
Capítulo 3
Pai e filho caminhavam entre a neve, buscando uma forma de sair daquele lugar antes que seus pés congelassem de vez ou pior, acabassem perdendo alguma parte. Era de conhecimento do mais velho que várias pessoas perderam as pontas dos dedos dos pés ou das mãos na neve devido ao frio cortante. Além é claro do fato dos pés estarem machucados, quase em carne viva, precisavam urgentemente de novos calçados. Roupas. Comida. Água. Abrigo. Paz
O pai já não sabia o que fazer, se não encontrassem pelo menos comida naquele dia, talvez eles não chegassem ao próximo anoitecer. O pequeno andava arrastando os pés, sem forças nem para carregar seu próprio peso. Estava quase anoitecendo quando viram uma casa ao longe. Não poderia criar expectativas, mas mesmo se não encontrassem comida ou qualquer coisa útil, serviria para pelo menos passarem a noite. Abrigados do frio e da neve que caía sem parar.
Ao se aproximarem da casa constataram, para infelicidade dos dois, que ela estava destruída de um lado, não possuía janelas nem portas, não serviria de abrigo e com certeza não encontrariam nada que pudessem utilizar. O menino estava com medo daquele lugar, para ele aquela casa tinha cheiro de morte. Se aproximou do pai rapidamente, tremendo de frio e medo e apertou com força a sua mão. O pai tentou passar tranquilidade ao filho, mas também tinha a sensação de estarem sendo observados.
Com cuidado, andaram pelos destroços da casa em busca de alguma coisa ou de alguém. Em nenhum momento o pequeno soltou a mão do pai. O homem parou quando viu no chão um alçapão. Pediu para o menino se afastar para que pudesse abrir, mas o menino se desesperou e grudou ainda mais no pai implorando para que não abrisse aquilo, alegava que teriam bichos lá dentro. O pai tentando manter a calma e a paciência explicou para o filho que talvez lá embaixo eles encontrassem comida e água ou alguma outra coisa útil a eles ou eles poderiam morrer de fome e frio. Com muita relutância, o garoto se afastou do pai, mas não soltou a sua mão.
Com dificuldade, abriu a porta do alçapão e se deparou com um escada que dava acesso ao que deveria ser um porão. O cheiro que saiu daquele lugar revirou o estômago do mais velho, um cheiro de coisa morta, fétido, podre. Ele ajeitou o melhor que pode o trapo que envolvia sua cabeça e que servia também como máscara para tentar suportar o cheiro, o que não ajudou muito pois os próprios panos tinham um cheiro insuportável e em seguida fez o mesmo com o filho.
O menino não queria descer, estava apavorado, mas o pai insistiu e praticamente arrastou o filho consigo e segurando a mão quase esquelética do pequeno, começaram a descer as escadas. Os passos dos dois eram iluminados por uma pequena chama de um velho isqueiro que o pai carregava. A cada passo que davam o cheiro ficava ainda pior, a ponto de arder seus narizes e seus olhos pareciam queimar.
Quando chegaram no final da escada o pai começou a olhar em volta e o filho puxava sua roupa e pedia para irem embora. O pai já estava ficando sem paciência, precisavam encontrar algo para garantir a sobrevivência por mais um dia. Porém o pai deveria ter ouvido seu filho. De repente o pai sentiu o aperto aumentar do filho aumentar e o pequeno começar a chorar desesperado. Ao olhar para onde o filho olhava com pavor, o pai viu uma pessoa no chão, ou o que sobrou dela pois só restava o tronco e a cabeça, as pernas e os braços haviam sido cortados e as feridas havia sido queimadas para cicatrizar, o que podia ser a fonte do mal cheiro, era o que pensava até ouvir sussurros vindos de um canto. Ao olhar ao redor, em um dos cantos amontoados, havia várias pessoas, pelo menos umas dez, todas estavam nuas, esqueléticas e aos poucos se aproximavam dos dois como se fossem zumbis pedindo, implorando por ajuda.
