
Novos reflexos
Duas semanas, 14 dias e 336 horas, mas, ei, quem está contando? Com certeza não Kevin Sydney. Se ele sabe disso tudo é meramente por intuição.
Duas semanas, quem diria! O próprio Kevin não estava muito seguro de que conseguiria ficar dois dias distante da Mansão Xavier. Mas aqui está ele, vagando pelo país como um peregrino. Talvez essas duas semanas, 14 dias e 336 horas tenham realmente o mudado.
Primeiro ele teve que pedir carona e para isso era preciso que parecesse confiável. Sydney se transformava com frequência naquele pai sorridente da propaganda de margarina. Mas uma vez ou outra ele assumia a forma da mulher do comercial de lingerie. Era divertido mudar para algo bem assustador quando algum engraçadinho ao volante estava prestes a acariciar suas coxas. Numa dessas, ele quase fez um caminhoneiro capotar com sua carga.
Não havia um ponto de chegada. Morfo queria mais aproveitar a jornada, colocar os pensamentos no eixo enquanto enfrentava a estrada. Mas por obra do destino ele chegou até essa cidadezinha onde havia um circo de passagem.
Para Sydney era perfeito. Ver aquelas apresentações pelo menos serviria para distrair daquele que vinha pensando desde que passou pelo portão da mansão. Era engraçado sentir um objeto frio e pontiagudo no bolso da jaqueta toda hora. Era engraçado porque lembrava as garras de...
Enfim, a trapezista estava pronta para pular quando pessoas na plateia começaram a se erguer com um brilho estranho no olhar. Eram pessoas comuns, mas de repente começaram a falar com uma voz robótica.
Assim que começaram a avançar na direção de alguns circenses como se fossem sentinelas voando, Sydney já sabia que seria o próximo. Ele precisava sair dali o quanto antes. Na verdade, ele precisava voltar de onde nunca devia ter saído.
A verdade é que em duas semanas, 14 dias e 336 horas, o mundo tinha mudado mais do que o próprio Morfo. Talvez até de uma maneira irreversível.
***
Era difícil dizer o que aconteceu desde que Kevin Sydney adquiriu asas e saiu daquela cidadezinha. Tentando não chamar atenção ele se transformou num morcego, mas as sentinelas de carne e osso o seguiram até metade do caminho disparando laser e depois, caíram.
Quando estava perto, ele se surpreendeu com a claridade. Era a Mansão Xavier: ela estava em chamas. Que novidade, pensou Morfo. Já em terreno familiar, ele voltou a sua forma original. Existiam corpos de estranhos por toda parte e bem em frente à casa, algumas silhuetas conhecidas.
-Logan!
O carcaju estava com o uniforme rasgado, deixando metade do peito e do ombro à mostra. Ele estava ainda tenso e com as garras sujas de algum líquido roxo. Ele se virou e sussurrou o nome do amigo:
-Morfo... você... voltou – ele continuava bem ofegante, mesmo depois da ação toda ter acabado.
De uma repentina nuvem saíram Noturno e Fera. O rapaz azul disse que só faltava uma coisa e se desmaterializou diante deles. Hank estava grogue e se assustou ao ver o estado da Mansão.
-Nós... conseguimos?
-Não – respondeu Wolverine – Mas alguém desligou todos eles.
-E dá pra desligar essas coisas?
-Aparentemente sim, através de um pulso eletromagnético.
Noturno apareceu novamente, agora segurando o corpo de um velho inimigo dos X-Men. O próprio Morfo, que estava mais perdido que o habitual, não entendeu nada:
-Trask?
-Você devia tê-lo deixado lá, garoto! – resmungou o baixinho.
Fera interveio, ainda um tanto cambaleante, dizendo que eles precisavam continuar pesquisando o que o Sr. Sinistro fez com o cientista. O nome do antigo chefe de Kevin Sydney lhe despertou um calafrio pelo corpo.
Wolverine estava pronto para praguejar mais contra MacCoy, mas ele percebeu que Morfo estava calado e cabisbaixo. Não era exatamente a recepção que ele merecia.
-Ei – o canadense deu um soquinho no ombro do amigo – Que bom que você voltou!
Era estranho vê-lo mais calmo e contido quando a meio segundo atrás Logan estava no seu mais genuíno modo de ira pura. Em outra ocasião, essa gentileza teria derretido ainda mais o coração de Sydney. Como ele estava lutando para se esquivar das lembranças que pulavam na sua frente, Morfo foi monossilábico e quase inaudível em seu agradecimento:
-Eu... estava com saudades.
-Pensei que você podia estar passando por maus bocados lá fora... com tudo isso.
