
Banquete para os peixes
- Eu quero ser comida de peixe. – James adiantava ao escutar os passos da pesada bota adentrando o compartimento.
O canto dos pássaros não deveria ter completado uma volta no relógio.
Levantando-se intrigado, o clima nublado não permitia ao prisioneiro mensurar o horário, embora fosse inegavelmente mais cedo que o habitual. A gélida aura, adentrando pelas arestas da madeira junto à fraca luz advinda do céu cinza, aparentava bastante mal-humorada para silenciar o sol. E, passando rente em direção as caixas, o nublado homem nem mesmo o cumprimentava com um mísero “bom dia”.
A droga de um “bom dia”.
“Sujeitinho audacioso”. O príncipe refletia enojado pelo péssimo comportamento.
Algo tão básico.
Repetindo a pequena frase pra si, não contava nem dois balbuciar. Apesar disso, ele não deixaria se abater. Havia sido instruído a manter os bons modos até quando visitava os porcos. Por isto, erguendo sobrancelhas presunçosas, explicava como se mediante um parlamento:
- Após uma longa discussão, conclui que é o justo. Eles me serviram como alimento durante a vida, logo, devo retribuir. Uma vez, meu pai me ensinou que nisto consiste a lei da atração... – Baixando o olhar incerto, - Ou seria da consequência?
Evitando-o fitar, Severus terminava de esvaziar um fardo de batatas dentro de uma caixa. Retirando dois pregos do bolso, mantinha um entre os lábios, enquanto começava a lacrá-la.
O martelo acertava uma, duas.
Limpando o suor da testa com o dorso da mão, certamente, seria mais fácil ser comida de peixe e só afundar... Do que continuar ali.
Mas, ele estava ali.
Sem perspectiva.
Sem sonhos.
Sem...
Suspirando para continuar, a escuridão pesava em olheiras pela noite passada em claro. Em qualquer outro lugar, poderia desmaiar exausto, mas ali, ele não tinha este direito.
Por mais que as correntes que o segurassem, não estivessem em si, ainda assim...
Preenchendo os pulmões com ar, hesitou em retirar o segundo prego dentre os lábios. Aproveitando a faca, cortava um rasgo do saco, utilizando-o para amarrar os curtos cabelos num improvisado coque, logo continuando o serviço.
O pálido pescoço longo, fino, cujo pincel demarcava a mandíbula numa cuidadosa precisão... Segurando as frias barras, a curiosidade do prisioneiro crescia: Quem seria aquela venenosa erva daninha? O flash de recordação não o permitia lembrar com exatidão, mas... Se ele não utilizasse aquela maltrapilha camisa negra de manga longa...
De certo modo, o silencioso homem não combinava com alegria das narrativas sobre piratas.
As lânguidas mãos nem deveriam empunhar uma arma e, aqueles olhos sem esperança, daria outro passo defronte ao inimigo, por julgar que não faria a pena lutar por qualquer tesouro. E, recordando do dia anterior, James sorria consigo por ser a prova viva sobre tal afirmativa não ser uma louca suposição.
Então, por que Severus estava ali?
Caminhando até a outra extremidade da sala, ele recolhia outro saco, equilibrando-o no ombro e recomeçando o cíclico serviço semelhante a um condenado.
A perna esquerda...
Aguardando pelo terceiro saco para confirmar a observação, o prisioneiro percebia que o jovem mancava discretamente quando carregava peso. Franzindo o cenho indignado, não existiriam outras pessoas naquela droga de navio para ajudá-lo? Em seu reinado, por mais que não vigiasse as masmorras, o príncipe sempre estivera atento aos demais cavaleiros, então, como Sirius...
Sem saber como abordá-lo, James arriscava numa brincadeira:
- Não precisava vim tão cedo, eu quase não durmo. – Mediante o silêncio. – Suspeita minha ou você mudou desde que eu pedisse que me comprasse? – Percebendo-o escutar. – Desculpa, eu acho. – O martelo retornava enquanto as sobrancelhas se uniam numa ínfima raiva. – Não, sem acho, desculpa. Só desculpa de verdade.
Outra caixa terminada.
- Se bem que... -... - Eu me compraria. Tenho excelentes qualidades e sabia que...
- Por favor, não continue. – Pausando por um momento, a mágoa. – Comercializar pessoas é desumano, cruel. Insano. –... – Então, sim. Não gosto de como você trata isto como uma brincadeira.
- E agora você ficará zangado comigo?
- Creio que não tenho este direito.
- E onde está a minha refeição? – Notando o olhar descrente, continuava dramático. – Os peixes não vão ficar satisfeitos com um banquete de tão péssima qualidade se você não estiver me alimentando corretamente.
