
Ploc, ploc. Bolhas
“Ploc, ploc”.
Derramando a água do balde no mar, bolhas. Misturando-se ao azul esverdeado, menores permaneciam submergindo a superfície, conforme o navio avançava e água batia na lateral da madeira.
Por que as bolhas se formavam?
Por que o Oceano parecia tão granulado naquele unido infinito?
Por que o destino o trouxe, justamente, pra ali?
Voltando a encerar a madeira, logo caminhava para a cozinha e lavava os pratos. Trocando as roupas sujas dos três dormitórios, limpava os banheiros, abastecia os canhões, lustrava as armas. Lavando o convés, observava o transcorrer do sol pelo horizonte, ansioso pelo momento da conferência de suprimentos e alimentação de prisioneiros.
Ou melhor, do único prisioneiro.
Ao recordar das últimas manhãs, podia jurar que, semelhante ao mar, ondas se chocavam pelas paredes de sua barriga, estourando os plocs, plocs.
E, por mais que não soubesse a motivação para o destino ter o trazido até ali, ele estava feliz.
O sol a tino afastava todas as nuvens numa explosão de energia, vitalidade.
O calor revigorava.
Manivelando os guinchos, não importava a argola lhe marcando o punho esquerdo, pois ele compartilhava a mesa com um rei e, juntos, eles planejavam destruir aquele navio. Ajustando as velas, o breve piscar já conseguia imaginá-las em chamas.
A destruição daquele lugar nem tinha acontecido e já era a sua mais bela recordação.
Escondendo o próprio alimento na manga da camisa, na real, nem mesmo tinha fome.
Podia esperar pela próxima manhã.
Certa vez, até tentou levar o dobro de comida e quase teve a mão amputada por outro marujo, o qual lhe rosnou sobre “não roubar”.
Especialmente, quando ele nem deveria estar ali por ser somente...
Espanando os móveis da ponte de comando, a esperança lhe sussurrava ao ouvido... Quantos plocs, plocs faltariam pro sonhado dia?
Adentrando o pequeno mundo cultivado pelos dois, neste dia, antes da conferência matinal, Severus carregava a bandeja com a diária refeição. Caminhando devagar, surpreendeu-se ao perceber o invasor sentado no banco ao fundo da cela, recostando a cabeça na parede, aparentemente dormindo.
Ele não tinha o físico raquítico encontrado na plebe.
Somente artesões qualificados conseguiam selecionar, cortar e ajustar lentes naquelas estreitas armações. E, na haste esquerda, estava cravado algum desenho, não identificado pelos assanhados cabelos acastanhados, sempre ocultando.
Contudo, por que um nobre faria algo assim?
Permanecer preso, sujo...
Invadir um navio?
Uma vez, Severus escutou que a diferença entre um nobre e um ladrão era a quantidade de desespero. Assim, ele poderia ter consigo a peça no contrabando? Entretanto, se fosse alguém cruel, por que não o matou quando teve a chance?
Passando o dedo no grosseiro cadeado, embora tivesse revirado a cabine do capitão, nada encontrou. E, observando ali, tão calmo... O idiota não merecia a reservada sina, mesmo assim, seria egoísmo postergar aquele encantamento por mais alguns meses?
- Bom dia. – James cumprimentava sonolento. Percebendo o sobressalto, - Sabe, é meio esquisito anunciar a sentença de morte de alguém, e, dias depois, vim lhe trazer café na cama.
Os dedos hesitantes segurando a bandeja.
Sinceramente, James não se importava com a comida. Certo, ele agradecia aos céus pela companhia não o permitindo enlouquecer naqueles torturantes dias, no entanto, recusava-se a acreditar que aquele rosto a trepidar seria somente medo de si.
O que acontecia afora as grades?
Sirius, não seria um bom capitão como fora um bom amigo?
Levantando-se num salto, transpassava as mãos pelas grades, e, capturando a avermelhada maçã:
- Não que eu esteja reclamando...
- Talvez, esteja envenenada.
- Então, - Erguendo a fruta, oferecia gentil. – Morreria comigo?
Severus baixou o olhar.
Apertando as extremidades da bandeja num discreto nervosismo, recordava:
- Precisamos vendê-lo.
Trazendo a maçã novamente para si, James, outra vez, mordia. O doce da fruta lhe refrescava a garganta, enquanto o refrescante perfume de hortelã...
Um minuto.
Não era a maçã.
O cheiro lhe atormentando a sanidade pelos últimos dias, sempre chegava com as pesadas botas e desaparecia com o fechar da porta.
Então, seria Severus?
Inferno!
