esposa. Andrômeda fechou os olhos, assustada e com medo. Aquele monstro de mãos enormes e rosto encolerizado não era seu pai. Estava certa de que tudo não passava de um pesadelo que sumiria quando ela acordasse. Voltou a abri-los ao entreouvir os gritos do homem e o barulho da porcelana se quebrando. Cheia de fúria, Druella havia vertido o conteúdo fervente do bule de café contra o marido, deixando que se espatifasse contra o tapete.
- INFERNO! Mamãe estava certa quando me alertou os problemas de casamento por amor! – Ele praguejava ao vento, enxugando as mãos com o lenço, tomando em seguida a varinha e secando a roupa ensopada.
- O amor não existe, Cygnus. Nunca vou me permitir esquecer isso! – A esguia mulher estava a porta, carregando a bandeja. – Sua mãe estava mesmo certa: Eu deveria ter me casado com o Órion.
Não sabia como ou o porquê, mas aquela cena havia ficado gravada em sua memória. Tinha por volta dos cinco anos e talvez tenha sido o primeiro momento em que percebeu que a vida não era tão bonita como nas histórias que sua mãe contava antes que elas dormissem. Desde então, o cheiro de café forte trazia-lhe aquela lembrança pesada, enchendo seu interior de angústia. Naquele dia, Andrômeda havia aprendido de que não existia amor.
Em Hogwarts, vários garotos haviam tentado aproximar-se dela e, na maior parte das vezes, fizera o que estava a seu alcance para conquistar a amizade deles. Embora tivesse irmãs que adorava, nunca se dera muito bem com outras meninas. Fora nos rapazes que havia encontrado companheirismo, sinceridade e desapego, exatamente como ela preferia. Na adolescência, quando as coisas começaram a se misturar, precisou ser firme para que entendessem que não queria mais do que a amizade deles. Trocara beijos com alguns, é verdade, mas jamais havia se permitido construir qualquer tipo de relacionamento romântico. Não queria que tudo culminasse com uma cena como a que havia observado entre os pais. Se Andrômeda tinha alguma certeza na vida era de que ela jamais seria tola de casar-se por paixão. Havia jurado a si mesma que nunca se permitiria amar a um homem.
A porta se moveu com delicadeza e Edward enfiou o tronco pela fresta, vasculhando o ambiente. Constatando que ela estava ali, entrou, encheu uma xícara de chá e foi até o seu encontro. Sentou-se à sua frente, embora ela preferisse não ter que olhá-lo diretamente nos olhos. Sabia que estavam marejados pela lembrança dos pais.
- Me desculpe te incomodar quando estava com um cliente, eu não podia ir embora sem falar com você. – Ele quebrou o silêncio, bebendo o chá em pequenos goles.
- Eu vou estar aqui na segunda-feira, Ted.
- Eu não. Pedi adiantamento de alguns dias das férias para ficar com a minha família. – Os olhos de Andrômeda se estreitaram, analisando a postura do rapaz. - Não valeria a pena ir até lá só para passar a véspera de Natal.
- Se você aparatasse... – Ela revirou os olhos.
- É longe, não confio tanto assim na minha habilidade de aparatação! Pra esse tipo de viagem, ainda prefiro o bom e velho trem. Serão menos de 8 horas confortavelmente sentado e magicamente estarei bebendo eggnog no sofá dos meus pais.
A garota riu, vendo o quanto ele divertia-se em dizer aquilo. Era óbvio que qualquer bruxo preferiria resolver as coisas de forma mais rápida, aparatando ou com uma chave de portal. Contudo, Edward Tonks não era exatamente um bruxo comum. Nascido em um ramo familiar onde a magia não era rastreável, fora o primeiro a demonstrar habilidades mágicas. Mesmo suas duas irmãs mais velhas eram completamente trouxas. Ele era precisamente o que poderia se chamar de exceção.
- O convite ainda está de pé, Dromêda. Você pode ir comigo se quiser! Tomo o trem e venho te buscar na estação no dia 24, quando você estiver de folga.
- Você sabe perfeitamente que eu não posso. – Cortou o assunto, satisfeita de que aquela fosse a última vez em que teria que negar o convite.
