
O novo ex-marujo
Quase no último degrau, James piscava intrigado com o céu.
O alaranjar memorava um condenado a morte, clamando clemência perante a fogueira.
A fumaça tomava proporções...
Baforadas em nuvens negras.
Estranhamente, conforme caminhava, jurava sentir o cheiro de carne queimada enquanto a embarcação balançava, mais lenta.
Mais lenta...
Mais lenta.
Arrumando o lençol vermelho em volta do pescoço, o novato se julgava um excelente marujo. Estava no cargo há menos de cinco minutos? Sim. Contudo, quem precisa de instrução quando nascia com vocação? O rei sempre repetia: Você possui um talento inato para qualquer coisa que queira fazer. Logo, por que comandar um navio seria diferente?
Talvez, marujos não comandassem...
Então, quais outras atribuições existiam por ali? Sirius havia dito que Remus não era bem um marujo. Ou não era só um marujo? Sinceramente, ele não prestava muita atenção pela preocupação com o arisco ouriço-do-mar.
Percebendo-se perdido, atrás de qual porta Severus estaria?
Encontrando-se na coberta do meio, onde ficava a cozinha e outras repartições com equipamentos de carpintaria, aquele navio parecia maior conforme ele explorava. Certamente, somente o riscar da proa dentre as nebulosas nuvens, intimidava. De certa forma, assim como a Sirius, a fera flutuando as águas oceânicas poderia ser definida como ambiciosa e destemida.
O terror de qualquer inimigo.
Empurrando uma das portas, o sorriso se desfez quando vários marujos reunidos num jogo de cartas viraram pra si, mal-humorados. Extremamente sem graça, o príncipe recuava em passos ré. Reparando bem, o deserdado Black guiava um navio funerário? Cada tripulante parecia estressado demais por tentar fazer os mortos permanecerem deitados no caixão. E, pelos olhos caídos, em amargura e cansaço, eles levantavam, levantavam. Talvez, por isto o cheiro de carne queimada... Havia sido o único jeito de exterminá-lo.
Engolindo a saliva, hesitante, ele não sabia se queria fazer carreira naquela embarcação.
O balançar o enjoava.
Ele nem gostava de frutos do mar.
Deste modo, farejando o ar, permitia o vento lhe conduzir ao seu destino.
Sorrindo sozinho, imaginava qual o rosto Severus faria quando lhe encontrasse?
Descendo mais escadas, redes e bagunçadas camas. Numa delas, lençóis empilhados aguardando a troca.
Pegando um, o maldito e viciante perfume.
Olhando em volta, em qual daqueles panos brancos o rabugento escorpião dormiria?
“Severus”. Até em pensamento, o nome soava doce.
Poderia sentar e esperar, já que, uma hora todos deveriam descansar ao fim do...
Negros cabelos cortavam o vento de relance, adentrando o compartimento afrente. E, por mais breve que fosse esta menção, indescritível felicidade se apoderava do marinheiro como um canhão, o qual lhe atingindo o peito, perfurava as entranhas, arremessando-o distante. Esquecendo como respirar, o rosto queimava em nervosismo, desconcertando-o todos os sentidos.
“Calma, James”. Repetia pra si, em vão. “É só um garoto, dah! Você só quer ajuda-lo a fugir daqui. Um local ruim e nada saudável. Você é um príncipe e sempre tá pensando em...”.
DROGA!
Desistindo, expirava, falsamente mais calmo.
Um, dois, três.
Três, dois, um.
Finalmente, indo até o rapaz, buscava afogar a crescente alegria lhe tomando os lábios de modo bobo.
Poxa!
Aquela inquietação o invadindo, estragava completamente a almejada indiferença ensaiada para responder o “Não por isto” quando o garoto lhe agradecesse com a vida pelo resgate. Juntos, eles fugiriam e começariam uma vida em alguma cidade selvagem. Talvez, algumas crianças. Eles poderiam fundar um hospital filantrópico e...
Será que Sirius se importaria se eles simulassem uma fuga?
Aliás, “e se...?”.
