Proposta estilhaçada
Hoje, hoje é o dia! Kevin Sydney repetia para si mesmo, eufórico enquanto atravessava o corredor.
Sabe-se lá porque motivo – alinhamento dos planetas ou qualquer besteira do tipo – Morfo acordou inspirado para finalmente dizer ao seu melhor amigo que espera que sejam mais que isso.
Mas encontrar Logan naquela manhã provou-se mais difícil que propriamente romper a timidez: Kevin passou pela cozinha, pela garagem, pelo quintal e nada. Só restava a Sala de Perigo, mas não era o feitio de Wolverine treinar tão cedo. Ainda mais depois do tanto que eles beberam ontem.
Ah, ele não aguentava mais ver o carcaju se lamuriando pela ruiva! Talvez ouvir a mesma ladainha de sempre ontem tenha lhe incomodado tanto ao ponto de se tornar o pontapé inicial para Morfo se arriscar.
Estranho, a dizer pelo baixo movimento pela casa, todos estavam na sala – talvez até mesmo Logan. Dirigindo-se para lá, Sydney ouviu um soluço e até um grito de surpresa abafado pelo som da televisão ligada.
-E aí, gente! – cumprimentou com uma ponta de deboche habitual – É hoje o final da novela? Por isso estão tod...
-Morfo, agora não! – Summers nem se deu ao trabalho de se virar para apontar o dedo na cara do colega – Agora não!
Kevin estava pronto para fazer mais uma piadinha, mas assim que se aproximou ele viu as imagens e ficou assustado. Num primeiro momento pensou que fosse mais um noticiário sobre a guerra nos Balcãs ou no Oriente Médio, mas então ele reconheceu alguns corpos sendo carregados pelos sobreviventes em meio a prédios em ruínas.
-Isso é...
-Genosha – completou Hank McCoy – A ilha foi atacada.
-M-m-mas por quem?
-Ainda não sabemos.
-“Ainda não sabemos”? Sério, Hank? – Ciclope parecia furioso, mais do que o normal – Era um Sentinela!
-E a Vampira? O Gambit? O Magneto?
-Não tivemos notícias – Scott, já menos nervoso, se virou para a maior telepata do grupo – Jean, será que você poderia...?
-Estou fazendo isso agora, Scott, mas eu só consigo sentir um sinal bem fraco da Vamp... – Subitamente, Grey perdeu as palavras, levando a mão à boca como se estivesse vendo um banho de sangue diante de si naquele exato instante – Meu Deus!
-O quê, Jean? O que houve? O que você está vendo?
-Remy... ele se foi.
Hank retirou seus óculos e abaixou a cabeça. Jubileu escondeu seu rosto na jaqueta de Roberto Costa, que continuava boquiaberto. Scott ficou paralisado por um minuto, mas depois cerrou o pulso e virou de costas. Em seguida ele deu uma ordem que pelo tom parecia muito mais um pedido que outra coisa:
-Preparem-se: nós vamos para Genosha.
Morfo continuou ali, hipnotizado pelas imagens de escombros, fogo e fumaça. Ele não conseguia sequer articular palavras ou sair do lugar. Assim que passaram os primeiros minutos de choque, uma leve tontura o acometeu. Não querendo dar o braço a torcer, ele voltou em silêncio para o seu quarto.
**
Como era possível? Como era possível ser tão azarado? Kevin não se lamentava por ter entrado para o grupo. O que ele se arrependia mesmo era de ter nascido um mutante.
Coisas que poderiam ser simples para qualquer humano lhes eram negadas o tempo todo. Como, por exemplo, essa bobeira juvenil de se declarar. Um sortudo só teria de lidar com a timidez e a possível rejeição, mas Kevin, não! Não, senhor! Ele tem um genocídio no meio do caminho!
Duas batidas na porta. Morfo pensou que seria Scott passando de quarto em quarto, apressando todos para a missão, mas a voz do outro lado era muito mais grave e arranhada.
-Ei, meu chapa, posso entrar?
Kevin estava tão atordoado que nem se importou: disse que sim e continuou ali, estirado sobre sua cama, olhando para o teto com a expressão mais miserável do mundo.
A primeira coisa que Logan esbarrou foi num caco de vidro. Também pudera, a imensa relíquia que o amigo tinha comprado outro dia foi quebrada em mil pedaços, todos eles espalhados pelo chão do quarto.
Normalmente é sempre ele que é o esquentadinho, por isso Logan se preocupou com o estado do camarada. Ele nunca foi muito bom com palavras, mas sentia-se bem à vontade para ser direto com Sydney, afinal já passaram por bastante coisa juntos.
