
Presente de Despedida
A tempestade afora o navio se assemelhava ao conflito na mente de Severus. As sucessivas gotículas agitavam o mar, ameaçando virar o grande navio. E, para piorar, assim como os pensamentos enevoados, elas pareciam ganhar força a cada nova e mais alta onda.
Nestas horas, o capitão se trancava na cabine principal e tudo permanecia deserto. Por isto, nenhum outro barulho se escutava além do medo proporcionado pelo aguaceiro junto ao vento. Certamente, ninguém dormia, como também, não se atreveria a atravessar para as partes baixas do navio.
Utilizando uma lona sobre o corpo para escapar de mansinho da sala onde deveria permanecer confinado, os pés congelaram mediante a porta do galpão de suprimentos. Escondendo a proteção atrás de alguns barris amontoados, batia o dedo nervosamente contra o metal enferrujado da lamparina, refletindo se deveria ou não descer.
Sinceramente, era bom conversar com o senhor Potter.
Alguém que... Suspirando triste, ele só o tratava como um igual por não conhecer as amarras lhe marcando os punhos? Engolindo a vontade de chorar para não competir com a forte chuva, Severus almejava adentrar naquela mentira construída pelos dois nem que fosse por uma última vez.
Uma última vez.
Um adeus.
Embora, Severus estivesse convencido sobre não se importar com a solidão, aqueles olhos atentos a cada uma de suas palavras, gestos, respiração... Parecia surreal a vitalidade com que James Potter inovava com provocações, sugestões, histórias.
Talvez, ele só se sentisse igualmente sozinho.
Ainda assim, aquele insuportável desconhecido tinha o poder de lhe incendiar com a felicidade, devolvendo-lhe o significado para a miserável existência.
Por conta disto, nos últimos dias, Severus se sentia vivo e ambicionava aquela sensação outra vez.
Segurando a maçaneta, o ferro em torno do punho esquerdo pesava.
“Vivo? ”. Repetia pra si, em amargura, em escárnio.
Há muito tempo, ele não estava vivo...
O peito só contraía.
A respiração? Involuntária.
A maldição pairando sobre si não o permitiria morrer. Assim, afogando-se constantemente na lama do sofrimento, ele não iria parar de respirar tão facilmente.
Respirar.
Expirar.
Um novo relâmpago iluminava a maçaneta.
Assustado, o objeto acolhido por uma única mão vacilou por um breve instante. Coçando o cotovelo esquerdo enfaixado em panos sujos, que mal teria uma despedida?
Uma “boa sorte”.
“Foi bom te conhecer”.
“Realmente, nunca quero o esquecer, pois, você...”. Não. O sensato seria retornar antes que o Peter acordasse, mas... O coração apertava quando imaginava aquela partida sem uma plausível explicação sobre ter desaparecido. A ausência durante os importantes jantares, cafés-da-manhã. E...
Se bem que...
Não importava.
Soltando a maçaneta, um trovejar o sacudia como um amigo, motivando-o a entrar e agradecer com um gesto, um presente...
Presente?
Um presente de despedida.
Pessoas normais costumavam fazer isto. Ainda mais depois de tantos jantares. Aliás, até alguns piratas trocavam presentes entre si. Então, não seria ruim se ele presenteasse aquele prisioneiro.
Sim.
Uma perfeita desculpa para rever o Potter uma última vez.
Espreitando a cozinha, procurava alguma garrafa de vinho, encontrando somente tequila. Colocando a empoeirada garrafa acima do fogo, observava o líquido amarelo, memorando já ter escutado o quanto aquela bebida servia para firmar inesquecíveis momentos cheios de felicidade e gargalhada.
Bom, mas o prisioneiro gostava de rum.
Retirando a tampa e aspirando o péssimo cheiro, todo o álcool deveria ser parecido, certo?
Escondendo na parte interna do surrado casaco, amanhã, por aquele mesmo horário, James seria uma recordação. Por isto, nesta última noite, saciaria a curiosidade por suas histórias, experiências e... Se estava frio, por que a palma da sua mão transpirava e a agitação em seu peito parecia querer abri-lo?
Em passos leves, espreitava nas sombras, temendo ser apreendido.
Aprisionando o máximo de oxigênio nos pulmões, sufocava o pouco de coragem. Descendo as escadas junto ao amenizar da chuva, percebia o homem distraído. Mantendo as costas sobre as grades, este observava o tímido lunar perpassar as velhas arestas de madeira junto as gotículas de água gelada.