Sustentaram o olhar um no outro por um momento que se prolongou. Ele arrumou a gravata, desconfortável. A insistência naquele convite estava se tornando um cubo de gelo entre os dois. Respirou fundo, sentindo as palavras virem a boca. Precisava terminar com ele. Tinha deixado que as coisas fossem longe demais. Mas aqueles olhos tão cálidos lhe chamavam. Edward tinha um rosto gentil e uma personalidade confortável. No início ela havia se irritado. A quem ele achava que poderia enganar com toda aquela bondade? Era óbvio que ele estava fingindo! Todavia, fora designada a ela a missão de treiná-lo nas tarefas básicas do banco, antes de entregá-lo ao setor de câmbio. Ele seria apenas uma mais uma das pedras no sapato com as quais tinha que lidar no trabalho.
Dia após dia, deu abertura para que ele a conhecesse e entrasse cada vez mais em sua vida. Dizia a si mesma que aquele seria o último, afinal, ele logo iria ser destinado ao setor para o qual originalmente fora contratado. Até que o último dia chegou. Logo veio o dia depois dele e ela sentiu falta daquele sorriso apaziguador. Duas semanas depois, estava bebendo vinho no pequeno apartamento dele. 7 meses haviam se passado e todos os dias ela prometia para si mesma que seria o último. Havia jurado que o dia em que ele a pedira em namoro seria o último. Exatamente como fizera com todo o resto que se seguiu. Aparentemente, ela não era tão boa em cumprir promessas quanto pensava.
Há duas semanas, Ted a havia surpreendido com aquele convite que mascarava a intenção de apresentá-la aos pais. Será que ele estava certo de que tinham mesmo o compromisso que diziam ter? Se só os dois sabiam, que valor isso tinha? Era inimaginável e impossível que Andrômeda Black tivesse um relacionamento com um nascido trouxa. Chegava a ser ridículo! Como ele podia não enxergar nos olhos dela que tudo aquilo não passava de uma ilusão?
O rapaz estendeu a mão sobre a mesa e segurou a dela, acariciando dorso da mão da garota. Por que tinha que ser tão impossivelmente gentil? Andrômeda estava acostumada a ser tratada com ensaiada gentileza. Era assim que moças educadas deveriam se portar. Mas aquilo que Ted exalava era genuíno, quase palpável. A forma suave como a beijava no rosto, o cheiro reconfortante de creme de barbear, os braços acolhedores, tudo era irrealmente carinhoso. Ela não merecia um segundo daquilo.
Era uma mulher forte, dura e rigorosa, embora se escondesse sobre uma suavidade planejada cuidadosamente. Ela e Narcissa haviam sido criadas assim pela mãe, para agradar o futuro marido e encantar os olhos de todos, mas manter o pulso firme com os criados e as crianças. Bellatrix não era exatamente o que se poderia chamar de alguém suave, ainda que tivesse seu jeito emblemático de seduzir a quem quisesse conquistar.
Andy sabia que estava pronta a julgar e condenar o primeiro que fraquejasse na sua frente, embora tivesse um caráter um pouco mais piedoso do que o dos outros Black. Gostava de Sirius e via graça em suas irreverentes tentativas de mostrar que era diferente deles, apesar de em muitos aspectos ser exatamente igual. Ninguém fugia de ser um Black. Um Black é sempre um Black. É algo que mora no sangue, no fundo dos olhos, nos movimentos das mãos e que se entranha na alma.
Exatamente por isso, ainda que Ted ocupasse um grande lugar em sua vida agora, jamais pertenceria ao seu futuro. Deixou que a primeira frase do discurso enchesse sua mente e tomasse sua boca. Quantas vezes ela havia ensaiado aquela fala, tentando torná-la rápida e o mais indolor possível? Queria que a separação fosse doce. Não podia dizer a ele com todas as letras que uma Black jamais se envolveria seriamente com um nascido trouxa. Tudo havia sido divertido e se lembraria com carinho do que tinham vivido, mas ela precisava orgulhar sua família e honrar seus pais. E alguém com sangue tão impuro não cabia nesse espaço. Abriu a boca para que o discurso tomasse forma.
- Eu tenho uma coisa pra você... – Ele murmurou, trazendo-a de volta a realidade.
