Tarde demais pra voltar a dormir

Harry Potter - J. K. Rowling
F/F
F/M
M/M
Multi
G
Tarde demais pra voltar a dormir
Summary
Uma gota caindo na água reverbera no lago inteiro. Uma troca de olhares que se estende pode mover todas as peças ao redor. James Potter e os problemas são velhos amigos, prestes a se conhecer muito melhor. O que há por trás dos encantadores olhos que parecem persegui-lo por todos os lados?Para Narcissa Black, tudo é heterogêneo. Em que ponto do infinito tudo se mistura? Se você procura uma história de drama, amores e nós do destino se entrelaçando, é tarde demais pra voltar a dormir!Essa é uma história sobre o que poderia ter acontecido enquanto os marotos estavam em Hogwarts, sob a sombra da Primeira Guerra Bruxa. A maior parte dos personagens e cenários descritos pertencem a J. K. Rowling e são utilizados nessa fanfiction sem nenhum tipo de intenção comercial. Algumas datas e ordens de acontecimentos foram alteradas para que a história pudesse fazer sentido.
Note
Olá, pessoal!Gostaria de lembrá-los que essa história se passa nos anos 1970, então algumas atitudes, falas e pensamentos dos personagens podem parecer ultrapassados e inaceitáveis para os dias de hoje. Lembrem que tudo está inserido em um contexto! Fumar em qualquer lugar era um hábito da época, por exemplo.Aproveito pra lembrá-los de ter moderação com o consumo de álcool e cigarros, que é bastante frequente nessa história.Por fim, alerto que a história é ampla e vai comportar um monte de possibilidades, se você não se sente confortável com linguagem chula, violência, homossexualidade/bissexualidade, bullying, cenas de sexo e outros tópicos delicados, eu tomaria cuidado!ATENÇÃO!!Este capítulo contém cenas de bullying.
All Chapters Forward

Ógworts

Já era tarde quando retornaram ao salão principal para o almoço. Madame Renouard havia se encantado com a produtividade e variedade das estufas de Hogwarts, engatando uma longa conversa com a professora Sprout, que durou muito além do horário programado. Narcissa estava exausta. Como traduzir de forma fidedigna tantos pormenores? Ela não era uma especialista em herbologia afinal, embora estivesse no curso avançado. Havia prosseguido na disciplina impulsionada muito mais pelo entusiasmo de Effie em continuarem estudando juntas do que pelo próprio interesse. Agora, sentia-se perfeitamente capaz de superar nos NIEMs o “Excede Expectativas” que havia alcançado nos NOMs. Massageou discretamente as têmporas com os indicadores, sentindo os nervos latejarem.

Colocou algumas batatas no prato, olhando de soslaio a mesa dos professores, para averiguar se a hóspede parecia satisfeita. Sorriu, verificando que trocava poucas palavras com o professor Flitwick, no que Narcissa já conseguia identificar como a confusa mistura entrecortada de francês e inglês que a mulher era capaz de expressar. Girou repentinamente a cabeça, sentindo que alguém se aproximava pelas suas costas.

- Seria um incômodo ou demasiadamente inoportuno se eu infligisse a minha companhia à senhorita? – Potter indagou, improvisando uma discreta mesura com a cabeça e exagerando propositalmente na formalidade para provocá-la. – Detesto comer sozinho.

A garota franziu o cenho, esquadrinhando o ambiente ao redor. Em hora tão avançada, menos de duas dúzias de alunos ainda estavam dispersos pelas mesas, fazendo a refeição. As risadas que ecoavam pelo salão vinham todas da mesa da Lufa-Lufa, onde um grupo de quartanistas estava reunido. Na mesa da Corvinal, assim como na da Sonserina, apenas três ou quatro alunos estavam espalhados, todos concentrados em livros ou pergaminhos.  A mesa da Grifinória estava vazia.

- À vontade, se tiver coragem. – Seu sorriso era de deboche.

- Se essa não fosse minha principal aptidão, eu estaria sentado com eles. – Maneou a cabeça em direção ao grupo de lufanos.

- Pois bem, Sr. Destemido. Sente-se! – Indicou com um floreio do braço o lugar vazio ao seu lado.

Ele pousou o prato e a taça sobre a mesa e sentou-se, para só em seguida afrouxar os talheres que trazia presos firmemente entre os polegares e a louça. Sentado, era um pouco mais alto que ela, embora as longas pernas da garota garantissem que se olhassem do mesmo patamar quando estavam de pé. James a observava em completo silêncio, o que a incomodou.

  - Sirva-se, Potter! A comida é feita pelos mesmos elfos para todos nós, não está envenenada.