Severus pausou.
“Sério?”
“Quem se importava com os peixes?”.
Voltando a descarregar as batatas, o cansado algoz revidava numa irônica gentileza:
- Perdão, Vossa Majestade. No entanto, a prioridade deste navio não é você.
- Suponho que esteja enganado, pois sou um ilustre convidado.
- Trancafiado numa cela?
- Sim. O melhor local do navio. – Percebendo o algoz duvidar, - Daqui eu posso escutar o canto dos pássaros, tenho uma macia palha pra dormir e, o mais importante, estou protegido de piratas sanguinários como você.
- Como eu? – A descrente ofensa. Revirando os olhos perante as bobas palavras, tentava permanecer sério nas anotações, mas o tratamento recebido... Há quanto tempo não falavam consigo como um semelhante? Talvez, ele ainda fosse...
Não!
Ele tinha uma missão...
E...
Quantos dias aquele imprestável teria até o desembarque?
- Sim, - James ponderava. Apoiando os cotovelos nas barras de ferro, relaxava. - Por estes dias, eu estive lhe observando. Minuciosamente. Você é habilidoso. Centrado. Inteligente. Até mesmo alfabetizado. Certamente, alguém importante.
“Importante? ”. Voltando ao serviço, Severus arremessava o segundo saco sobre a nova pilha e não conseguiu conter o suspiro desdenhoso ao escutar aquela frase vinda de um homem que argumentava “estar o observando”.
Certamente, aqueles óculos não estavam sendo o bastante para corrigir a imprecisa visão ou, realmente, ele precisasse da alimentação mais cedo.
Ainda assim...
Refletindo sobre as sucessivas infelicidades, o lembrete mental para não dar atenção ao prisioneiro tilintava mais alto que um despertador. Todavia, não seria ruim se eles mantivessem aquele distante e casual diálogo.
Subindo as escadas, logo retornou com a habitual bandeja. Reparando-o discretamente enquanto se aproximava: os cabelos desgrenhados, uma das maçãs do rosto ferida... Se aquelas roupas não estivessem tão sujas, poderia retrucar que ele também aparentava “alguém importante”. Inclusive, a branca camisa de botões desabotoados pelo excessivo calor aparentava puro linho...
- E eu também percebi que está mancando. – James prosseguia delicado. Percebendo baixar o rosto, – Não existem outras pessoas para te ajudar? – Exibindo um despreocupado sorriso, propunha. – Se me soltar, eu prometo que não fujo e te ajudo.
- Eu só terminaria compartilhando esta cela contigo por tal ato de desobediência. – Severus explicava. Sempre havia deixado a comida frente as grades, contudo não fazia sentido quando eles conversavam e o desconhecido sorria tão descaradamente para si.
Seria um espirituoso aventureiro?
Não recordava de ter cruzado com tamanha vitalidade, especialmente quando a depressão era o leme conduzindo aquela embarcação.
- O que também não seria ruim. Você desfrutaria da minha bela cela enquanto eu explicava sobre a lei da atração... Ou da consequência. – Recebendo a bandeja em mãos, James agradeceu baixinho. Percebendo-o sem jeito ao ter as mãos vazias, instigou. – E você pode comprometer o tornozelo se continuar forçando.
- Ah, um médico.
- Não, mas digamos que quase um rei.
- Por isto é tão insuportável. – Severus revidou, mas a seriedade...
Seria verdade?
O homem permanecia lhe encarando sem desconversar por um, dois segundos. Sobressaltado, o algoz retrocedeu um passo pra trás, cambaleando perdido.
Acenando levemente com a cabeça, informava:
- Relatarei acerca do engano, vossa. – Sem perder a oportunidade, a divertida afronta. – Quase majestade.
- Faça isto. Contudo, - Levando a bandeja ao chão, James indicava o chão afrente as grades e, educadamente, convidava o algoz a sentar. – Agora que veio ao meu castelo.
- Não seria cela?
- Castelo itinerário. – James corrigiu. – Eu o convido pra jantar.
- Não deve ser sete da manhã.
- É uma grande honra, por isto... – Baixando o olhar para a bandeja nada atrativa, ele divagava. – Escolhi estas uvas, especialmente, para a nossa ocasião. – Estreitando os olhos, frisava num manhoso pedido. – Por favor, não faça a desfeita de partir.
- Tem tão pouco até para você.
- Caro amigo, - Pegando o pedaço de pão, partia ao meio. Entregando-o através dos ferros, sugeria. - Seja um pouco mais católico.