Sacou do bolso do casaco uma caixinha e colocou sobre a mesa, empurrando na direção dela. O coração de Andrômeda batia violentamente contra o peito. Por um segundo, ela não fora mais rápida. Quanto custaria a ela trazer à tona novamente as palavras cruéis das quais ainda sentia o gosto amargo?
- Abre! Eu não queria deixar o Natal passar em branco. E já que não vamos nos ver até lá...
Ela desfez o laço lentamente, com os dedos firmes, embora se sentisse trêmula. Fingir calma era uma de suas melhores habilidades. Estava fingindo o tempo inteiro ao longo dos seus 20 anos. Rasgou o papel sem muito entusiasmo, fazendo uma bolinha com o que sobrou depois.
- Espero ter acertado. É difícil dar um presente pra alguém que tem tudo o que poderia querer ao alcance das mãos.
- Você não precisava, Ted! Eu não lhe comprei nada... – Abriu o encaixa da caixa de papelão com as unhas compridas. – E eu não tenho tudo o que poderia querer.
- Quase tudo, Drômeda! Mas isso eu sei que você não tem.
Puxou o conteúdo de dentro do caixinha. Parecia uma espécie de açucareiro de porcelana. A delicada peça tinha uma forma redonda, erguida sobre pezinhos cor de ouro, bem desenhados. Era pintada em vermelho e preto, com entalhes dourados de arabescos em toda a volta, o que lhe pareceu um estilo russo. Possuía uma tampa circular, com uma pequena coroa dourada no centro. Passou o dedo pelo nome em alto relevo, na lateral: “O Quebra-nozes”. Levantou a tampa até onde a dobradiça permitiu, deixando-a perpendicular como se fosse um espelho. Dentro da tampa, envolta por uma moldura também dourada, estava pintada uma figura cujo estilo confirmou sua suspeita sobre a origem russa do bibelô. Na figura, em frente a uma árvore de Natal, um homem, um garotinho e uma garota curvavam-se em direção a um pequenino rapaz com trajes de soldado. Encaminhou sua atenção para o corpo da peça. Aberto, exibia ao centro um pequeno pedestal, onde a mesma menina se equilibrava com um dos pés estendidos, abrindo a saia como um leque. A pequena bailarina sustentava entre os braços o soldadinho de cabelos brancos. Ted estendeu a mão na direção da porcelana, tirando-a do transe. Habilmente, ele torceu uma pequena chavinha que se projetava externamente, na parte de trás da peça. Imediatamente, a bonequinha começou a girar no próprio eixo, acompanhando as delicadas notas de uma intrigante e divertida música. Se os flocos de neve dançassem ao seu redor ao cair, teriam certamente aquele som. Ela sorriu, maravilhada com a beleza singela contida naquele pequeno objeto.
- Está enfeitiçada? – Perguntou, curiosa, fitando a bailarina girar e girar.
- Não. Engrenagens, molas e imãs: O suprassumo da magia trouxa! – Brincou, sorrindo. - Chama-se caixinha de música.
- É encantadora, Ted! – Os olhos da moça cintilavam enquanto ela admirava todos os detalhes.
- Imaginei que você iria gostar. “O quebra-nozes” é um dos mais tradicionais contos infantis dos quais lhe falei. Se passa no Natal, então é impossível para os trouxas não lembrar dele nessa época do ano.
- Do que se trata? – Indagou curiosa, enquanto Edward girava a chave mais uma vez, dando vida novamente à bailarina.
- Clara é a nossa doce heroína. Na noite de Natal, recebe de presente do seu padrinho um quebra-nozes de madeira. Porém, o irmão afoito dela acaba quebrando o bonequinho. A garota, preocupada, adormece com o soldadinho nos braços.
Andrômeda deixou que um leve sorriso tomasse seu rosto. Ted havia assumido sua postura de contador de história e ela adorava aquilo. Sem perceber, o rapaz fazia gestos mais caricatos e expressões marcadas para transmitir os sentimentos e emoções necessárias. As linhas ao redor dos olhos e na testa se acentuavam, para convencer o expectador, e a voz dele se derretia calmamente como caramelo escorrendo pelas palavras, que eram cuidadosamente escolhidas para criar a atmosfera perfeita ao redor de quem estivesse ouvindo. Era impossível desviar a atenção!