E se Severus não aceitasse por conta daquele desgosto pela nobreza. Racionalmente, deveria ser um blefe. Quem não optaria por ganhar café na cama, possuir todas as espadas e regalias... Embora houvesse os jantares e compromissos entediantes, só um louco...
Se bem que, recordando a desesperança quando ameaçado pela faca de pão, ele poderia ter se apaixonado por um atraente pirata alucinado. Por isto, seria melhor mencionar o assunto quando eles estivessem bem longe dali.
E, pisando firme ao levantar, o príncipe arrancou um pedaço de lençol.
Tropeçando entre as camas enfileiradas, ONDE ESTAVA O MALDITO ESFREGÃO?
Sem encontrá-lo, quem precisava de esfregão?
Só um balde e...
Recuando, o líquido amarelo parecia suspeito.
Olhando em volta, próximo ao pé da cama, havia uma garrafa pela metade.
Perfeito!
Ele tinha um pano e, retirando a rosca para cheirar, vodka?
Teria que servir.
Assim, sorrindo extremamente feliz, prosseguia casualmente até onde a absorta figura estava.
As mãos suavam.
O coração havia retornado ao peito somente para entalar na garganta.
Droga...
Parando a porta, James permaneceu ali por um par de segundos. Contemplava aqueles olhos anoitecidos, os lábios uniformes em reta linha. Conforme o menino limpava as armas, os cabelos desciam lhe ocultando o rosto como cortinas abaixadas, as quais privavam o povo do grande espetáculo teatral que não havia aprendido a sorrir.
E sem empecilhos, grades ou malditos cadeados, Severus estava ali.
Bem ali.
Sozinho, acariciado pelos raios de sol, os quais lhe amarelavam a rabugenta testa, não ultrapassando a linha da sobrancelha. Suspirando, James não negava a tristeza pelas ataduras enfaixando o braço direito até o cotovelo. E, apesar da possível dor, em pé defronte uma estreita estante de madeira, Severus executava com empenho a tarefa de recarregar e limpar velhas pistolas uma a uma.
- Preparado para que a gente se torne comida de peixe? – James questionou casual, parado a porta. A ansiedade lhe travava os joelhos. Dando um passo dissimulado, o qual pareceu robótico aos olhos de quem observava, continuou desconcertado. – Vejo que até conseguiu as armas para a nossa fuga.
Deixando a flanela sobre a madeira, o intrigado olhar piscou algumas vezes buscando reconhecer a excêntrica figura.
Seria...
Não.
Aliás, como ele havia chegado até ali?
Apesar dos cabelos rebeldes recém cortados e a barba feita, o miserável sorriso não o permitia se enganar.
Mordendo o lábio inferior para não sorrir em comemoração, o coração errou a sincronia de batida ao confirmar: Era James.
Mas...
Não mais um prisioneiro maltrapilho, agora, utilizava botas até o joelho, calças negras e uma camisa, a qual oscilava entre o amarelo e o encardido. Piscando algumas vezes, aquele condenado tinha sido admitido pela tripulação?
Tomado por grande nervosismo ao ter os sonhados olhos sobre si, o novato demostrava as peças de trabalho, numa atrapalhada desculpa:
- Desculpa, mas aqui teria um serviço para que eu possa meu fazer o esfregão?
- Eu não entendo.
Tossindo para limpar a garganta, James elucidava:
- Eu meio que preciso de um esfregão para limpar o convés.
- Não. – Severus continuou. Até porque qual a razão para alguma alma aceitar por boa vontade integrar a tripulação daquele navio? Será que o viajante estava tão desconexo do mundo que não conhecia os boatos acerca das sombras? Ponderando, - Por que você está aqui?
- Bem... percebi que só aqui... eu conseguiria vingança contra o maldito, - Tendo a atenção daquela pessoinha, James se embaraçava a cada passo. – Contra o maldito que matou...
Defronte ao rapaz, parou.
Joelhos não respondiam, totalmente congelados.
Até a ponta dos dedos do príncipe suavam.
A mente gritava: “Por Deus, não estrague tudo! ”.
Fechando os olhos por um breve momento, aspirava o agradável cheiro ao perceber que Severus era alguns centímetros mais baixo. Uns seis/dez?