“Católico? ”. Mordendo os lábios vencido, Severus concordou.
Sentando-se no local indicado, cruzou as pernas. Fitando o misterioso rapaz, provavelmente de semelhante idade, por que o idiota havia invadido aquele navio? Estando mais próximo, certamente, tratava-se de alguém importante, já que os dentes pareciam pedaços de marfim. E, aqueles caprichosos olhos detinham a capacidade de acreditar...
Então, por que um andarilho se esforçava para comer na presença de...
Baixando o olhar, meneava a cabeça, afastando os pensamentos.
Recebendo o alimento, uma vaga satisfação lhe delineava os lábios, afinal, quando teria outra oportunidade para compartilhar a refeição com alguém da realeza? Por mais que aquilo fosse, somente, um ato de interesse para lhe conquistar a confiança, não importava.
Será que não importava?
Deferindo uma pequena mordida para prolongar o jantar, estranhamente, aquele pedaço de pão lhe aquecia o peito.
Sentindo-se mal por não ter como retribuir a gentileza, confessava:
- Eu, realmente, não tenho a chave do cadeado.
- Se estamos em meu castelo, posso sair quando eu quiser. – Rapidamente, a censura. Doce, James acrescentava. - O que, obviamente, não farei enquanto estiver em sua presença.
- Eu já tentei quebrar com uma barra de fer...
- Sabia que este pão, embora pareça italiano, ele é belga com toques de amêndoas e, é claro, sovado com um bom rum. – Interrompendo-o, naquele instante, o prisioneiro até poderia agradecer ao irritante cadeado por apresentá-lo aquele “sujeitinho audacioso”.
Até poderia, mas não faria.
Afinal, o infeliz permanecia os separando.
E a saliva lhe amargava a garganta por escutar acerca das tentativas fracassadas. Talvez, excluindo as grades, eles estivessem numa situação semelhante, o que em nada combinava com o rapaz em finas roupas emoldurado em suas recordações.
Buscando não estragar o momento, deixava-se levar pela encenação. E, levando à mão a boca para ocultar os lábios, segredava:
- É meio criminosa, mas minha bebida favorita.
“Um idiota”. Severus concluía com certo carinho.
Quem colocaria álcool numa massa?
Aliás, piscando algumas vezes, se fechasse os olhos, escutava os outros convidados agitados como as ondas oceânicas. Tocado pela iluminação que rememorava frestas solar, embarcava naquele segredo.
Mas...
- Acho que... – Recordando algumas frases comuns, escutadas ou encontradas em livros, por mais que aquela mistura fosse peculiar, arriscava. – Suponho que os peixes irão adorar quando você for o banquete.
- Sim. – James se preocupava. Dando de ombros, – Neste castelo, praticamos a transformação da matéria como forma de agradecimento ao universo.
- Um outro rei idiota me falou sobre a lei da consequência...
- Você escutava?
- Como não? Ele era irritante demais para ignorar.
James sorriu.
- Vou me empenhar em ser mais irritante para que você não tire os olhos de mim, Severus. – Percebendo o algoz gesticular os lábios ultrajados, acrescentava sério. - Contudo, embora seja sensacional e tenha todo o lance da herança, eu te garanto que vamos sair daqui.
- E nadaremos até alguma ilha?
- Por que não podemos tomar o navio?
O riso fugaz, quase imperceptível, especialmente pelo melindroso homem manter o pão defronte os lábios com intuito de ocultá-los. Saboreando uma nova pequena mordida, certamente, a loucura deveria ser o sal perpassando aquela refeição. E, era incrível como a ínfima possibilidade em sonhar, afastava o habitual desespero.
Agora, junto ao canto dos pássaros, a embarcação velejava calma em direção ao encontro de azuis naquele horizonte sem barcos ou nuvens.
Continuando a comer pensativo, os negros olhos propunham:
- Começamos pela garganta do sub-capitão.
- E seguimos como fantasmas para o convés.
- Se falharmos, os peixes vão ganhar um banquete mais cedo.
- O que sempre foi o nosso objetivo. – James admitia e, mediante o pequeno riso em concordância, completava. – Acho que nosso plano está perfeito.
- Não será nada fácil.
- Você duvida das minhas habilidades?
Sim, Severus duvidava.
No entanto, por mais que aquele fosse o primeiro castelo que visitasse, suspeitava que não fosse nobre explanar a opinião durante a refeição. Por isto, erguendo a velha garrafa num improvisado brinde, eles selavam o sagrado pacto que, provavelmente, não duraria até a próxima manhã e não importava, pois, durante aquele jantar, era a desculpa que os unia e tudo o que eles tinham.