O pai agarrou o filho pelo pulso que parecia ter entrado em choque e o arrastou para fora dali, deixando cair seu isqueiro, sua única forma de produzir fogo para os aquecer, mas nada disso importava, precisava sair daquele lugar o quanto antes, pois ele imaginava o porquê daquelas pessoas estarem naquele local e com certeza teriam outras as vigiando e esperando algum desavisado aparecer e se tornar mais um no meio delas.
Assim que saíram do porão, a claridade os cegou momentaneamente, apesar do céu estar sempre cinza, ainda tinha diferença de um local escuro para o ar livre. Os dois saíram correndo, gastando suas últimas energias, o menino chorava copiosamente, abalado pelo que viu. Correram até suas pernas não aguentarem mais, não sabiam se haviam sido seguidos, se estavam longe o bastante, caindo os dois na neve cinza. Com dificuldade o pai se pôs de pé e tentou fazer o filho se levantar, mas o pequeno não tinha mais forças. Eles não podiam ficar ali, não era seguro. O pai tentou diversas vezes colocar o filho de pé, mas não conseguiu, então sem muitas escolhas, apesar de estar cansado, o pai colocou o filho em suas costas e num ritmo lento, continuou caminhando, sem direção, sem destino, queria apenas ir o mais longe possível daquele lugar.
Após muito caminhar, encontraram uma outra casa, o menino estava assustado e não queria entrar, mas não tinham muitas opções. Entraram no quintal da casa que outrora havia sido azul pelo portão de madeira podre, que se desmanchou ao toque do mais velho, a passos vacilantes subiram os degraus até a varanda e em seguida finalmente adentraram na casa. O local já havia sido todo saqueado, não tinha quase nada na sala. Com o filho grudado a si, o pai foi até a cozinha e vasculhou os armários e gavetas em busca de qualquer coisa que pudesse servir de alimento e um novo meio de fazer fogo, já que havia perdido seu isqueiro. Infelizmente não encontraram nada.
Subiram até o segundo piso, onde em um dos quartos encontraram alguns cobertores puídos e fedidos, não era o esperado, mas já era alguma coisa. O pai colocou o filho na cama, que já havia parado de chorar, mas agora seus olhos pareciam mortos, ele estava em choque. Tentou se afastar do filho para poder ir em busca de alguma comida pelas casas ao redor, mas foi impedido pelo menor. Não tendo outra saída, se deitou com o filho na cama e o abraçou contra seu peito. Ficaram naquela posição por algumas horas, até o pequeno ter finalmente dormindo.
O dia já estava no fim, o pouco do sol que era visto iria sumir em breve, por isso precisava ser rápido. Sem fazer barulho, se soltou do aperto do filho e o ajeitou na cama, esperou um pouco para ver se ele não acordaria e saiu do quarto em direção às casas vizinhas, precisava encontrar comida e água. Por sorte, na última casa que olhou quando o sol já havia se posto, encontrou uma lata de pêssegos em conserva e meia garrafinha d’água. Viveriam por mais um dia.
Voltou para a casa onde o filho estava e o encontrou ainda dormindo. Deixou o que encontrou junto a bolsa que por sorte não havia tirado das costas antes de entrar naquele porão e voltou a se deitar com o menino.
Na manhã seguinte, bem cedo os dois já estavam de pé e se preparando para continuar a jornada. O pai retirou o mapa aos frangalhos que tinha e o colocou sobre a cama, planejando para onde iriam a seguir. Todo o tempo o menino estava quieto, não havia dito nada. Só falou quando o pai pediu se ele estava bem e ele disse que sim e em seguida perguntou se aquelas pessoas que encontraram no dia anterior iriam morrer. O pai não podia mentir, ou negar, naquele mundo onde viviam, na sua atual realidade, a verdade era sempre melhor, mesmo que fosse dura e cruel, então ele confirmou.
Para surpresa do pai, o pequeno falou que queria estar com o outro pai e quando questionado se ele queria estar morto, ele balançou a cabeça em confirmação, segundo o pequeno seria melhor do que aquilo. O pai abraçou o filho com força e pediu para ele nunca mais repetir aquilo. Ele não podia desistir e se seu filho, que era a sua força desistisse, ele não teria mais nenhum motivo para continuar em frente.