- No meio da noite, descobre que o boneco tomou vida e precisa da ajuda dela para salvar seu reino, que foi dominado pelo rei-rato e sua corja. A situação não está nada agradável com os ratos no poder. O reino vive sobre as sombras de uma administração cruel e segregada. – Pontuou lentamente, observando os sentimentos que se desenhavam no rosto dela. - Não preciso dizer que a valente Clara enfrenta os ratos que a cercam com toda a sua inteligência, não é?
- E no fim??? – Indagou, mordiscando o canto das unhas, curiosa.
- Você vai ter que esperar...
- Nem sob a maldição Imperius! O que acontece, Ted? – Queria saber o final, é verdade. Mas ver o semblante satisfeito dele era o verdadeiro motivo pela qual ela estava insistindo.
- Te trago uma cópia do livro quando voltar. Eu prometo!
- Como se eu fosse sobreviver com tanta curiosidade até lá... Vamos, diga! Ou eu juro que vou te perseguir até os confins da terra, Edward Tonks! – Imitou uma gargalhada maldosa, que ele acompanhou com sua risadinha tímida.
- Vou te dar a versão resumida, então, pra não estragar tanto a experiência. Juntos, Clara e o Quebra-nozes libertam o reino do domínio nefasto dos camundongos. Ao fim, descobrimos que o subalterno soldadinho é na verdade um cativante príncipe que havia sido enfeitiçado.
Sobre o armário, o relógio bateu, assustando os dois. Merda! Levantou-se de um pulo. Fechou a caixinha de música e colocou de volta no invólucro de papelão, antes de enfiar dentro da bolsa. Tomou o resto do chá de um gole e murmurou um feitiço limpante em direção a xícara, antes de devolvê-la ao armário.
- Tenho que ir! Se não chegarei atrasada pra buscar a Cissy e os garotos! Obrigada pelo presente, Ted. Você é muito gentil!
Caminhava apressada em direção a porta, quando sentiu que a mão dele a puxava pelo braço de forma firme, porém delicada. Fitaram-se uma última vez e foi como se os olhos dos dois discutissem milhares de coisas naqueles poucos segundos. Ted tinha um rosto muito expressivo, embora permanecesse boa parte do tempo em silêncio. Como era possível que falasse tanto sem dizer nada?
- Feliz Natal, Drômeda! Não deixe que os ratos te sufoquem.
Aproximou o rosto do dela com leveza, depositando um amoroso beijo em sua têmpora. Sentiu seu interior fundir-se quase a ponto de escorrer. Em seu peito, o coração palpitava alegre e nervoso, numa mistura inseparável de ternura e angústia. Andrômeda havia prometido jamais amar alguém, mas Edward Tonks era a única exceção.
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O castelo estava agitado, com grupinhos de estudantes caminhando por todos os lados nos últimos esforços para se acomodarem nas carruagens que os levariam até à estação. Narcissa tentava não ser carregada pela multidão, desviando-se e seguindo na direção contrária. Ofegante, chegou à biblioteca em passos apressados. Avistou de longe os cabelos escuros, na mesa de costume.
- Pensei que você tinha congelado na cama! – Brincou, aproximando-se.
- Talvez fosse melhor. – Ele rosnou, chateado. – Me enfiei aqui para não ser atropelado pela horda de mamutes fugindo do abate.
- Se o Natal desaparecer, não vai ser surpresa encontrá-lo destroçado dentro da sua barriga, Severus!
- Eu jamais comeria essa porcaria, você sabe.
O rosto do rapaz estava fechado, cheio de rancor. Ela riu da sisudez do amigo e tirou um pequeno pacote do bolso, escorregando-o pela mesa até a frente do amigo. Snape fitou o embrulho e franziu o cenho.
- Pensei ter lhe dito ano passado que não queria que você me desse presentes...
- E desde quando você é dono do meu nariz? – Ela revirou os olhos. – Abre logo, vai!
- Espero que isso não seja o que parece. – Resmungou, desfazendo a embalagem com os dedos hábeis. – Isso é absolutamente inapropriado, Narcissa!
- Me erra, Severus! Faz anos que eu vejo você perder a noção do tempo olhando isso na Borgin & Burkes.