Os braços dele moveram-se rapidamente, enchendo o prato o quanto possível, exatamente como Regulus e Sirius. Céus! Como comem esses garotos em crescimento! A moça mordiscou de forma desinteressada um pedaço de rabanete, sentindo o silêncio instalar-se entre eles da mesma forma que um pesado erumpente faria. A falta de familiaridade era sempre implacável. Mas ele estava decidido a mudar a situação.

- Parece que conseguimos agradá-la. – James comentou, antes de beber um pouco do suco de maçã. – O que achou dela?

- É bem mais comunicativa do que eu esperava, o que vai nos ajudar bastante.

- Comunicativa é o eufemismo para tagarela? Não entendi metade do que vocês falaram nas estufas!

- Seu repentino interesse pelas folhas das Alagasianas denunciou isso.

- Merda! – Murmurou, sentindo-se culpado.

- Não se preocupe! Elas não perceberam. Não estavam com os olhos em você.

James deixou que um semblante satisfeito tomasse conta de seu rosto. As maçãs do rosto dela tornaram-se rubras, dando-se conta de que havia denunciado a si mesma.

- Pode olhar sempre que quiser, Black. Adoro ter uma bela loira de olhos em mim! – Deu um sorriso torto, com um ar divertido nos olhos.

- Nesse caso, vou fazer o possível para deixar você e Madame Renouard a sós. – Foi a vez de ela sorrir, aproveitando-se do traço em comum com a francesa.

James encrespou o rosto, transformando a expressão charmosa em uma fisionomia claramente enojada pela ideia.

- Não sabia que você fazia tão mal julgamento do meu gosto, Black!

- Conhecendo o caráter de meu primo e a sua proximidade com ele, Potter, é difícil não julgar. – Ela sorriu e James fez o mesmo.

Tudo era um jogo. Brincadeiras escondidas atrás de frases sérias e verdades mascaradas como gracejos. Cada sentença era pronunciada com milhares de intenções, mas cercada de dúvidas. Ambos não sabiam exatamente onde estavam pisando, então o faziam cautelosamente, avançando sempre que a fala anterior parecia bem recebida, como em um campo minado. Tal como visgo do diabo, perceberiam tarde demais que estavam completamente enredados.

- Qual o roteiro da tarde? – O garoto quebrou o silêncio pela segunda vez.

- Aritmância. E depois finalizaremos o primeiro dia com Adivinhação. – Limpou discretamente os lábios com o guardanapo.

- Esplêndido! Não sei é do seu conhecimento, Srta. Black, mas meu talento não se estende apenas ao quadribol. Sou também um prodígio em Adivinhação! – Sussurrou as últimas palavras floreando a voz, para dar a elas um tom mais místico.

- É mesmo, Sr. Potter? Nesse caso, pode prever algo para mim? – Ela arqueou a sobrancelha, prendendo a vontade de rir.

James respirou fundo, mantendo um semblante concentrado, sem tirar os olhos do rosto dela. Subitamente, tomou em suas mãos a taça vazia que ela havia utilizado. Manipulou o objeto, desenhando círculos no ar. Afastou-o e aproximou-o sucessivamente da face, mudando com frequência as expressões, ora para parecer entusiasmado, ora para parecer preocupado. Narcissa tentava manter a compostura, mas algumas risadas escapavam-lhe pelos lábios, observando a cara do rapaz assumir as mais variadas expressões para enriquecer sua pantomima. Tirou os óculos do rosto e trouxe a taça até junto do nariz.

- Não pode ser... – Murmurou, fingindo pensar em voz alta.

- O que? Diga-me, Sr. Potter! – Forçou uma voz mais aguda e aflitiva.

- Não. É melhor que não saiba. – Soltou a taça contra o tampo de madeira, colocando os óculos de volta.

- Oh, por favor! – Tomou-lhe as mãos, colocando a taça de volta entre elas.

- Se assim me pede, senhorita, não posso me negar a atendê-la.

- O que vê, Sr. Potter? O que há no meu futuro?

- Vejo... Há algo escuro em seu futuro, senhorita. Sim, agora posso ver melhor.

- Oh, não! O que é? – Pôs a mão sobre a boca, fingindo espanto.

- Eu vejo... – Fez uma pausa para ampliar a dramaticidade. – Os escuros e rebeldes cabelos de um belo rapaz, por quem está interessada.