Não importava.
O garoto tinha o tamanho perfeito para ser envolvido em abraços quando discutissem.
E, aquele rosto, pálido como pérolas marinhas.
As sobrancelhas cheias e uma tênue linha da boca tão...
Trêmulo, James piscou algumas vezes, percebendo o raciocínio se esvair. Vasculhando dentre os confins da mente, buscava a lição básica aprendida na infância sobre como redigir frases. E, atrapalhado, balbuciou:
– Contra o maldito que matou as minhas... Esposas gêmeas.
- Gêmeas?
- Sim.
- Você tinha duas esposas?
- Sim. – Ligado no automático, o conselho do mais velho ecoava nas paredes cranianas, bem distante. Meneando a cabeça em positivo, ludibriado pelas rachaduras daqueles lábios sem cor, divagava. – Grávida.
- Ao mesmo tempo?
Perdido nas próprias palavras, James só assentiu.
- Nossa... Mas, - Percebendo o quanto aquele novo marujo estava próximo, Severus sentiu certo desconforto, repulsa?
A respiração lhe faltava e, somente a projeção daquele marujo sobre si...
Sem aquelas grades, ou empecilhos...
O tempo não estava quente para que cada pedaço de sua pele incendiasse, tornando tudo tão abafado e...
Dando outro passo pra trás, esbarrava no armário, um empecilho para a almejada fuga.
Engolindo o nervosismo, comentava:
- Mas... Agora você pretende limpar o convés com um pano e rum? – Tocando-lhe o peito para afastá-lo, rodopiava para o lado. Deixando a limpa arma sobre a superfície de madeira, pegava a próxima.
- Não. - ... Sem entender o motivo para o menor almejar distância, explicava natural. – Quer dizer, inicialmente, sim. – Refletindo, embora pouco tivesse passeado por ali, sentia a energia pesada. Talvez, nem os amigos estivessem em segurança. Um tanto irresoluto, – Eu não sei, mas esta aventura parece uma lagoa rasa demais para mergulhar.
- Tão rasa, que logo o Caronte assume o comando.
- Mas, este Caronte não leva os mortos para o Hades?
Severus sorriu anasalado, entre a descrença e a fadiga. Sem parar o serviço, continuava:
- Tem algum tempo que a escuridão reivindica o navio sempre que paramos em algum porto. Ela sempre leva uma parte da tripulação e nossos suprimentos estão escassos. Temos feijão para cinco dias e há 30 dias não temos medicamentos e alho. O capitão acredita ser um castigo por perseguir estrelas cadentes. – Cessando o limpar, se o Sirius não houvesse decidido se aventurar pelo mar, a senhora Black não iria mexer o mundo para pará-lo com medo da mancha sobre a reputação da família. Deste modo, Peter não teria recebido a bússola e ele... Torcendo a boca, refletia. – E, ainda bem que ele pensa assim, por que é. Ele é o único responsável pela tristeza ser o leme nos conduzindo a fatalidade.
- Talvez, o capitão tenha sido movido pelo desespero.
- Sim, não o culpo. Afinal, só homens sem sonhos e sem possibilidades resolvem se aventurar pelo mar.
- Não concordo. Se ninguém se arriscar em buscar tesouros, como vamos encontrar o tracejado caminho para a felicidade?
- A felicidade não existe. – Severus retrucou rapidamente.
- Como não? – Percebendo o riso em escárnio. – Se não existisse felicidade, por que as pessoas insistiriam em acordar todos os dias? Por que fariam refeições? Ou lutariam contra grades e doenças.
- Por que não tem outra alternativa.
- Sempre existe alternativa, Severus. – Encostando as costas contra a beira da mesa, James insistia. – Por isto, vamos descer no próximo porto e começar uma nova vida numa ilha proxi...
- Por favor, - Fechando os olhos, o calmo pedido repleto de cansaço. - Pare.
- Ontem à noite, eu disse que te tiraria daqui.
- Só esqueça este “ontem”. – Baixando o pano, a franqueza. – Aliás, desculpa pela noite passada.
- Por quê? Por você não ter aparecido em meus sonhos por está ao meu lado?