Segurando entre os dedos, o garoto aproximou o acessório dos olhos. O imponente anel era feito em prata, com cobras ornando as laterais e uma suntuosa pedra ônix arredondada na parte de cima. Feito para passar despercebido aos observadores, um fundo falso escondia-se abaixo da pedra e poderia ser utilizado para guardar pequenas doses de poções ou venenos, conforme o desejo do dono. Ele pousou o anel sobre o embrulho, afastando-o suavemente em direção à amiga.
- Eu não estou interessado em caridade. Principalmente quando custa uma fortuna ao cofre dos seus pais.
- Ah vá se foder, seu carrancudo mal-agradecido! Estava cansada de te ver babando por ele e achei que você merecia um presentinho melhor pelos seus dezesseis anos que logo virão. Este é o último natal e também será o seu último aniversário em que vou estar aqui com você em Hogwarts...
- O Natal nem começou e você já está sentimental como um bezerro apaixonado, Narcissa.
- Feliz natal pra você também, Sev! Espero que esse mal humor tenha retornado ao nível suportável quando eu estiver de volta.
Girando sobre os calcanhares, caminhou na direção da porta, deixando o garoto para trás. Era impossível encontrar alguém mais emburrado com as festas de fim de ano do que Severus Snape e ela estava acostumada com isso. Ao longo dos anos, se convencera que de nada adiantava tentar fazê-lo melhorar o ânimo. O mal humor se curaria sozinho depois que as festas tivessem acabado.
- Cissy! – A voz grave do rapaz atravessou a biblioteca.
Sob o chiado repreensivo de Madame Pince, a moça caminhou de volta até o local em que ele permanecia sentado. O papel do presente que ela havia entregado a ele havia desaparecido e sobre a mesa, estava depositado um austero embrulho de papel pardo.
- Severus! Você sabe que não era necessário!
- O meu aniversário é só em janeiro e você já me deu um presente para comemorá-lo. Que tipo de canalha eu seria se não lembrasse do seu daqui a 10 dias? – Com o olhar, ele acompanhou as reações da menina enquanto abria o presente. Sob o embrulho, escondia-se um pequeno caderno com uma capa de um material que imitava couro, de tom caramelo. Uma fivela dourada em forma de coração o mantinha fechado. – É um diário. Enfeiticei pra que tudo o que você escreva só seja legível para você. Não adianta ninguém tentar. Nenhum dos feitiços ordinários vai conseguir fazer a escrita ser revelada. É impossível de ser lido por qualquer um que não seja Narcissa Black! Tive que roubar alguns dos seus preciosíssimos fios de cabelo pra fazer dar certo. Acho que você anda precisando de algum lugar pra depositar esse tanto de segredos. Esses cachos dourados não estão mais dando conta de esconder tanta coisa...
Os cantos do lábio dela se estenderam em um sorriso torto. A carranca de Snape ocultava uma alma sensível como poucas. Ele havia percebido que a garota estava escondendo algo, mas não fazia o tipo bisbilhoteiro e a deixava livre pra compartilhar o que quisesse. Podiam dizer qualquer coisa dele, mas Severus era a pessoa mais leal que ela conhecia. Fitou o amigo por um instantes, apertando entre os dedos o precioso presente.
- Obrigada, Sev! Vi na lista que o Pettegrew e o Lupin vão ficar no castelo. Tenta não se meter em confusão até eu voltar, tá?
- Eu não me meto em confusão, Cissy.
- ‘Tá? – Ela repetiu, arregalando suavemente os olhos e erguendo as sobrancelhas.
- ‘Tá. Boa viagem!
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Puxou a mochila do compartimento acima da cabeça e jogou nas costas sem se importar. Pela quinta vez, voltava para casa à contragosto, para passar as férias de fim de ano. Dentro da bagagem, trazia apenas a caixa de cigarro e os presentes que havia ganhado dos amigos. Desde o segundo ano haviam estabelecido que, a cada Natal, todos dariam exatamente os mesmos presentes aos três amigos. Sirius estava satisfeito com isso, era bem mais fácil não ter que pensar em três presentes diferentes. Nesse ano, Pontas havia escolhido presenteá-los com uma caixa de bombons explosivos, Aluado com uma cópia do livro “A magia defensiva na prática e seu uso contra as artes das trevas” e Rabicho elegera um pacotinho de Pó de Arroto. Os três haviam recebido dele o mesmo modelo de tinteiro, cheios de uma tinta especial para pergaminho, que brilhava no escuro.