Enfim o riso desprendeu-se completamente dos lábios dela, soando de forma harmônica e James logo a seguiu. A intensidade das risadas crescia a cada vez que trocavam olhares, como se subitamente a piada tivesse se tornado mais engraçada. As gargalhadas brotavam no ventre e, como bolhas, subiam sem controle à superfície, abandonando os lábios. O momento se alongou e já não sabiam exatamente o que era tão divertido. Mas, ainda que tentassem retomar a sobriedade, os curtos instantes de silêncio logo eram interrompidos pelas gargalhadas, que voltavam a escapar quando se fitavam. James sentiu que o ar lhe faltava, os músculos do abdômen doloridos pelo repetido esforço.

- Patético, Potter! – Narcissa conseguiu dizer, prendendo o riso e sentindo os olhos ficarem cheios de lágrimas.

- Contava com essa habilidade para tirar um “ótimo” no NOMs. Não mereço?

- O avaliador será gentil se lhe conceder um “deplorável”.

- E você, senhorita? Que nota julga que eu deveria receber?

- “Trasgo”! – Riram novamente, ainda envolvidos pelo clima da brincadeira. - Mas eu nunca imaginei que seria diferente.

- Ao menos não frustrei as suas expectativas... – Deu de ombros, com um sorriso charmoso no rosto.

Miraram-se por alguns instantes, respirando fundo para retomar o fôlego. Ele empurrou o prato para o centro da mesa, flexionando em seguida um dos braços para desarrumar os cabelos. A lembrança de que deveriam estar à disposição de Madame Renouard voltou à Narcissa como um flash de luz e ela levantou-se, virando-se na direção da mesa dos professores. Por sorte, a convidada ainda ouvia as respostas do professor de feitiços de forma interessada. James ergueu-se também, ajudando a loira a recolher as louças que haviam usado.

- Não pensei que me divertiria tanto fazendo uma refeição à mesa de uma casa tão enfadonha! – Comentou para aporrinhá-la, enquanto encaminhavam-se à frente do salão.

- Cuidado para não se acostumar, Potter. Pode acabar querendo ficar...

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

 

- Bonsoir, monsieur! Je m'appelle Sirius. Comment vous appelez-vous? – O rapaz soltou, no exato momento em que James sentou-se ao seu lado na mesa.

- Palhaço! – Xingou, empurrando o amigo pelo ombro.

- Ravis de vous connaitre, monsieur Palhaço! – O outro estendeu a mão, numa tentativa de que James a apertasse.

- Vai pro inferno, mon cher! – Segurou a mão de Almofadinhas, depositando nela um beijo.

Do outro lado da mesa, Peter e Remus não conseguiram segurar o riso diante da cena. Em todo o salão, as conversas fervilhavam, com os estudantes partilhando entre si as novidades que o dia trouxera. Na mesa da Grifinória, não era diferente e os três rapazes estavam ansiosos para serem atualizados pelo companheiro.

- Pensamos que você só ia aparecer para dormir. – Lupin comentou, antes de encher a boca com uma colherada de sopa.

- Graças a Merlin, as atividades se encerram com o horário do jantar. Eu estava com saudades de uma boa refeição ao lado dos meus amados amigos! E ao seu lado também, Almofadinhas. – Acrescentou, brincando.

- Deve ter sido ruim almoçar sozinho. – Exclamou Peter, mastigando um pedaço de peru.

- É... – James murmurou, deixando a voz morrer enquanto a mente se enchia com a imagens da última refeição.

- Você não ia nos contar? – Sirius inqueriu, soando insatisfeito.

- Eu contei, Almofadinhas. Na aula de Poções, lembra? – Indagou, desatento, levando o olhar à mesa da Sonserina, procurando pelos louros cabelos.

- Acho que você esqueceu de mencionar, meu caro Pontas, que não seria só apresentado como aluno modelo, mas que iria passar dias se exibindo como troféu ao lado da minha prima.

- Não achei que seria importante. Madame Renouard não fala inglês, Dumbledore precisava de alguém que pudesse ser intérprete e a misteriosa família Black atacou novamente, com suas habilidades secretas. – Finalmente pôs os olhos sobre ela, sentada quase na ponta da mesa.

Narcissa estava concentrada, ouvindo os detalhes da história que a ruiva descrevia, representando teatralmente os interlocutores. Embora seus pés latejassem dentro dos sapatos de salto, estava satisfeita. O dia não havia sido exatamente divertido, mas pelo menos transcorrera sem incidentes e quando se despediram de Madame Renouard, devolvendo-a a companhia de Dumbledore, a vice-diretora parecia bem afeiçoada à presença deles.

- Não dá pra acreditar que ele disse isso! – Gwen tinha um semblante horrorizado, apesar de envolto pelo riso.