Para Severus, isto até soava refrescante depois de tantos dias quentes. Apagando a mínima iluminação, deixou a lamparina sobre uma das caixas de suprimento. Reparando-o de longe, o melhor seria não interromper aquele curto descanso.
Sim.
Era melhor assim.
Estava tarde.
E eles possuíam caminhos distintos. Como também, olhando para o objeto furtado, teria problema caso alguém descobrisse...
- Finalmente, livre? - Questionou James, sem se mover.
O algoz permaneceu em silêncio, apertando forte o gargalho de vidro com as mãos transpirando em hesitação, nervosismo, alegria? Ansiedade.
"Livre". Baixando os olhos, refletia sobre a palavra tão pequena e longínqua.
Embora o condenado tivesse destinado a uma sina parecida, Severus não se sentia preparado para revelar as próprias algemas. Por mais alguns minutos, ele só queria permanecer naquele mundo onde todos podiam falar, onde não existia castigos, torturas, escravidão.
Sem coragem para encará-lo, informou:
- Amanhã chegaremos ao porto. Eu... Eu lhe desejo uma boa sorte.
James não respondeu.
Mordendo os próprios lábios, controlava a impulsividade lhe gritando para levantar e questionar por onde aquele infeliz tinha andado por todos aqueles dias.
O QUE O IDIOTA TINHA NA CABEÇA?
QUEM DISSE QUE ELE PODERIA, SIMPLESMENTE, DESAPARECER?
James tinha tanto ódio pelo descaso, contudo, recordando a negritude daquele olhar a ponto de quebrar, temia gritar e afastá-lo até mesmo daqueles confusos sonhos. A tinta na moldura poderia escorrer e, assim como lhe apareceu carregando uma bandeja, o maldito algoz poderia se tornar somente outro borrão.
Fechando o punho por reprimir à vontade, este esquentava pelas chamas inatas a cada milímetro de sangue em sua corrente sanguínea. Boatos que as crianças daquela família eram expelidas de um vulcão, por isto, até aquele dia, o jovem príncipe raramente foi contrariado ou precisou se controlar. E, agora, de modo miserável, James passava a mão na areia abaixo de si.
Se não mantivesse o controle, o dragão geracional poderia encontrá-lo. E ele sabia que o mal caráter o levaria dentro da boca para o maldito casamento arranjado. Como também, ele precisava seguir com a mentira sobre ser alguma espécie de comerciante para que Severus não se afastasse.
Ainda mais, depois de tantos dias distantes.
Por que o algoz que antes refletia morte, neste momento, só tremeluzia como fumaça?
Se houvesse alguma outra forma de destruir aquelas grades? Queria tanto segurá-lo até conseguir uma reposta adequada e... Soltando um baixo sorriso anasalado, ele nem mesmo sabia cantar para permanecer naquela condição de passarinho.
Escutando o farfalhar das botas nas secas palhas, arriscou desinteressado:
- Seria louco se eu desejasse passar mais alguns dias presos somente para receber as suas visitas matinais? – Mediante o silêncio, prosseguiu divertido. – É estranho como uma mera presença confere sabor a pior das minhas refeições.
- Eu não tenho a chave da cela.
- Eu sei. – Suspirando nostálgico para amenizar as chamas em si, fitava a tempestade afora daquele navio. Tão gelada. Tão molhada. – Você já me falou, Severus.
Sem graça, o cabisbaixo rapaz não entendia como as palavras de um maltrapilho tocavam seu coração como se fossem baguetas arrancando som de um tambor. Fechando mais os dedos suados em torno do gargalho, seria receio? Curiosidade?
Permitindo-se dar mais alguns passos, compartilhava o duro chão.
Nesta madrugada, ao contrário dos dias anteriores, James permaneceu fitando a bagunça camuflando a pouca luz metálica. Pressentindo incomodá-lo, Severus se julgava um idiota por ter vindo até ali. E, talvez pelo vento se tornando mais agressivo e adentrando o local, utilizava as próprias mãos aquecendo os antebraços para não congelar.
Após um par de segundos, James pontou:
- Você não parece feliz sendo um pirata.
- Possivelmente.
- Então, o que te impede de vim comigo? – Buscando conter o crescente nervosismo, o príncipe disciplinava a voz, a angústia. Fechando os olhos para usufruir daquele cheiro único, por que o imbecil iria lhe dizer um “não”? Umedecendo os lábios para manter a calma, propunha. – Eu te ajudo a comprar uma casa ou iniciar alguma atividade por hobby... Se não quiser fazer nada, também podemos dar um jeito e....
- Eles vão te vender, Potter.
- Não vão... Eu... – Recordando a antiga desculpa. – Eu vendo coisas. Eu posso me comprar e depois te comprar.