- Agradeço pela sua atenção, mas... – Voltando a colocar as redondas balas dentro da negra arma, – Agora que você é um marujo. Devemos nos afastar.
- Então, eu não quero mais ser um marujo.
- E quanto a sua gloriosa vingança?
- Bom, ela já está morta, então eu desisto. Minha prioridade é te provar que podemos ser feliz longe deste navio. – Percebendo o levitar de sobrancelhas em desafio, o príncipe advertia. - Nem que eu tenha que amarrá-lo enquanto dorme e arrastá-lo pra bem longe do mar. Não vou permitir que estrague com a única vida que você tem.
Mediante o revirar de olhos, James se indignava:
- Severus, por que você escolhe permanecer aqui se...
- Eu escolho? – Severus interrompeu, angustiado.
Sério que a culpa era dele por permanecer ali?
Francamente...
Conferindo quantas armas faltavam, talvez devesse adiantar e lavar as panelas do almoço antes que o cozinheiro o gritasse. Até por que, não queria continuar ali.
Escutar sobre felicidade, nova vida e outras baboseiras... O que o imbecil pretendia?
Meneando a cabeça em negativo... Recordava:
- Como pode falar sobre ir embora assim tão fácil? Não leu o código pirata antes de assinar?
- Um código “pirata” não pode ser levado a sério? – Brincou, mas o descrente rosto não riu, até mesmo franziu o cenho com certa preocupação. Corrigindo, - Ouvi algo sobre mil libras. Isto deve ser o que? Duas vacas e um lote?
- Sim. Eles colocam um valor tão surreal para que ninguém possa sair. – Guardando a arma, não conseguiu pegar a próxima. Até porque mesmo quando ele conseguisse cem ou um milhão de libras, a liberdade consistia numa ilusão. Colocando a suja flanela no esverdeado lençol em torno da sua cintura, um longo suspiro fatigado evidenciava o quanto o jovem não queria permanecer ali. – De qualquer modo, para o seu bem, eu não o conheço.
- Prazer, eu sou James Potter. – Rodopiando na direção do rapaz, sorria ao se apresentar novamente. - Um ex-marujo ainda preso neste navio.
- Você não será bem visto quando... Pensando bem, até o meu senhor já conseguiu inimizades por... – Baixando o olhar, coçava o cotovelo enfaixado. Vagamente, sem jeito, tinha dificuldade em falar sobre aquele assunto. – Escravos, sabe? Eles acham que não temos fidelidade a causa. Somos, eu acho, objetos animados que, se comprados por outros, não temos porque guardar segredo ou... Sei lá, as correntes que me prendem, condenam, marcam... são mais dos que as que consigo enxergar. E, o meu senhor... – Fitando mais uma vez, o olhar firme clamava num desespero oblíquo. – O melhor, para nós dois, é que você não fale mais comigo, James.
- E como espera que eu seja feliz ao atender um pedido tão egoísta?
- Eu não espero. Como eu disse...
- Eu vou te provar que a felicidade existe. – James interpôs, sério.
- Como garantiu que sairíamos daqui?
- E vamos. – O príncipe assegurou, firme. A vida tinha momentos tristes, mas existiam doces, borboletas, grama, bebidas, orvalho... Amor. Por isto, ele se empenharia em mudar aquela cabecinha audaciosa. Ainda quando as trevas lhe fossem uma excelente tonalidade para os olhos, elas não iriam lhe dominar os pensamentos. Tornava-se uma questão de honra não permitir Severus desistir. Determinado, – Seja durante a madrugada ou pagando os milhões de libra, vamos sair daqui. Isto eu lhe garanto.
- Nem que seja como comida de peixe? - Forçando um riso num mínimo repuxar de lábios, Severus gostaria de possuir um centésimo daquela fé. Baixando os olhos perante a contente confirmação repleta de orgulho, se James soubesse um milésimo do que ele sabia, aceitaria que a vida era trabalhar, aguentar espinhos, engolir lágrimas com farinha e arrastar a existência. Incerto quanto a saída, o rapaz acrescentou uma última coisa. – Os esfregões ficam na cabine à esquerda, senhor ex-marujo.