
Capítulo 1
A pintura era uma mentira.
Uma bela e alegre mentira, transbordando flores cor-de-rosa claras e espessos raios de sol.
Havia começado, no dia anterior, um estudo despreocupado do jardim de rosas que espreitava além das janelas fechadas do meu quarto/jaula. Em meio ao emaranhado de espinhos e folhas acetinadas, o verde mais intenso das colinas se estendia ao longe.
Primavera incessante, determinada.
Primavera estupida e horrenda.
Se houvesse pintado esse lampejo da corte como minha intuição ansiava, teriam sido espinhos dilaceradores de carne, flores sufocando a luz do sol para quaisquer plantas menores, e colinas íngremes manchadas de vermelho.
Mas cada pincelada na ampla tela fora calculada; cada toque e redemoinho de cores pretendia retratar não apenas a primavera idílica, mas também um estado de espírito alegre. Não feliz demais, porém satisfeita e finalmente em cura dos horrores que cuidadosamente enterrei dentro de mim.
Supus que, nas últimas décadas — mais de um século —, eu tivesse traçado meu comportamento tão intricadamente quanto uma dessas pinturas. Supus que, se também tivesse escolhido me mostrar como realmente desejava, estaria adornada por garras dilaceradoras de carne e mãos que sufocavam a vida daqueles agora em minha companhia. Teria deixado os corredores emoldurados em ouro manchados de vermelho.
Mas ainda não.
Ainda não, dizia a mim mesma a cada pincelada, a cada movimento que tinha feito naqueles anos. Vingança apressada não ajudava ninguém ou nada — além de meu ódio fervilhante.
Mesmo que eu ouvisse os soluços e os gritos desesperados e sangrentos da minha mãe conforme o antigo Grão-Senhor da Corte Primaveril desmembrava e mutilava as asas dela a cada vez que falava com eles. Mesmo que sentisse quando meu irmão e meu pai chegaram até essa maldita Corte e mataram todos os irmãos e os pais do atual Grão-Senhor da Corte Primaveril, Tamlin, mas não me encontraram e me resgataram sempre que sentisse um deles próximos a mim. Mesmo que minhas narinas se enchessem de novo do odor acre do sangue da minha mãe ao se empoçar nas pedras escuras daquele campo de guerra illyriano sempre que lhes sentia o cheiro. Mesmo quando imaginava o momento em que Tamlin matou meu pai a cada vez que eu o visse.
O pincel quebrou entre meus dedos.
Eu o parti ao meio, o cabo pálido estava estilhaçado, sem conserto.
Xingando baixinho, olhei para as janelas, as portas de freixo. Aquele lugar detinha olhos atentos demais para arriscar jogá-lo no lixo.
Projetei minha mente ao redor, como uma rede, buscando mais alguém perto o suficiente para testemunhar, para me espionar. Não encontrei ninguém.
Era só isso que eu conseguia fazer. Projetar a minha mente. Nada mais. Antigamente, poderia ter incendiado o pincel apenas com um pensamento incompleto. Poderia invadir e estilhaçar a mente de alguém sem mexer um único musculo do meu corpo. Agora... a única coisa que havia sobrado em mim era o poder de projetar a minha mente.
Por um momento, me permitir imaginar além daquele quarto feito de freixo, além dos encantamentos que me prendiam aqui. As marcas de meu verdadeiro coração. Meu verdadeiro título.
Princesa da Corte Noturna, princesa guardiã de Velaris e guardiã do anel da Corte Diurna.
Com um pensamento incompleto, joguei o pincel na lareira e observei conforme ele devorava madeira e pincel e tinta.
Quando não passava de fumaça e cinzas, abri as janelas gradeadas e senti quando uma brisa do jardim passava pelo quarto/jaula, limpando qualquer gavinha remanescente de fumaça, preenchendo o cômodo com o cheiro almiscarado e sufocante de rosas.
Talvez quando alcançasse a minha liberdade, eu bote fogo nessa mansão também. Começando pelas rosas.
Eu odiava rosas. Sempre odiei e passei a odiar ainda mais após o meu aprisionamento.
Duas presenças se aproximando alertaram o fundo de minha mente, uma mais forte que a outra, e peguei outro pincel, mergulhando-o na mistura mais próxima de tintas, e depois recolhi minha mente para mim mesma, já que tinha a erguido em torno do quarto para me alertar a respeito de qualquer visitante.
Eu trabalhava na forma como a luz do sol iluminava os delicados veios de uma pétala de rosa, tentando não pensar em como certa vez a vi fazer o mesmo com asas illyrianas, quando as portas se abriram.
Fiz uma bela atuação ao parecer perdida no trabalho, curvando os ombros levemente, inclinando a cabeça. E atuei melhor ainda ao olhar vagarosamente por cima do ombro, como se me afastar da pintura fosse um verdadeiro esforço.
Mas a batalha foi o sorriso que forcei à boca; aos olhos... os verdadeiros delatores da natureza real de um sorriso. Eu tinha praticado no espelho. Diversas e diversas vezes ao longo da minha vida.