- Não é assim que funciona. – Agradecido pela boa intenção, um mínimo riso delineava os tristes lábios. – Sabe, eu nem sou um pirata como você pensa. – Fitando a garrafa, entristecia-se por escapar daquela ilusão. No fim, o desconhecido não iria deixar nada importante para trás.
Franzindo o cenho com o amargor da frase, continuou:
– Alguém já me comprou. – Permitindo que uma gota de chuva lhe escorrer pelo olhar, relatava. – Há muito tempo, até. Recentemente, eu fui repassado numa negociação. Hoje, o meu senhor navega neste navio. Por isto... – Percebendo o prisioneiro virar, confuso, o algoz concluía num forçado sorriso sem nenhuma emoção. – Sim, eu... O ilustre convidado que você recebeu por tantos dias em seu palácio, é somente um...
- Severus...
- Um escravo.
- E porque eu não vejo um escravo?
- Por conta da escuridão?
- Não, Severus! Você é o homem mais irritante, insuportável. – Percebendo-o revirar o olhar, James amenizava. – Inteligente, perspicaz que eu conheço. – Notando o empalidecido rosto mais triste que o habitual, o príncipe fechou o punho em torno das grades. QUERIA TANTO DERRETÊ-LAS! Mas... – Você é a pessoa, da qual, nunca quero me afastar e jamais vou esquecer.
- Obrigado, eu acho. – Utilizando o dorso da mão para, discretamente, limpar uma inoportuna gotícula lhe umedecendo o olho esquerdo, Severus piscou um pouco apreensivo pelo peso da declaração. Buscando fugir daquele assunto, desconversou. – Eu espero te esquecer com três dias. – Contando nos dedos, - Na próxima quinta.
Escutando a evidente descrença no sorriso anasalado daquele convencido cativo, o suposto algoz engoliu a saliva com muita dificuldade. Fazendo menção em levantar, complementava:
– Mas, de verdade, Potter... – Mastigando as próximas palavras, temia se tornar ainda mais patético se agradecesse por não ser tratado como um desprezível escravo. Também, queria agradecer por ter conseguido voltar a sonhar com um mundo distante dali. Com aquele navio em chamas. Aquele Potter, ainda que chato e detestável, concedia-lhe frequentes dose de esperança. Recordando a garrafa para preencher o vazio promovido pela censura, transpassou pelas grades. – Um presente.
- Já é Natal?
- Não, bobo. De despedida.
“Despedida? ”. Pondo-se de pé num pulo, James não aceitaria que aquela fosse a ÚLTIMA VEZ QUE ELES SE ENCONTRAVAM. Claramente, eles estavam destinados. Senão, por que raios o seu coração parecia uma saltitante gazela feliz?
E, para piorar, ele nem conseguia enxergá-lo por conta da escuridão se apoderando do navio.
Nem mesmo conseguia escutá-lo pela tempestade sobressaltando as vozes.
Nem mesmo poderia abraçá-lo...
Sequestrá-lo dali.
Escravidão.
Era surreal pensar que Sirius estivesse mantendo pessoas escravizadas em seu navio. Certo, os Blacks eram conhecidos por cultivar aquela desprezível prática por séculos, sendo uma das primeiras famílias a financiar o tráfico, no entanto, aquele ato insano não combinava com a pirataria.
Aliás, comercializar pessoas?
Não combinava em nada com Sirius.
Ele sempre foi tão rebelde e... Nem animais mereciam permanecer aprisionados, quanto mais, HUMANOS? Perpassando as mãos entre os ferros, James segurou o algoz pelo punho.
Soltando a garrafa ao chão por reflexo, Severus murmurou em dor quando surpreendido pela firmeza daquele toque. Baixando o rosto, cerrava os dentes. Não se arrependia de confiar naquele Potter, afinal, foi num ato assim que eles se conheceram. Contudo, a força empenhada fazia o braço, antes já machucado, agora latejar em dor.
Assustando-se pela frieza do ferro em torno daquela quente pele, o coração do príncipe cortava ao perceber o quanto aquele jovem tremia.
Furioso, eles deveriam ter a mesma idade.
Que bosta de vida aquela criança estava submetida?
Escutando-o choramingar, soltou, apressando-se arrependido:
- Desculpa, eu só precisava saber se você era mesmo real?
- E eu derrubei a sua garrafa. – Severus comentou triste, segurando de leve o braço machucado, trincava os dentes para esquecer a crescente agonia advinda do magoado. Mediante o pedido de desculpa, o triste rapaz confortava. – Não se preocupe. Só foi repentino e este meu braço está meio dolorido.