-Pois é – como que finalmente se recompondo, Morfo abriu um sorriso sarcástico – Ainda bem que eu vim voando para cá.
Logan não tinha entendido. Kevin teria mesmo que explicar a piada?
-Voando, sabe? É que eu me tornei um morcego.
-Ah...
-E onde estão os outros? Foram levados?
-Jean, o engomadinho e o brucutu do futuro saíram em missão. Jubileu estava visitando os pais do Roberto.
Nesse instante, Noturno se aproximou e muito educadamente perguntou:
-Falando nisso, mein freund, precisamos ver como está Jubileu e Roberto.
-Só se você conseguir carregar todos nós no seu teletransporte até a Casa Branca. Scott levou o último jato! Argh!
Logan estava chutando a grama e desferindo golpes imaginários como sempre fazia quando perdia uma partida de futebol. Kurt se acercou dele com um olhar muito piedoso e tentou lhe confortar:
-Calma, precisamos estar com a cabeça fria nesse momento.
Como num passe de mágica, o carcaju parou e respirou fundo. Sydney sentiu-se enciumado nessa hora e fez um beicinho. Logan reparou e achou estranho:
-O que foi, cara?
-Hã – Veio então o pânico: ele percebeu! – Nada, nada!
Constrangido, Morfo colocou as mãos no bolso da jaqueta e sentiu algo pontiagudo arranhar seu dedo. Foi então que ele puxou para fora da roupa o souvenir que tinha ganhado antes de sair da Mansão Xavier. Logan logo reconheceu e também tirou algo do seu cinto: um caco de vidro.
-Acho que agora não precisamos mais disso.
Noturno estava completamente perdido, mas mesmo assim não conseguia parar de acompanhar essa cena bizarra.
-Droga! Mas que droga! – Wolverine tinha voltado a socar o ar – Esses imbecis estragaram tudo!
-Ah, a Mansão? Eu tenho quase certeza que o Professor ainda deixou dinheiro suficiente para destruírem ela mais umas cinco vezes.
-Não, eu estou falando do seu presente! – Morfo pensou ter ouvido errado – Aquele espelho que você tinha comprado, lembra? Eu comprei um novo e coloquei a mesma moldura nele. Ficou perfeito. Só que estava no seu quarto e...
Eles ouviram um “BAMF!” e quando o som se repetiu, Noturno estava segurando um espelho com uma moldura de madeira de lei bem ornamentada.
-Não está mais, mein freund.
Sydney segurou o presente com o máximo de cuidado. Ele podia se ver no reflexo com os olhos marejados brilhando com a luz das chamas. Atrás de si ele viu o baixinho com uma cara de grande curiosidade.
-Logan, muito obrigado... eu... eu... queria te dizer...
Um estrondo ecoou pelos céus. Um ponto de luz desceu até a Mansão em grande velocidade. A coisa metálica de aparência alienígena se abriu e alguém saiu de dentro. Ao retirar o capacete, todos o reconheceram.
-Professor?
***
Uma hora e mil perguntas depois, todos estavam devidamente ciente de tudo o que tinha acontecido deste e do outro lado da galáxia. Por mais que ainda gerasse ressentimento saber que Charles Xavier deixou que pensassem que tivesse falecido esse tempo todo.
Mas, como sempre, eles não tinham muito tempo para terapia de grupo. O mundo podia estar à beira de uma guerra mundial. Xavier tinha um plano e, sinceramente, ele era o único ali que tinha uma vaga ideia do que podia ter acontecido.
A prioridade era reencontrar os demais membros da equipe, a começar pelos mais jovens. Agora eles tinham uma nave do Império Sh’iar a seu favor, mas como a viagem exigiu muito de seus motores, era preciso esperar que resfriassem antes de decolar.
Nesse meio tempo, Morfo carregou seu presente para não muito longe dos escombros da Mansão. Ele sentou aos pés de uma árvore, como se estivesse á procura de sombra (durante a noite). Como temia quebra-lo sem querer, Sydney deixou o espelho apoiado em seu colo.
Ele olhava para as chamas, hipnotizado por seu movimento e brilho, mas estava pensando em outra coisa. Será que vai ser sempre assim? Quando ele está a poucos passos de se declarar, de ouvir um “não” ou levar uma estocada, sempre acontece alguma coisa.
Como será que a Jean e o Scott criaram um relacionamento no meio disso tudo? Literalmente era quase inconcebível para Sydney que alguém além dele tivesse tempo para fazer coisas que um casal faria.
Mas, o que essa jornada lhe ensinou nas últimas semanas, é que não é um problema de ausência de tempo, mas de organização de tempo. Ele podia ter dito muito antes de toda a loucura começar. Cada momento de calmaria, como esse, é uma oportunidade. Não é a melhor oportunidade, mas já é alguma coisa.