Ele não podia, simplesmente, pedir pra conferir. Especialmente, pelo modo que eles se conheceram e até hoje, o receoso garoto permanecia a um passo das grades.
Fechando os olhos para mastigar, a salina dava lugar para o orvalho matinal de um infinito cultivo daquela plantinha rasteira e tão aromática. Talvez, o período distante de todos tivesse motivado ao seu instinto decorar a ardida fragrância, para sempre, reconhecê-lo.
E, agora, junto às molduras em recordações, havia o cheiro.
- Achei que fossemos tomar o navio. – James ponderava.
- Certamente, sim. Contudo, em outro mundo onde não exista o medo.
- Eu não tenho medo.
- Se tivesse, não estaria nesta cela.
O príncipe ficou boquiaberto pela audácia. E, erguendo a sobrancelha, Severus continuava:
- Teria estratégia para nos roubar, matar, e desaparecer.
- Então, você não tinha medo?
- Suponho que eu nunca tive sorte.
- Como não? – Desacreditado, James sorria petulante. - Está conversando comigo, em alto-mar, neste excelente navio. – Mordendo novamente a maçã, frisava. - Privilégio para poucos, sabia?
- Desculpa por não ter notado os ventos mudando quando te conheci. Deve ter sido o excesso de parede...
- Eu me sinto sortudo por ter invadido este navio e lhe conhecido. – James interpunha.
-... Neste subsolo abafado, sem iluminação... – Pausando repentinamente, Severus mordia o próprio lábio, censurando a fala.
Ploc.
Ploc.
As bolhas retornavam ao estômago.
Por que um maldito prisioneiro o fazia se sentir assim?
Talvez contente, ansioso, empolgado?
Sufocado.
Alguém já deveria o procurar pela superfície, mas... Estando ali, ele só queria permanecer ali... Até porque o destino o trouxe até ali, não seria justo...
Fitando o pedaço de frango, a mínima felicidade submergia a angústia enquanto o desconhecido continuava:
- E, para ser maltratado por você como venho sendo, eu faria novamente.
- Acho que. – A incerteza o calava por um par de segundos. - Eu não o deixaria aqui, se eu fosse o capitão Black.
- Sirius Black?
- Sim, - Piscando intrigado, o algoz se interessava. – Você o conhece?
- Eu... – James ponderou.
Certamente, piratas não deveriam gostar de membros da nobreza. Aliás, nem os membros da nobreza se suportavam entre si. Quando vadiava pelas ruas da cidade, só conseguia diversão ao ocultar o título. E, agora, revelando quem era, até poderia ser liberto daquela situação. Todavia, fitando a inocente ansiedade aguardar, optava pela provocação:
- Eu sempre o recebo em meu castelo para o chá das cinco. Somos meio que melhores amigos.
Permanecendo em silêncio por alguns segundos, o leve roçar dos polegares contra o alumínio tornava perceptível o quanto o marujo ficava mais nervoso.
O castelo mencionado não parecia o mesmo compartilhado por eles naquelas manhãs.
Umedecendo os lábios, confessava num murmúrio:
- Às vezes, acho que fala a verdade, pois sabe que não irei acreditar.
- E no que você quer acreditar?
- Por que um nobre desejaria permanecer trancafiado por tantos dias?
- Se todos pudessem receber a sua visita, estas celas estariam cheias.
- Quando nem mesmo tenho a chave? – Percebendo-o sorrir num leve balançar de ombros, Severus insistia. – De onde conhece o capitão?
- De boatos acerca a sua grandeza. – E, de certo modo, era verdade. Ou assim, James considerava. - Pessoalmente, nunca o encontrei.
Desde que o amigo iniciou a vida no mar, eles jamais se reencontraram.
As recordações de festas, viagens, e o período no internato pertenciam a um velho Sirius, o qual, possivelmente, já não existia. Percebendo-se avaliado, continuou maldoso:
– Deve ser mais esperto para descobrir quando alguém está mentindo para você. – Diante os olhos atenciosos nada convencidos, - Eu sou um mercado, mercantil... – Levando a mão ao queixo para lembrar de títulos plebeus, - Uma daquelas pessoas que vendem coisas.
- Mercador? Artesão? Comerciante?
- Isto.
- E o que faz aqui?
- Tantas perguntas e nem me disse o seu nome. Embora os meus sonhos tenham me dito que é Severus, formalmente, você nunca se apresentou.
- Não sou alguém importante.