- Mas juro que sim! Leona estava lá e não me deixa mentir! Você acha que eu deveria tê-lo estuporado, Narcissa? – Indagou Yvonne, interrompendo a narrativa.

- Yve, eu...

A resposta ficou no ar, esquecida pela chegada tardia de Effie. Algumas garotas buscavam destacar-se pela graça, outras pelo excepcional desempenho no quadribol. Euphemia Rowle fazia parte das que se empenhavam para que seus méritos acadêmicos a precedessem. De fato, era dotada de uma inteligência privilegiada, mas também se dedicava de forma incansável aos estudos. Dentre as garotas do sétimo ano da Sonserina, era a única que continuava matriculada em praticamente todas as aulas, consumindo consideravelmente seu tempo. O último horário era dedicado a classe de Estudos Antigos, o que fazia com que chegasse para o jantar sempre por último às terças feiras, embora detestasse se atrasar para as refeições. Hoje, parecia agitada, quase correndo os últimos passos para alcançar a mesa da Sonserina.

- Como foi? – Perguntou imediatamente, antes mesmo de sentar-se.

- Bem. – A loira respondeu.

- Bem? Só bem?

- É. Ela fala pelos cotovelos e se eu tiver que pronunciar mais uma palavra em francês é provável que meu cérebro vire um monte de minhocas.

- E o Potter?

- O que tem ele?

- Como foi? – Repetiu, com mais ênfase.

- Bem.

- Bem????

- É. Fez o que deveria, não fez o que não deveria.

- Merda! Eu estava contando as horas para ouvir você falar que ele tinha ferrado tudo! – Soltou o corpo contra o banco, frustrada, sentando-se finalmente.

- Não fique tão decepcionada, Effie! Sei que era um dos seus maiores sonhos, mas ainda temos dois dias para ver ele causando um vexame internacional e engolindo aquele ego inflado. – Greengrass comentou de forma irônica, acariciando o ombro da amiga.

- Obrigada, Leona! O seu apoio significa tudo para mim. – Balançou a cabeça, fingindo-se consolada.

- Você não pode esperar para ouvir o que a Yve estava contando sobre o Wilkes! – Gwen interveio, animada.

A retomada ao início da história, que Narcissa já tinha ouvido, permitiu que ela divagasse sem sentir-se culpada. Não que ela estivesse desinteressada na narrativa da colega, mas observar a forma exagerada como Yve representava as situações lhe causava certa aversão. A garota fazia questão de contar-lhes tudo da forma mais conveniente, para parecer importante e glamurosa, numa tentativa de demonstrar-se igual às companheiras de quarto.

Para alguém sem sobrenome, era difícil ser forçada a conviver com herdeiras de famílias com tanto prestígio. Sete anos haviam se passado desde que a garota galesa fora selecionada para a Sonserina e percebera, já no primeiro dia no dormitório, que todas as companheiras se conheciam. O tempo só havia acentuado as diferenças entre suas origens e as expectativas de vida futura que teriam. Enquanto algumas moças dariam tudo para não precisarem se submeter às pesadas regras impostas pela honra que deviam ao nome de suas famílias e ao seu sangue, Yvonne desejava profundamente fazer parte de tudo aquilo, como as outras quatro faziam.

Não duvidava que ela fosse conseguir! Uma boa sonserina faria tudo que estivesse ao seu alcance, e um pouco mais, para galgar a colocação social da qual se considerava merecedora. E o chapéu seletor não havia se enganado: Yvonne era ambiciosa, determinada e muito astuta, embora escondesse tudo sob uma figura divertida e autêntica. Fatidicamente, seus esforços iriam lhe garantir um bom casamento com um jovem de puro sangue de uma das famílias menores. Às vezes, Narcissa sentia-se pesarosa, pensando na liberdade que a garota estava escolhendo jogar para o alto. Ela não fazia ideia de onde estava se metendo.

Pertencer a alta sociedade bruxa era, de certa forma, estar habituada a constantemente performar um papel num complexo jogo em que as peças eram movimentadas pela honra, poder e dinheiro. Seus interesses, sonhos e desejos nunca eram inteiramente seus. Pelo contrário, lhe eram incutidos desde a mais tenra infância. Todos que pertenciam àquela casta, mesmo os mais contraditórios, como sua irmã Bellatrix, eram moldados pela tradição em sua forma de agir e pensar, em suas escolhas, seus destinos.