Então o que ele estava fazendo ali, sentado, imerso em comiseração agora?
-Tudo bem, cara?
Morfo assustou-se, pois não viu Logan chegar.
-Hã? Tudo, tudo... – Força, Kevin, força! – Logan, eu tenho uma coisa pra te falar.
-Eu também, Morfo.
Isso desmontou toda a fugaz confiança de Sydney.
-Tem mesmo? Então... fala primeiro.
-Pois é... acontece que... – o carcaju estava muito desorientado, quase como se estivesse constrangido – Melhor você falar primeiro.
-Olha, eu sei que isso pode parecer estranho, e vou entender se você surtar, mas a verdade é que eu te considero como um grande amigo... O maior amigo que jamais tive! E-e-e... E você está sempre lá por mim e espero estar sempre lá por você. Mas acho que o que eu quero dizer é... eu sinto por você algo a mais que a amizade, entende? E sinto que eu deveria ser sincero contigo e dizer isso logo porque pode ser que não voltemos vivos da próxima missão. Eu não queria ter que esconder isso por mais tempo... Não sei se isso faz sentido para você. Logan, acontece que eu... te amo.
Para não gaguejar, Kevin estava evitando olhar diretamente para o rosto de Logan, mas na parte final de seu monólogo não teve como. Ele precisa saber a reação do baixinho, mesmo que fosse do mais puro ódio.
A expressão de Logan, contudo, era um misto de confusão e tristeza, mas prontamente se transformou numa careta. Ele novamente socou o ar e resmungou:
-Droga! Eu sabia que não era coisa da minha cabeça!
Desesperado, Morfo se atrapalhou com as palavras – queria dizer que era para ele esquecer tudo, que ele estava ainda desorientado, que ele não falaria disso jamais - , mas Wolverine o interrompeu:
-Não, não precisa disso, cara. Eu estaria mentindo se dissesse que não sinto algo por ti também.
Como é? Kevin ficou petrificado de surpresa.
-Mas só percebi melhor isso depois que você partiu. Eu já sabia que você me via com outros olhos, mas eu nunca... Enfim, acho que em parte eu queria acreditar que era mentira ou que era melhor não irmos muito além, porque, dá só uma olhada pra mim: eu sou um bolo de problemas ambulante! Mas, depois que você saiu da Mansão, eu me senti muito mais miserável do que o normal. O que eu quero dizer, é que talvez eu não tenha te valorizado do jeito certo, porque você é muito... importante... pra mim também.
Sydney estava tremendo, mas era de perplexidade. Logan sentiu que o longo silêncio do amigo era mais incômodo que uma estocada no fígado e por isso pôs-se a justificar-se:
-Olha, me perdoe: eu não sou tão articulado quanto o Shakespeare peludo ou tão sensível quanto o elfo...
Morfo se levantou, tomando o máximo cuidado para não derrubar o espelho no chão. Ele se aproximou com os olhos vidrados na bochecha levemente corada do baixinho. Seu coração estava batendo em disparada. Na verdade, o de Logan também. Sydney levantou sua mão, mas a deteve pouco antes de tocar o rosto do companheiro.
-Posso? – perguntou quase como se sussurrasse um segredo.
Logan apenas assentiu com a cabeça. Kevin apenas apoiou a palma de sua mão na bochecha do carcaju e fechou os olhos enquanto se inclinava na sua direção. Seus lábios se tocaram. Sons molhados e a respiração acelerada e intensa acabaram ofuscando os ruídos dos motores da nave Sh’iar, pelo menos naquele recanto.
Um pequeno sino ecoou na mente de ambos. Não era apenas a magia da paixão, mas um aviso mental do professor telepata. Por mais que ele quisesse parabeniza-los, Xavier precisava ser rápido para reduzir os danos deixados por Bastion.
Eles abriram os olhos. Tanto Kevin quanto Logan estavam inebriados demais para esboçar qualquer outra reação senão a de surpresa. Contudo, foi o carcaju que tentou quebrar o gelo pós-beijo da forma mais rasteira possível:
-Pois é, Kevin... precisamos ir agora.
O canadense deu um sorrisinho com o canto da boca e em seguida se dirigiu até a nave. Morfo continuou ali, debaixo da árvore, desembaraçando os pensamentos e as emoções do momento. De repente, ele deu um pulo de comemoração:
-Chupa essa, Jean!
Pelo espelho esquecido ao lado da árvore se via o reflexo daqueles dois homens correndo euforicamente, lado a lado, para uma nova aventura. Um novo reflexo para uma nova aventura.