
Capítulo 4
O homem dormia tranquilamente ao lado do seu grande amor. Sentia-se amado. Protegido. Sua vida era perfeita. Nada poderia atrapalhar sua felicidade, lhe tirar sua paz. Até aquele momento.
Ele acordou assustado por causa de um barulho ensurdecedor. O relógio marcava 03:47 da madrugada e foi exatamente nessa hora que todos eles pararam. De repente aconteceu um longo e intenso clarão, como se algo tivesse atingido a terra ou talvez fosse uma explosão de alguma bomba e após isso uma sequência, que parecia interminável, de pequenos tremores, como se fosse um terremoto sem fim, mesmo que onde morassem não acontecesse aqueles fenômenos.
Ele nunca soube o que aconteceu de verdade, qual foi o motivo do mundo ser destruído, não sabia se era obra dos próprios seres humanos ou de alguma coisa de fora da terra, ou o próprio apocalipse.
Cerca de um ano depois as montanhas, florestas, matas, bosques, tudo o que era verde começa a queimar e não parou mais, até consumir tudo, transformando a paisagem em uma chama eterna que não se apaga. O mundo já não era mais o mesmo, não tinha mais cor, não era mais belo, não tinha mais vida.
O homem observava com atenção e emoção, seu amor dedilhava as teclas de antigo piano como se fosse tocar alguma melodia, fosse ela triste ou alegre. Seu amor não tocava desde que tudo aquilo começou, mesmo que implorasse não cedia nem mesmo com um par de olhos brilhantes e profundos olhando com ternura. Sempre respondia que não via mais razão para tocar, não havia mais ninguém para apreciar qualquer música, e mesmo se houvesse, era o mesmo que tocar algo enquanto um navio afundava, no caso, enquanto o mundo queimava.
[...]
O homem solitário acordou do sonho, ou melhor, das lembranças de um passado que agora parecia tão distante, quase como se tivesse acontecido em outra vida, ao ouvir batidas em sua porta. Pensou seriamente em ignorar, fingir que não estava em sua humilde residência, ou abrigo, aquele lugar nem sequer poderia ser chamado de lar. Lar era algo que não existia mais. Porém não era como tivesse para onde ir, e sabia que seria pior se não abrisse. Poderia não ser mais o líder daquele grupo, mas ainda devia respeito, e isso significava basicamente, atender quando o chamassem, se questionar. Se pudesse comparar sua antiga vida com a atual, poderia afirmar, com toda certeza, que não havia mudado muita coisa, ainda tinha a quem responder, normas a seguir, regras a obedecer e seria punido caso não as obedecesse. A única diferença era que as punições por infringir alguma delas, eram bem piores.
A passos lentos e sem nenhuma vontade e com o humor de um leão prestes a atacar sua presa, foi em direção a porta, atender quem quer que estivesse batendo. Assim que a abriu deu de cara com seus dois dos seus antigos subordinados, seus antigos amigos. Estranhou por estar apenas os dois homens, sem a mulher que sempre os acompanhava e quando perguntou aonde ela estava foi informado, sem rodeios, que ela havia morrido. Infelizmente não de causas de naturais, de fome ou de qualquer outra enfermidade proeminente da situação atual do planeta e sim porque foi pega por um grupo de selvagens, não que o grupo ao qual pertenciam não estivesse bem próximos de se tornarem também, mas esperavam não chegar ao nível daquele grupo que havia pego a sua amiga, jamais se tornariam canibais.
O homem pediu como aquilo havia acontecido e porque ele não foi avisado antes, os visitantes disseram que aquilo não era mais do seu interesse e que foram ali apenas por terem sidos amigos e por terem um grande apreço e que ele merecia saber do acontecido, pois sabiam do carinho que ele sentia pela mulher, por todas as vezes que ela o ajudou.
O homem solitário pegou um dos antigos companheiros pelo casaco com brutalidade, o trazendo para perto, até ter seu rosto a centímetros do seu, estava furioso pois eles pareciam não se importar com a perda de uma amiga querida. Ele os acusou de não terem a protegido como disseram que fariam e aquele que estava sendo segurado disse que aquilo aconteceu porque o outro havia os abandonado primeiro, os deixou depois de prometer que sempre ficariam juntos, não importasse o que acontecesse. Ficariam juntos, se protegeriam, se ajudariam sempre, mas o homem solitário foi o primeiro a quebrar aquela promessa. Disseram também que o atual líder, apesar de não ser um tirano como aquele que veio antes do homem à sua frente, ele não se importava muito com quem morria ou vivia e não se envolveria em disputas e briga e sem sentido, mesmo que fosse para vingar a morte de um dos seus, não como sabiam que o homem solitário faria. Preferia ficar neutro naquelas disputas por poder. A única coisa que fazia era defender sua região caso fossem atacados e exigia que toda nova pessoa que aparecesse ali fosse levada a ele, como já havia acontecido antes. E como o acontecido não foi nenhum dos motivos citados, a mulher não havia sido morta num ataque ou invasão, permaneceu impassível, fingindo que nada havia se passado.
E ali estava o verdadeiro motivo daquela visita inesperada, eles queriam vingança e precisavam de ajuda. Eles se importavam com a amiga que foi tirada deles, sentiam a sua falta, sentiam culpa por não terem a protegido. Eles pareciam que eram os únicos, talvez os últimos que ainda possuíam algum tipo de sentimento e um senso de justiça. Senso este que poderia ser distorcido, até mesmo primitivo, onde a justiça só seria alcançada através do "olho por olho, dente por dente". Mas aquele era um novo mundo, a antiga justiça jazia em meios as cinzas das florestas queimadas, não havia mais certo ou errado, ética ou qualquer outra regra que devessem seguir para se manterem corretos e íntegros. A única regra, a única lei que seguiam era: não existia lei nem regras.
O homem soltou finalmente o amigo e o encarou no fundo dos olhos e pediu apenas, quando e onde.
Mesmo correndo o risco de serem pegos tanto pelos inimigos quanto pelo Líder, caso algo desse errado e recebessem represálias por aquele ato que poderia ser considerado impensado ou suicida, os três foram atrás daqueles que ceifaram a vida de sua amiga. O homem solitário era inteligente, esperto e muito sagaz. Sabia organizar planos quase sempre sem falhas e com altas taxas de sucesso. Então não foi surpresa eles terem conseguido com certa facilidade eliminar o grupo inimigo e vingar a amiga.
O grupo ‘inimigo’ era considerado grande. Tinham cerca de quinze pessoas. Nenhuma sobreviveu. Eles eram apenas três.
De noite, em sua cama, o homem solitário deixou sua mente vagar para os momentos felizes que teve com a sua família, numa vã tentativa de tentar tirar da cabeça as imagens do massacre que havia feito horas atrás. Havia homens, mulheres e jovens naquele grupo apesar de não poder os considerar como seres humanos, pelo menos na visão do homem, pois quando começam a caçar outros seres humanos e a se alimentar deles eles perdem totalmente sua humanidade. Pensava no que seu amigo havia dito, que havia os abandonado, ou deixado para trás e aquilo trouxe memórias as quais queria esquecer.
Eles não foram os primeiros que o homem solitário havia abandonado, que havia deixado para trás. Mesmo ele tendo motivos para ter cometido tal ato, sabe que aquele abandono foi o mais cruel de todos e o único que se arrependia amargamente e que carregaria a culpa até sua morte.