No início da adolescência, ela tinha sonhado em não pertencer àquela realidade, nem que fosse por um só dia. Em acordar e tomar o rumo que quisesse. Em sair pelas ruas e agir sem planejar cada pequena ação, cada palavra, cada pessoa com quem se relacionaria. Mas a maturidade a fizera entender que ela era uma Black. E ter a honra de carregar o sobrenome de uma das mais tradicionais famílias bruxas era uma responsabilidade da qual ela jamais poderia se desfazer. Mesmo quando se casasse e passasse a fazer parte de outra daquelas famílias, o peso de ser uma Black permaneceria sempre sobre ela.

Pertencer ao suprassumo social tinha seu preço. Havia códigos sobre como se vestir, como se portar, como agir, como pensar. E Narcissa não podia negar que parte daquilo a preenchia e a fazia sentir segura. Ela era uma boneca de porcelana: Perfeita em sua aparência, irretocável em suas decisões, de personalidade agradável e reputação sem máculas. Tinha um futuro brilhante pela frente e sentia-se pronta para vivê-lo. Mas tornar-se uma mulher estava sendo dolorido para ela. Crescer fizera com que se desse conta de que ser um bibelô significava estar presa em uma casa de bonecas, sendo manejada e obedecendo às vontades daqueles a quem sua vida pertencia.

À tarde, dividindo a mesa com James Potter, ela tinha se sentido livre pela primeira vez. Naquele mesmo salão, sem ter os olhos da patrulha social pousados sobre ela, havia se permitido fazer o que tivera vontade: Falar o que lhe viesse à mente, sem se preocupar com a repercussão que suas palavras teriam para a sua família e como seriam interpretadas. E sorrir. Deixar que o rapaz a envolvesse em sua brincadeira boba, ignorando a falta de propósito, vivendo aquele momento apenas pela plenitude de estar ali.

Agora, sentia um peso diferente em seu estômago. Ela havia provado o doce gosto da espontaneidade! Por apenas um momento, se autorizara a viver o que era consentido a Potter todos os dias de sua vida. E havia gostado mais do que deveria... Para ele, o almoço certamente não passara de um momento engraçado do seu dia. Para ela, transformara-se em garras lhe arranhando o ventre. Os desejos adormecidos e escondidos no seu âmago pulsavam, pedindo para sair.

Arriscou-se a encarar a mesa da Grifinória, checando que ele também a procurava. Numa atitude atrevida, aproveitando-se da distração das companheiras, tomou sua taça e depois de esboçar no ar um círculo com ela como ele fizera mais cedo, ergueu-a sutilmente, em um brinde silencioso. James sorriu, formando as linhas ao redor dos olhos que complementavam o sorriso de ar genuíno que lhe era tão próprio e ergueu igualmente a sua taça. Beberam em seguida, sem tirar os olhos um do outro, confraternizando intimamente, no meio do salão repleto de estudantes que nem desconfiavam do pacto que acabara de ser selado.

-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

O vento assobiava, vagando pelo espaço praticamente vazio. Ainda que o horário não estivesse tão avançado, a noite já havia caído sobre o castelo. Como de costume, fazia frio na torre de astronomia e um arrepio percorreu o corpo de James. Decidiu abandonar a sacada, retornando para o ambiente aquecido do observatório. Antes disso, deu uma última olhada em direção à convidada. A professora Sinistra conhecia um pouco do francês e decidira apresentar ela mesma a estrutura das aulas à madame Renouard. As duas mulheres pareciam estar entendendo-se bem sem a interferência deles... Ausentar-se por alguns instantes não ia ser um problema.

Caminhou em passos lentos, observando cada artefato contido na sala. Sem o burburinho dos alunos, a torre figurava ainda mais melancólica. A pouca luz do ambiente era refletida pelos objetos metálicos, que brilhavam sob o luar. O silêncio era amplo, perturbado apenas pela distante conversa das professoras. Ergueu o rosto na direção da abertura no teto e contemplou o céu, admirando o infinito acima de sua cabeça. Não havia nada que o atraísse mais do que a ideia de estar envolto por aquela vastidão, perdido no imensurável.

O quadribol viera para ele como a forma mais óbvia de justificar o tempo gasto naquele espaço. Não podia negar que a expectativa correndo pelas veias, a euforia das vitórias e as ovações da torcida haviam tomado aos poucos um lugar de grande importância. Todavia, nada seria capaz de preenchê-lo mais do que o simples prazer de rasgar os céus. Nenhuma circunstância poderia modificar a plenitude que o vento lambendo sua pele lhe trazia.

Em seus devaneios, sempre havia imaginado a si mesmo transfigurado em um pássaro. Deleitava-se com a ideia, quase sendo capaz de antever a sensação de planar livremente pelas correntes de ar.  Contudo, a animagia era uma ciência emblemática e a transfiguração havia se desenrolado por outros caminhos. Ainda assim, nada jamais mudaria a certeza que ele tinha de que o ar era o seu elemento. Os mistérios escondidos naquela imensidão lhe deslumbravam e, ousava pensar, lhe pertenciam.