Então, meus olhos facilmente se enrugaram quando lancei um sorriso submisso a ele.
A Tamlin.
— Aí está você, princesinha da lua. — disse Tamlin, observando meu rosto em busca de sinais das sombras em cujas garras me lembrava de ocasionalmente cair, aquelas que eu empunhava para mantê-lo afastado quando o sol descia além das encostas. Para qualquer outra pessoa, a saudação pode parecer agradável, mas eu quase rosno.
Com Tamlin, há sempre um truque, um jogo em questão, uma linha na qual se equilibrar. Eu sei por experiencia própria que, se ele está brincando com a generosidade nesse momento, a crueldade não pode estar muito longe. Ele era um lobo em pele de cordeiro, pronto para atacar.
Ele só havia me concedido pequenas regalias nos últimos cento e vinte seis, quase cento e vinte sete anos. Um deles era ter a chance de pintar — não era algo que eu gostasse muito, mas era melhor do que ficar olhando para o teto. Além disso, me ajudava a passar o ar de garota tímida e submissa... então eu pintava todos os dias.
De pé à sua direita, com as mãos cruzadas atrás do corpo, um de seus companheiros, o Grão-Feérico Andras, deixa os olhos frios e maliciosos encontrarem os meus.
Andras... um dos meus carcereiros. Eu estava aprisionada em sua mansão pelos últimos 36 anos.
Antes disso era na propriedade de Falkan e antes disso na de Caos e antes disso... bem é irrelevante. Todos eram amigos de confiança de Tamlin. Todos dispostos a aprisionar a mim em jaulas/quartos feitos de freixo. Sabia o nome de todos leais a Tamlin, de todos em seu comando... e um dia, faria todos eles pagarem pelo que fizeram.
Eu era de uma corte sonhos e desejos. E, dessa forma, desejei às estrelas, que conseguia ver das minhas jaulas, executar e presenciar um dia minha vingança. Desejei ter minha liberdade novamente. Desejei e implorei para um dia me permitirem sentir novamente o vento em meus cabelos e em minhas asas.
Mas por hora, me obriguei a engolir em seco. Abaixei o pincel. Não passava de uma feérica nervosa e insegura que fora havia muito, muito, muito mesmo, tempo.
— A que devo a honra, Tamlin?
Foi Andras quem respondeu, observando minha pintura, como se tivesse a prova que eu sabia que ele procurava. Ele só queria uma única e pequena prova... a de que eu não era tão fraca e submissa quanto Tamlin acreditava que fosse e lhe desse motivo para me torturar do jeito que ele queria.
Pervertido nojento.
— Tamlin, vosso senhor, está aqui para leva-la de volta à Rosehall.
Apoiei o pincel e tirei o avental manchado de tinta, cuidadosamente dispondo-o no banquinho onde passei as cinco horas, curvada.
— Vou me trocar, então — murmurei, passando a trança frouxa sobre um dos ombros.
Tamlin assentiu, monitorando cada movimento meu conforme me aproximava do baú que continha as poucas coisas que eu tinha.
— A pintura está linda.
— Não está nem perto de acabada — comentei, conjurando aquela garota que dispensaria honrarias e elogios, que quisera passar despercebida. — Ainda está confusa.
Sinceramente, era um de meus melhores trabalhos, mesmo que a falta de personalidade fosse aparente apenas a mim.
— Ainda assim está bonita. Bem... florido — apaziguou Tamlin, com um sorriso.
Segurei a vontade de revirar os olhos e, então, devolvi o sorriso com hesitação, antes de começar a organizar os meus pertences em um bolsa.
Andras estava esperando do lado de fora de meu quarto/jaula quando saí, cinco minutos depois.
Segurei a macia saia rosa do vestido esvoaçante com uma das mãos e fechei a porta do quarto ao sair. Eu sabia o que estava por vim, mas ainda sim permaneci calma. Já havia passado por isso antes.
— Fico surpreso por estar tão calma, considerando que sabe o que vem a seguir — disse Andras, como cumprimento.
Em suas mãos estava um dos objetos que eu mais odiava. Algemas feitas de freixo e magia antiga. Provavelmente um resquício da Grande Guerra contra o rei de Hybern.
Todas as vezes que Tamlin me transferia de uma prisão para outra, ele mandava me algemarem com essas mesmas algemas. Elas cortavam meus poderes ainda mais do que os quartos de freixo e levava alguns dias para me recuperar de como elas me afetavam.
— Você mesmo disse uma vez para mim... se eu lutar será pior.
Ele rosnou perante à minha resposta e se apressou em prender as algemas em meus pulsos.
O sentimento de fraqueza extrema e desorientação foi instantâneo. Era como se tudo ao meu redor tivesse perdido o foco e eu estivesse me afogando. Quase não conseguia mais respirar.
Eu sabia que já deveria estar acostumada com essas sensações, sabia que deveria lutar contra elas. Mas a magia negra e sombria embutida nas algemas era demais para mim.
Então não foi uma surpresa quando desmaiei sem forças diante de Andras.