Como Remus e Peter iam ficar em Hogwarts este ano, fizeram a troca de presentes logo depois do café da manhã, dentro do quarto, ao invés de fazê-la dentro na cabine do expresso, como costumavam. Enquanto tomavam a carruagem para ir à estação, Sirius deu um último olhar de inveja em direção aos amigos, desejando ardentemente permanecer com eles no castelo. De última hora, os pais de Rabicho haviam decidido voltar a cidadezinha onde havia passado a lua de mel, para comemorar os 17 anos de casamento. Desesperado com a ideia de perder as férias inteiras na companhia de sua avó e da tia solteirona, o garoto implorou para que um dos amigos ficasse com ele em Hogwarts. Aluado não precisou de muita insistência, satisfeito em não incomodar os pais durante a lua cheia que se estenderia até próximo do Natal.
Um pouco à frente, Pontas conversava animadamente com Emeline Vance, uma quintanista da Lufa-lufa. Como as famílias eram vizinhas, ele costumava pegar carona para casa com os pais da garota. Sirius apertou o passo, avançando o quanto pode pelo abarrotado corredor.
- Com a sua licença, filhotes de lesma! – Exclamou com uma voz forçadamente carinhosa, quase atropelando um grupo de primeiranistas da Lufa-Lufa. – Pontas! – Chamou, vendo o amigo desembarcar e perder-se no tumulto da plataforma. – PONTAS!
Vance acenava de forma acalorada para os pais que aguardavam no meio da multidão, esperando ao lado dos Diggory. James virou pra trás, procurando quem o chamava e parou assim que enxergou o amigo, aguardando que se aproximasse. Sirius correu os últimos metros entre eles, balançando a cabeça para afastar os cabelos que lhe caiam pelo rosto.
- Já encontro vocês, Emeline! – Avisou, com uma voz cordial.
- Ia embora sem nem se despedir, seu escroto?
- Você estava bem ocupado no expresso... – James ergueu a sobrancelha, indicando com a olhar a direção de Marlene, que se despedia de Lily Evans na saída do trem.
- A gente precisava fazer alguma coisa pra matar o tempo. Estou ficando velho demais pra achar essa viagem empolgante! Parece que a cada vez eles esticam ainda mais o caminho. – Enfiou um cigarro na boca, acendendo em seguida.
- Acho que você só não quer voltar pra casa, Almofadinhas! Não sei por que não inventa uma desculpa pra ficar.
- Muito engraçado, Pontas! Agora pode contar a próxima piada. – Acrescentou depois de dar uma risada forçada.
- O que eles poderiam fazer? Mandar um elfo te arrancar de dentro do castelo?
- Eu não duvido nem um pouco que o Monstro faria isso. “Tudo aquilo que a minha senhora pedir! Monstro deve honrar e obedecer a casa dos Black!” – Imitou a voz grotesca e anasalada do elfo doméstico.
Percebeu que os olhos de James se perdiam em algo às suas costas e virou a cabeça para olhar. Na extremidade da plataforma, longe de toda a multidão, sua prima Andrômeda estava parada, vestindo um blazer por cima do vestido formal. Qualquer coisa negativa poderia ser dita sobre a sua família e ele teria que concordar, mas ninguém jamais seria capaz de negar a elegância que emanava dos Black. Imóvel, Andrômeda irradiava uma aura sublime de encanto. Narcissa foi até a irmã e envolveu com os braços o pescoço dela, com os cabelos farfalhando ao vento e um sorriso satisfeito pintado no rosto. Algumas dúzias de olhos estavam pregados nas duas, admirando a impecável beleza, inclusive os olhos de seu amigo. De fato, algo de magnético acontecia quando os membros da sua família estavam juntos. Era quase como olhar um encontro de estrelas. As celestes, ou mesmo as do Rock. A aproximação de Regulus apenas confirmou isso, trazendo uma nova dimensão à figura, com os tradicionais cabelos negros dos Black. Seu irmão tinha um semblante alegre, tagarelando qualquer coisa que a prima parecia interessada em ouvir.
- Começou o show de falsidades da perfeita família feliz. – Tragou, procurando no fundo da mochila o embrulho. – Enfim, eu só queria te dar isso.
- Almofadinhas! A gente prometeu que seria o mesmo presente para os três!