Sentiu que ela se aproximava, os passos leves convergindo em sua direção. Parou ao seu lado, levantando também a face em sentido à noite que os defrontava. Sob o luar, perdida em seus pensamentos, Narcissa Black era uma miragem. Os raios prateados beijavam a pele alva, dando a ela ares de ninfa. Seus claríssimos cabelos cintilavam, como se milhares de pequenos corpos celestes os adornassem.

- Não há nada igual. – A voz suave ressoou pelo ambiente, sem que ela tirasse os olhos dos desenhos formados no céu.

- Não. – James murmurou, pensando principalmente nela. - Há belezas que nem mesmo a magia é capaz de justificar.

- Sempre gostei de acreditar que possuíamos alguma ligação especial com elas... – Confessou, em voz baixa. – Digo, a minha família. Isso justificaria a escolha dos meus antepassados em nomear os descentes em sua homenagem. – Sorriu, diante do cenho franzido dele. - Sirius, Andrômeda, Bellatrix, Órion... Não percebeu?

- Mas... E Narcissa?

- Eu sou a única. Meus pais nunca foram capazes de me explicar o porquê, mas imagino que papai me achou parecida demais com os Rosier para me marcar como uma verdadeira Black. Os nomes celestiais são uma forma de distinguir as mulheres da família, mesmo depois de casadas.  – Justificou, antevendo a pergunta que ele formularia. - Minhas irmãs costumavam me fazer chorar quando criança, dizendo que eu havia sido adotada e que certamente me revelaria um aborto, por isso haviam me dado um nome que me marcasse como uma pária. Foi um enorme alívio finalmente manifestar magia aos 7 anos!

- Um pouco cruel para crianças tão pequenas...

- A palavra crueldade poderia ser substituída pelo nome de Bellatrix no dicionário. – Disse isso em meio a um sorriso, como uma piada.

- Ter irmãos parece ser fascinante! – Foi a vez de ele sorrir com ironia.

- Você não imagina...  – Suspirou, antes de continuar. - Eu faria qualquer coisa no mundo para apagar minhas irmãs da minha vida completamente, como se nunca tivessem existido. No entanto, elas são as únicas pessoas que eu daria minha vida para não perder!

- Soa...complicado.

- Complicado, enlouquecedor e fatigante. Mas eu as amo profundamente! Elas são o sangue do meu sangue, afinal.

- E sangue importa muito pros Black!

- Mais do que tudo.

O peso da afirmação recaiu sobre os dois, selando um desconfortável silêncio enquanto dezenas de questões borbulhavam dentro de cada um. James sentia-se com sorte todas as vezes que ouvia de Sirius o quão rígida sua família era sobre pureza de sangue. Sua ascendência era completamente mágica pelos dois lados, até onde conseguia rastrear, mas isso nunca fora motivo de orgulho. Qualquer um, nascido bruxo ou trouxa, seria bem-vindo na casa dos Potter, desde que tivesse um bom coração. Por isso, eram taxados de traidores de sangue pelas famílias como a do amigo.

- Seus pais nunca pensaram em ter outro filho? – Ela indagou, parecendo genuinamente interessada.

- Teriam me dado vários irmãos, se pudessem. Mas não era tão simples... Eles já tinham parado de acreditar que podiam ter filhos quando minha mãe engravidou, numa idade bem avançada. Foi uma surpresa tão grande que meu pai desmaiou quando soube! – Sentiu seu peito se aquecer com o som da risada que ela deu. – Acabei sendo o único.

- Um pequeno milagre. – Voltou o rosto na direção dele, levando seus olhos a se encontrarem.

- Sim. Já devo ter ouvido isso um milhão de vezes!

- Então o mistério está resolvido? Pais sêniores com dificuldades em dizer não ao herdeiro tão desejado combinados com cofres cheios em Gringotes: Foram esses os ingredientes para criar o presunçoso James Potter? – Ela arqueou a sobrancelha, ostentando um arco irônico nos lábios.

- Assim você me ofende, Srta. Black! Não é presunção... Eu não tenho culpa de ter nascido quase perfeito. – Deu de ombros, gracejando.

- Quase? – Ela mordeu suavemente o lábio inferior, para desdenhar.

- É o segredo mais bem guardado da minha vida. Mas algo na atmosfera desse lugar me faz sentir que deveria lhe contar.