- Primeiro seu tornozelo, agora seu braço. Você não se machuca bastante?
- Devo ser desastrado. – Confessou, dando de ombros. Reparando a luz iluminar os amarronzados cabelos acastanhados, não sabia se aquele prisioneiro conseguiria fazer mal a alguém. Receoso, estendeu a palma da mão, repousando sobre as grades. Aguardando que o desconhecido fosse ao seu encontro, enlaçou os dedos, interrogando. – Real o bastante para você?
- Vamos sair daqui, Severus. – Segurando-o forte, James assegurava decidido.
- Você está preso.
- Não importa.
- É claro que importa.
- Não. Eu te prometo que vou te tirar daqui. Nem que seja a última coisa que eu faça na minha vida, eu vou te tirar da porcaria deste navio.
Rindo baixinho, Severus repetia para o coração não criar esperança e recebia o protesto sobre o quanto aquela voz estava carregada pela determinação. Permitindo outra solitária lágrima lhe rolar o rosto, também sentiria falta daqueles jantares de faz de conta e conversas tão azucrinantes.
Sentiria falta daquela vitalidade.
Daquele toque.
Daquele flamejante olhar.
Por que queria acreditar em James Potter?
Forçando o riso, pronunciou um tanto aflito:
- O quão louco eu estaria para confiar num prisioneiro?
- Não se preocupe. Quando chegarmos no porto, fique perto de mim que...
- Uma fuga, James? – Libertando o ar, ressaltava incrédulo. - Eles têm armas.
- Não vão atirar em mim.
- Por quê?
- Porque eu...
- Sim, por que você vem sendo legal? Por que está me ajudando? Por que você se preocupa com uma pessoa que, nem mesmo, existe legalmente?
- Ah... – Fechando ainda mais os dedos naquele enlaço, James também não entendia como um ato tão bobo lhe aquecia por inteiro. O cheiro de Severus impregnava em si. Como queria abraçá-lo e... Certamente, o destino havia o colocado naquela cela, pois aquele menino precisava de proteção. E, observando a negritude daquele olhar marejado pelo choro, a luz aperolava a pálida pele, deixando ainda mais... – Porque... – Por quê? Por quê? O jovem príncipe não fazia nenhuma ideia sobre como responder, assim, um tanto nervoso. – Primeiro eu tiro você daqui, depois eu penso no porquê. Pode ser?
- Você é louco. – Severus interpôs, desacreditado, confortado.
Pensando bem, tudo naquela peculiar figura tornava o ambiente mais agradável.
Soltando-o, guardaria aquela promessa e o aguardaria nos dias sombrios.
- Não vá!
- Está tarde.
- Por favor, Severus.
- Se alguém me encontrar aqui, eu serei um homem morto.
- Seremos comida de peixe juntos, não acha legal? – Sem desenlaçar os dedos, fez um biquinho, negociando. – Estaríamos fora do navio se na barriga de algum tubarão. E eu teria cumprido a minha promessa.
- Muito motivador. – Ponderou, permitindo um vago riso.
- Diga-me: Qual a primeira coisa que pretende fazer agora que está livre?
- Não sei.
- Aproveita esta noite ao meu lado para pensar do que você sente falta. Existe algo que deseja comprar? Reencontrar? – Disciplinando o próprio calor para espantar o frio da contraparte, o príncipe sorria em sugestão. – Conquistar?
Comprimindo os lábios, Severus permitia o carregado olhar escorrer pelo rosto machucado. Ele não estava livre, mas aquele faz de conta lhe concedia tanta expectativa... Estranhamente, até o aquecia. Emocionado, não conseguia suprimir o choro acumulado de tantos dias.
Apesar de jamais mencionar, nem mesmo para si, ele sentia.
Sentia falta de casa.
Sentia falta da mãe.
Sentia que jamais iria reencontrar aqueles poucos dias em paz.
Sentando-se no chão após empurrar alguns dos cacos de vidros de qualquer jeito, a peculiar figura tão motivadora permanecia lhe segurando a mão, atento, caloroso e decidido, quase um... Anjo da guarda, talvez?
Teria que cortar o pulso se quisesse sair dali e, para falar a verdade, ele não queria. Se aquela fosse a sua última noite, não se importava em terminar ali junto com aquele idiota sonhador e, por mais que fosse ele quem tivesse trazido o presente, não negava o quanto havia gostado por ter sido surpreendido com tanto conforto e esperança.
James era... Escutando banalidades, o rapaz nem percebeu quando adormeceu.