- Ah, foda-se, Pontas! Eu não ligo pras regras.
O garoto abriu o pacote, enfiando a embalagem dentro do bolso e observando atento ao pedaço de espelho que cintilava sob as luzes da plataforma. Era como um fragmento, quebrado, e James fitou seu próprio rosto refletido por alguns instantes, sem entender.
- Que merda é essa?
- Merda é essa sua cabeça chifruda! Eu perdi uns 12 anos de vida enfeitiçando isso! Se não deu pra sacar, é um espelho de dois sentidos. – Revirou os olhos, puxando do próprio bolso outro fragmento parecido. Quebrados não chamariam a atenção de um eventual bisbilhoteiro. - O meu e o seu se comunicam. Basta chamar meu nome quando quiser falar comigo. Assim a gente vai estar sempre junto, independente das circunstâncias!
- Você ainda vai ganhar o mundo, Sirius Black! Seu desgraçado inteligente do caralho! - James esticou os braços e o envolveu num abraço apertado.
- Eu me esforço quando quero. – Deu de ombros, levando o cigarro aos lábios mais uma vez.
- Vê se emprega esse esforço pra ficar calmo, não destruir nada e não matar ninguém!
- Não posso prometer.
- Potter? – O homem calvo e gorducho se aproximou, tocando o ombro de James. – Você vem conosco?
- Sim, Sr. Vance! – Colocou o espelho no bolso, sem deixar de sorrir. – Valeu, Almofadinhas! Você é um melhor amigo que eu acho que nem mereço ter. Feliz Natal, cara!
- Feliz Natal, Pontas! Aproveita pra ficar no colo da mamãe.
Amassou as pontas do cabelo, penteando-os distraidamente, enquanto via James se afastar. O garoto virou o rosto uma última vez, usando o dedo do meio para fingir arrumar o óculos. Sirius riu, abastecendo-se daquele último afeto para enfrentar o que viria a seguir. Jogou o cigarro no chão e pisou precisamente sobre ele até apagá-lo. Em passos largos e murmurando uma prece, caminhou na direção da família.
- Há espaço na festinha de vocês para a ovelha negra? – Importunou, aproximando-se de onde estavam.
- Sirius! Você está crescendo por metro quadrado! – Andrômeda abriu um sorriso enorme e o aconchegou contra seu corpo. - Creio que até o verão terei perdido o posto de mais alta da família!
- Parece que enfim me tornei um homem, afinal. – Ele também sorriu, aspirando profundamente o cheiro doce que vinha dos cabelos da prima.
- Um homem não se mede pelo seu tamanho, bichinho. Mas pelo caráter dos seus atos! – Tocou a ponta do nariz dele com o indicador, empurrando suavemente.
- Nesse caso acho que ele ainda deveria estar usando fraldas. – Narcissa murmurou, rabugenta.
- Vamos precisar conviver as férias inteiras, Cissy. Eu adoraria que o seu coração podre de rancor pudesse me perdoar por ignorar a minha respeitável mamãe! – Disse as últimas palavras aos bocados, provocando.
- Não vamos começar já aqui, não é? O Natal está chegando!! Tenho certeza de que serão ótimos momentos em família!
- Se a metade do mundo tivesse a sua visão impossivelmente positiva, Andy, eu não sei se estaríamos melhor ou completamente ferrados. – Regulus ajustou o cachecol no pescoço.
- Obrigada pela força, Reg! – Ela arrumou as luvas, embora estivessem perfeitamente no lugar. – Bem, estamos todos prontos? Papai, mamãe e Bella tinham compromissos esta noite. Mas estou certa de que Lila nos preparou um jantar adorável!
- Aquela elfa caduca ainda cozinha para vocês? – Sirius indagou, incrédulo.
- Não fale assim dela! Lila faz o melhor Beef Wellington do mundo, que sei que é o seu favorito. E eu posso ter casualmente mencionado que seria um excelente prato para o jantar de hoje...
- Você é praticamente perfeita em todos os sentidos, Andrômeda Black! – Depositou um beijo estalado na bochecha da prima e ela corou suavemente.
- Vamos, então? Eu estou morrendo de fome e não vejo agora de nos aconchegarmos em frente a lareira para ouvir todas as novidades sobre Hogwarts!
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