Os braços dela repousavam junto ao corpo e James esticou a mão direita até entrelaçar sutilmente as pontas dos dedos aos de Narcissa. Seu coração martelava contra o peito de forma tão intensa, que o rapaz teve receio de que, sob o silêncio da torre, ela fosse capaz de ouvir cada palpitar. Girou na direção da garota, diminuindo o já curto espaço que havia entre eles. A similaridade de altura permitiu que se olhassem nos olhos sem esforço, por um instante, enquanto ele aproximava seus rostos. Passou seus lábios perigosamente perto dos dela antes de levá-los até próximo ao ouvido, para poder sussurrar, como um profundo segredo exigia.

- A verdade, minha querida Narcissa, é que...

- Un instant, s'il vous plaît. – As ondas da voz da professora se acercando encharcaram o ambiente – Srta. Black, por Merlin, salve-me dessa enrascada! Há minutos tento lembrar e minha mente está subitamente vazia! Qual seria a expressão correspondente em francês para Binária Eclipsante?

Afastaram-se bruscamente, assustados, assim que ouviram a mestra se aproximar. Sem a penumbra do ambiente, Sinistra os teria encontrado ruborizados. Mas a pouca luz os permitiu esconder a expressão constrangida.

- De certo, professora! – Respondeu com a voz firme, dissimulando prontidão, e caminhou na direção da outra, sem olhar para trás. - Deixe-me apenas entender o contexto...

A garota conduziu a professora, os sapatos das duas soando em uníssono contra o chão, enquanto abandonavam o observatório para retornar à varanda, unindo-se à convidada. James desarrumou os cabelos compulsivamente, sentindo os batimentos mais acelerados pelo sobressalto.  Ainda podia sentir o cheiro do perfume dela em suas narinas e o toque frio de sua mão. Aos poucos, a adrenalina foi cedendo seu lugar para a frustração. Arrumou o nó da gravata e respirou fundo. Pôs um sorriso no rosto e foi ao encontro delas, de volta ao papel de devotado anfitrião.

------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

- Mantenham-se atentos ao tom! O que nós estamos buscando é um cinza claro. Tons escuros indicam que a mistura cozinhou até passar do ponto. – Slughorn caminhava pela sala, monitorando o andamento da preparação da poção calmante sobre a qual os alunos do quarto ano se debruçavam. - Por Merlin, Sr. Carrow, uma gota disso faria uma criança dormir por uma semana! – Afastou a fumaça que estava se formando sobre o caldeirão do garoto, prosseguindo em direção ao seu companheiro de bancada. – Por outro lado... Excelente, Sr. Black! Perfeitamente executada! Filtre e me entregue num frasco. Vai garantir 10 pontos para a Sonserina!

Narcissa suspirou satisfeita, contemplando Regulus virar-se discretamente para aferir se ela tinha ouvido o elogio que o professor havia tecido a ele. Com Sirius regozijando-se em desagradar, era um bálsamo saber que o seu querido priminho caçula se preocupava em impressionar a família. Concentrou-se por alguns instantes em arrumar o distintivo de monitora, sentindo o orgulho pelo nome da família circular em suas veias, espesso como sangue. Erguendo o rosto para voltar a observar a sala, viu que Potter aproximava-se, acompanhando Madame Renouard depois de apresentar a ela o estoque de materiais. 

- Souhaitez-vous poser d'autres questions au professeur, madame? – Como de praxe, Narcissa verificou se a visitante tinha alguma pergunta para fazer diretamente ao professor que estava conduzindo a classe.

- Oui, mademoiselle. Rappelez-moi son nom, s'il vous plaît. – Apesar de ser muito observadora, a vice-diretora tinha um “pequeno” problema para se lembrar dos nomes daqueles que acabara de conhecer. Narcissa alongou o olhar até James, como se dissesse “de novo” e ele prendeu o riso.

- Professor Slughorn. – Repetiu, sem intuir que o mestre se aproximava pelas suas costas.

- Horace Slughorn, madame. Encantado em recebê-la em minha classe! – O homem fez uma ligeira mesura, antes de trocar um aperto de mão com a visitante.

- Madame Renouard gostaria de fazer algumas perguntas sobre a metodologia de suas aulas, professor.

- Claro, Srta. Black! Responderei todas as dúvidas que nossa hóspede possuir, mas primeiro, gostaria de fazer-lhe um convite. Ela compreende um pouco de inglês, sim? Se ao fim algo não ficar bem entendido, vou agradecer se você puder esclarecer, minha querida. – Pigarreou, endireitando a gravata borboleta. – Estou convicto de que tão ilustre presença em nossa escola não poderia deixar de ser celebrada, madame! Conversei com o Professor Dumbledore e concordamos que oferecer um jantar de comemoração na noite anterior a sua partida seria o mínimo que poderíamos fazer para demonstrar nosso júbilo por tê-la em nossa escola.