- Não diga isto. – Deferindo outra mordida no fruto já pela metade, o maroto sorriso lhe tomava conta dos lábios confiantes. Instigando-o, continuava. – Até porque, eu tenho certeza que você sempre vai se lembrar de mim. Logo, não seria justo se o anjo da morte que me visita todos os dias também tivesse um nome?
- Eu vou lembrar de você?
- Até o seu último suspiro, o qual pode ser o meu nome.
- Sempre é tão confiante? – Estreitando o olhar, o garoto nem conseguia acreditar que existisse alguém com tamanho ego. Divertindo-se, retrucava em igual desafio. – E se anjos da morte se afeiçoarem por suas vítimas, não seria mais difícil executar o trabalho?
- Oh! Você se afeiçoou por mim?
- NÃO! – Severus interpôs rápido, contrariando o rubor lhe tomando as bochechas, evidenciando o contrário.
Droga!
Permitindo que as negras cortinas que eram seus cabelos lhe ocultassem o rosto, nem conseguia encarar o maldito ainda mais sorridente. Talvez, apenas talvez, o desconhecido comerciante estivesse certo e, realmente, não fosse ser esquecido tão cedo.
Assim, vencido, o tímido garoto confessou amuado:
- Senhor prisioneiro, aqui no navio eles me chamam de Ranhoso.
- Não parece o nome que foi escolhido por seus pais. Já me chamaram de idiota, insuportável, quatro olhos, mas eu não informo isto quando me perguntam quem eu sou. – Apontando para as douradas armações, complementava. – Até porque isto é só um adereço pro meu charme.
- Idiota lhe seria um bom nome.
James semicerrou os olhos, falsamente ultrajado. Aos poucos, observando-o ali, sentia-se feliz por afastar o medo e a indiferença daqueles olhos, agora, curiosos. Devolvendo-lhe a provocação, apresentava-se:
- Bom, como já disse uma vez, eu sou incrível James Potter. E você?
- Eu... – Piscando algumas vezes, a quanto tempo Severus não repetia o próprio nome? Aliás, até tinha sido ameaçado a esquecer. Ainda assim.... – Sim, Severus... - Buscando no íntimo e nas risadas com as quais sua mãe lhe chamava enquanto corriam entre relvas perfumadas, completava. - Severus Snape.
- RANHOSO! – Alguém berrava em ódio.
A indiferença retornava aos negros olhos.
Entristecido pelo mínimo ao seu alcance, James recolheu a moringa de barro da bandeja. Perpassando pelas grades, argumentava:
- Tome um pouco para aguentar o dia, senhor Snape.
- Obrigado, - Apesar de ser apenas água, Severus tomou um longo gole. Sorrindo vagamente ao devolver a garrafa, por mais que o coração estivesse preocupado pelo tom enfurecido que o homem prosseguia o chamando, o estômago revirava numa avalanche de ploc, ploc por poder chamar aquele peculiar invasor de... - Senhor Potter.
Observando se afastar, em mente, James repetia aquele nome inúmeras vezes objetivando não esquecer.
“Severus Snape.”.
“Severus Snape.”.
De certo modo, ele ousaria invadir o navio do Sirius outra vez somente para encontrar aquele rosto que nunca tinha aprendido a sorrir sem sarcasmo ou ser desprezado por aqueles olhos mortos, os quais, estranhamente, enchia-lhe de vida.
Eles sempre trocavam tão poucas palavras. Ainda assim, o suficiente para transformar o calor, a indignação e a fome em motivações para ansiar pelo próximo amanhecer.
“Severus Snape”.
Naquela noite, ele até se pegou rezando para o navio emperrar e jamais chegar ao tal porto. Desta forma, ele poderia desvendar um pouco mais do mistério envolto aquele melancólico tesouro, repleto das exatas vibrações de sagacidade necessárias para o coração saltitar.
Embora praguejasse o cadeado, James sorria, pois jamais encontraria tal emoção num casamento arranjado com uma ruiva alinhada, cheias de modos e etiqueta.
QUER DIZER, não que almejasse casar com o rapaz!
Mas...
Cada minúscula curva de quase riso lhe proporcionava a mesma alegria encontrada em magníficas vitórias, motivando-o a se empenhar em conseguir mais e mais.
Sem contar com: o perfume...
E, agora, um nome.
Como um nome tão pequeno lhe proporcionava tanta satisfação?
Talvez, porque não era um nome.
Era o nome.
Sem dúvida, sempre foi...
- “Severus”... – Chamou um pouco mais alto, sem perceber. Percebendo-o olhar em sua direção, complementou, sem graça. – Venha aqui mais tarde. Quando estiver livre.
- Livre?
- Sim.
- Assim eu nunca irei voltar.