-Kevin, você vai na missão?
Só o fato do baixinho usar o primeiro nome de Morfo era um sinal de genuína preocupação, algo que escapou ao metamorfo entregue à fossa.
-Eu vou. Você vai?
-Sim, eu quero pôr as minhas garras nos desgraçados que fizeram aquilo!
-Hmm... – Kevin apenas murmurou, enquanto continuava olhando para o teto.
Logan, já trajando o uniforme, se aproximou da cama e deu uma boa olhada no rosto do amigo:
-Não precisa ir se não quiser, você sabe.
-Não, Logan, eu vou. Eu sempre vou... – Repentinamente, tomado por um espasmo de raiva, ele sentou e começou a disparar mil palavras – Eu estou cansado disso! Nós vamos lá, prendemos o Trask e destruímos o Molde Mestre, mas depois outro maluco aparece, um Sr. Sinistro com desconto ou um Apocalipse genérico, e quando respiramos um pouquinho, o Trask volta a fazer sentinelas de novo ou qualquer outra merda para nos matar! Nós nunca vamos ter um descanso? Pô, eu queria fazer coisas, resolver minha vida, mas sempre temos que deter o fim do mundo ou impedir um massacre! E se descuidarmos um tantinho assim, pronto, ocorre uma chacina! Parece que só nós estamos fazendo algo aqui!
Wolverine apoiou a cintura no parapeito da janela e esperou que o camarada desabafasse. Quando Morfo finalmente se calou, ele completou:
-Eu sei, não é justo, mas nós sabemos que seria assim por um bom tempo.
-Até quando? Eu não posso deixar minha vida em suspenso por toda a eternidade!
-Olha, Kevin, eu sei como é a sensação. Quando eu me sinto assim, eu tiro um tempo para sair da equipe. Espairecer as ideias, sabe?
Movido por uma curiosidade quase infantil, Sydney perguntou:
-Foi por isso que você sumiu hoje pela manhã?
-É... têm acontecido muita coisa ultimamente. Eu dei uma volta com a moto. Sempre me ajuda a ver as coisas em perspectiva.
Todos ouviram em suas cabeças uma voz familiar anunciar que sairiam em cinco minutos, o que encerrou a pequena conversa mais cedo do que devia. Logan deu uma tapinha nas costas de Kevin e sorrindo (não era exatamente um grande sorriso, mas só uma expressão menos rabugenta) assegurou que ele ficaria melhor. Antes de passar pela porta, o canadense disse:
-Sinto muito pelo espelho, cara.
Sydney sentiu um pequeno alívio aplacar as dores no estômago. Era o efeito mágico que Logan tinha nele, principalmente quando parecia tão compreensivo. Mas de certa forma o conselho parecia bem tentador. Tentador não fosse pelo fato de que teria de ficar longe... dele.
***
Duas coisas eram difíceis de tirar da mente depois da viagem: o cheiro nauseante de podridão e a imagem dos corpos pelas ruas destruídas. Morfo se sentia baixo e mesquinho por ver a missão em Genosha como um entrave ao seu caso sentimental. Eles eram mais do que necessários ali.
Felizmente, algumas ONGs aceitaram boa parte dos sobreviventes em navios enviados até a ilha, mas outros foram com a equipe até a Mansão Xavier. Vampira estava inconsolável, mas ela tinha Scott, Jean e Jubileu ao seu lado. Hank ficou com a extremamente desafiadora tarefa de preparar o corpo de Gambit. Logan estava conversando com o tal Noturno, tentando extrair dele qualquer detalhe sobre os possíveis mandantes do ataque. E Morfo estava de volta ao quarto, tentando esquecer o odor e as cenas de Genosha.
Depois de algumas horas, todos foram convocados para a sala. Ciclope anunciou que visitariam Bolívar Trask, mas tinha um problema: Jean não conseguia acha-lo.
-Ele pode estar usando um protetor, tal como o capacete de Magneto.
-Não, Hank, é mais do que isso. Eu sinto uma energia poderosa bloqueando seus sinais. Uma energia que não sei identificar.
-Então vamos atrás de Henry Gyrich! – Wolverine pulou dentro da conversa já com os punhos cerrados – E dessa vez me deixem sozinho com ele!
-Nós falamos com a penitenciária e parece que ontem Gyrich teve convulsões e agora se encontra em coma.
-Alguém está encobrindo bem os seus passos.
-Alguém ou alguma coisa.