- Oui, monsieur Slug Orn! Eu irrei ao salón prrincipal em següidá. – Balançou a cabeça, sorrindo.

- Oh, não, madame! Desculpe-me se não fui claro, mas o convite que lhe faço não é para partilhar uma refeição com todo o corpo escolar. Estarei oferecendo um jantar para a senhora em meus aposentos. 

A mulher franziu o cenho e por pouco não se podia ouvir o crepitar de seus neurônios sob os cabelos dourados. Narcissa sentiu que era a hora de interferir, antes que houvesse algum mal-entendido. Explicou pausadamente que o convite ao qual Slughorn se referia era para um jantar privado em homenagem à sua presença na escola, servido apenas ao corpo docente de Hogwarts.

Era um hábito do mestre de poções organizar festas e jantares nos quais pudesse se autopromover, orgulhoso como era. O “Clube do Slugue” constituía-se da forma que o professor havia encontrado para manter devotados a ele pelo resto da vida aqueles alunos em quem enxergava um grande potencial, visando usá-los como cartas na manga. Atraia para si aqueles que considerava promissores nos mais diversos campos, mas principalmente àqueles com grande capacidade intelectual ou influência social. Os alunos escolhidos, por outro lado, inchavam-se de orgulho em entrar para o seleto grupo, estabelecendo redes de contato entre si que costumavam se estender fora dos portões de Hogwarts. O sobrenome Black garantira a Narcissa a participação em algumas destas reuniões, em que os presentes se pavoneavam durante toda a noite. Diante da oportunidade de impressionar uma visita importante e estabelecer vínculos internacionais, Slughorn jamais hesitaria. Nada era mais ilustrativo do caráter de um diretor da Sonserina.

- Oh! Oui, Oui. – Madame Renouard assentiu, compreendendo afinal. – Non erra necessarriô! – Deu uma risadinha, tentando demonstrar humildade. - Mas serrá um grrandê prrazer, monsieur Slug Orn!

- O prazer será nosso, madame! Será uma oportunidade ímpar de dividirmos nossas experiências como mestres. – O sorriso que brilhava em seu rosto era de puro júbilo, com as pupilas reluzindo de uma genuína satisfação envaidecida. – Você será muito bem-vinda se desejar unir-se a nós, Srta. Black. Está fazendo um trabalho excelente como nossa anfitriã, não é justo que esteja ausente! – Apertou docemente o ombro de Narcissa, demonstrando o orgulho de ver uma estudante de sua casa recebendo tanto destaque diante da vice-diretora francesa. – E você também pode vir, Sr. Potter. - Exclamou entre os dentes, sem deleite em dizê-lo.

- Ser convidada pelo senhor é uma honra, professor. Mas... – A garota abriu um sorriso gentil, preparando-se para recusar educadamente, como o convite pedia.

- Estamos exultantes em participar, senhor. – Potter interrompeu, antes que ela pudesse negar.

Os olhos azuis correram imediatamente até os do rapaz, fuzilando-o. O convite de Slughorn para eles havia sido uma formalidade, que requisitava uma educada negação, deixando que os professores aproveitassem a noite à vontade. Era óbvio que uma interação social tão delicada iria passar despercebida pelo garoto, principalmente dada a presunção que Potter tinha em se achar digno de todas as honrarias.

James piscou para ela, sorrindo. Nunca perderia a perfeita oportunidade de saber como eram as tão famosas festas promovidas por Slughorn. Estava jubiloso por finalmente ser convidado a participar de uma delas, ainda que em uma versão diferente do usual. Ao longo dos anos, sentira-se insultado muitas vezes, por não ter sido considerado digno de participar do “Clube do Slugue” pelo professor. Ele e os amigos costumavam zombar das reuniões, mas a verdade é que sempre tivera grande curiosidade em ver com os próprios olhos o que acontecia naqueles encontros.

- Espero que não seja um incomodo para a senhorita mostrar à Madame Renouard o caminho para os meus aposentos, às 20h30, Srta. Black!

- Não se preocupe, professor! Acompanharei nossa hóspede com alegria. – Assentiu, com um sorriso plastificado no rosto.

- Maravilhoso, Srta. Black! Maravilhoso! Agora podemos retornar às perguntas, sim? – Ele colocou as mãos no bolso, com um semblante satisfeito, esperando que Narcissa iniciasse a tradução.

----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Forward
Sign in to leave a review.