Kevin soltou um suspiro de frustração e deu as costas para a equipe. Ele foi até a cozinha pegar um copo d’água e se perdeu em seus pensamentos. Ele queria poder participar da última missão, capturar o culpado por tudo, antes de sair, mas ninguém sabia para onde ir...
-O que foi, Morfo? – Jubileu também pegou algo na geladeira, muito possivelmente o seu Bubble Tea – Nunca te vi tão estressado assim.
Sydney não queria importunar mais ninguém com seus problemas, mas ele sentia que devia explicar sobre seu comportamento ao menos para a pessoa que menos lhe incomodava na casa, tirando, é claro, Logan.
-E dá pra ficar de outro jeito com essa situação toda?
-É, foi mal por ter perguntado.
-Não, desculpa. Tem muita coisa passando pela minha cabeça.
-Eu acho que você devia dar um tempo, Morfo.
-Você é a segunda pessoa que me fala isso.
-Os outros também se preocupam contigo, mas têm acontecido tanta coisa...
-Eu sei, coisas importantes.
A jovem tocou no ombro do colega, enquanto ele continuava olhando fixo para a janela. Não tinha nada lá fora, apenas as mesmas árvores, a mesma grama e o mesmo céu azul.
-Você também é importante, Morfo. Eu sei que não falamos muito, mas é que você está sempre brincando. As vezes as pessoas esquecem que você também tem problemas.
Kevin se virou, segurou nas mãos da garota, e com um sorriso tenro agradeceu:
-Obrigado, maninha. Você é a minha terceira pessoa favorita nessa casa.
Lee riu e comentou que ele estava entre os cinco melhores X-Men para ela.
***
No final do dia, todos estavam reunidos de novo na sala. Dessa vez sem uniforme e sem tensão. O clima era muito mais melancólico. Aquele não era o breefings antes de uma missão, mas uma despedida.
Morfo desceu a escada carregando uma grande mochila. Ele continuava usando sua jaqueta marrom, mas dessa vez ela estava por cima de uma camisa branca. Ele também estava usando uma calça jeans.
No centro da sala, todos se levantaram quando ouviram os passos. Scott foi o primeiro a se aproximar, triste:
-Tem certeza que quer mesmo fazer isso?
Sydney apenas assentiu com a cabeça. Ele assegurou que não seria bastante tempo, só o suficiente para ele não pirar. Summers apertou sua mão e Grey apareceu em seguida:
-Você sempre será bem vindo, Kevin – disse a telepata antes de abraça-lo.
-Nas palavras de Saint-Exupéry, você é eternamente responsável por tudo que cativa e você nos cativou, Sydney. Estaremos sempre ligados, meu jovem, não importa o que aconteça.
Fera o cumprimentou com delicadeza, num perfeito contraste com Jubileu que se jogou contra o colega, apertando-o bem forte. Com a voz um pouco embargada, ela avisou:
-É bom você voltar, moço!
-Tá certo, moça!
Roberto Costa apenas apertou sua mão, sem declarar qualquer coisa. Vampira, ainda bem chorosa, abraçou o amigo e tentou dizer algo, mas o próprio Morfo disse que não precisava. Por fim, Logan estava esperando na porta. Ele estava cabisbaixo e disse que o acompanharia até o portão.
-Acho que você está fazendo o certo.
-Eu espero.
-Se tiver problemas sabe como me achar.
-Claro.
-Ei – Wolverine o puxou pelo braço, interrompendo os passos – você tem que me prometer que vai voltar, meu chapa!
Surpreso, Sydney demorou a reagir, até que enfim respondeu com o mesmo sorriso sarcástico:
-Um teto, cama e comida de graça: é claro que eu volto!
Logan tirou algo do bolso da sua jaqueta e entregou na mão do amigo:
-Até lá, fique com essa lembrança.
Era um caco de vidro. Morfo não pode evitar: ele riu.
-Não precisava ter gastado tanto dinheiro comigo, Logan.
-É parte do seu espelho. Eu também vou carregar um pedaço comigo.
Dito isso, o baixinho tirou do outro bolso outro caco.
-Eu sei, é uma lembrança estúpida, mas eu não consegui pensar em outra coisa...
Kevin sorriu e seus olhos quase deixaram escorrer uma lágrima:
-Parece perfeito para mim, Logan.
Os dois se abraçaram por um minuto. Morfo se distanciou acenando, enquanto o carcaju repetia o mesmo gesto. De longe, Kevin Sydney não podia ver, mas Logan estava com os olhos marejados.