Matching Wounds (you lover her, it's over)

Scream (Movies)
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Matching Wounds (you lover her, it's over)

Um dos primeiros sentidos que Kirby recobra ao acordar em uma cama de hospital - e ela só sabe que está em um hospital porque o conjunto de sons e cheiros são extremamente específicos a essa altura -, é a audição.

Ela pode ouvir o bip constante da máquina que registra seus batimentos cardíacos. Os passos apressados no corredor; a raspagem da sola dos sapatos no chão polido irritando seus ouvidos. Há um falatório em algum lugar distante, alto demais para ser captado de seu quarto, mas longe o suficiente para que não se possa compreender o que está sendo dito. E, então, há esse outro som; perto, desregulado e reprimido com o qual Kirby não está familiarizada em escutar tão perto de sua maca sempre que ela acaba em uma.

É um som que ela conhece, porém. Um com o qual ela aprendeu a lidar e se acostumar em sua linha de trabalho. Mas, mais do que isso, é algo que ela ouviu claramente não muito antes de se permitir apagar naquela ambulância; um choro doloroso e angustiado vindo de alguém que ela mal conhece, mas se sente apegada e protetora como se fosse sua própria irmã caçula.

Ela força seus olhos pesados a se abrirem lentamente com o reconhecimento; as pupilas ardendo pela repentina luz ofuscante. Kirby pisca, uma, duas vezes, buscando adaptar-se à iluminação ambiente, e leva um segundo para assimilar o que - quem - sua visão turva está enxergando.

Ao fazê-lo, no entanto, ela não pode evitar de sorrir fracamente. Mesmo que a situação não seja a melhor no momento. Mesmo quando seu coração se aperta ao ver esse acanhado ser espremido na cadeira desconfortável do hospital, joelhos puxados contra o peito como se sua vida dependesse disso.

- Hey – A detetive chama, a voz rouca e garganta seca. Ela pigarra, faz esforço para continuar. – Não sabia que se importava tanto, pequena Carpenter.

Os olhos avermelhados de uma morena miúda disparam para Kirby, e a loira mal contém uma risada ao observar a garota praticamente pular da poltrona.

- Hey! – Tara está de pé em um instante, lábios se repuxando para cima de forma quase imperceptível, um péssimo trabalho sendo feito em enxugar as lágrimas discretamente. – Você acordou.

Kirby dá de ombros, finge - ou, pelo menos, acha que sim - que cada mísero músculo de seu corpo não queima com o ato.

- Sou mais resistente do que meu tamanho indica.

A jovem ri, apenas um pouco, uma mera risada nasal que sequer alcança os olhos antes de sua feição murchar de volta.

- Está tudo bem? Chad, Mindy, Gale…? – Kirby sabe que sim, sabe que o motivo de Tara estar ali não tem nada a ver com nenhum de seus amigos. Ou com ela em si. Não custa nada perguntar, de qualquer modo.

- Oh – A jovem balança a cabeça, surpresa com o indagamento como se não estivesse utilizando o quarto alheio para colocar seus pulmões para fora. – Sim. Sim, está tudo bem. Estão todos bem.

- E você? – Kirby tenta. – Você está…

- Quer que eu chame um médico? – Tara interrompe, engolindo a seco enquanto procura, miseravelmente, manter o timbre embargado longe da conversa, seu olhar marejado e vulnerável nunca demorando-se no de Kirby. – Eles mandaram avisar se…

- Eu estou bem – Kirby devolve, suave e não totalmente uma mentira. – Os médicos podem esperar.

A sobrancelha da jovem se ergue, e Kirby sabe que, se elas tivessem um tiquinho mais de intimidade, Tara estaria dando a ela um sermão agora a respeito disso.

- Esperar o que, exatamente? – É o que a caçula diz ao invés, dura em seu tom de maneira inconsciente de um jeito tão parecido com o de Sam. Kirby se pega sorrindo novamente.

- Eu beber um gole d'água. – Diz ela, simples, e faz uma pausa ao completar. – E você me contar porque está se escondendo no meu quarto.

A mandíbula de Tara se abre, e ela engasga uma resposta desconexa, coçando a nuca sem graça.

- E-eu… eu não estava…

- Tara – O devaneio é parado com diversão, e Kirby olha gentilmente para ela, o melhor e mais terno dos sorrisos enfeitando seus lábios. – Está tudo bem. Mesmo. Não me importo com a companhia. E você pode só… sentar aí e ficar em silêncio, se quiser. Mas, eu também estou aqui, sabe, se precisar conversar, desabafar ou apenas… falar mal do pudim da cafeteria.

Os ombros de Kirby, mais uma vez, sobem e descem com indiferença. E algo aquece em seu peito quando o mais ínfimo dos risos borbulha na superfície de Tara com a piada estúpida.

- Posso perguntar… – A garota hesita, expressão caindo, e Kirby dá um mínimo aceno para incentivá-la a prosseguir. – Olha, não me entenda mal, mas… por que você se importa?

E não era justamente isso o que Kirby estava esperando.

- Como?

- Você poderia me mandar sair. Pedir para eu te deixar em paz. Além disso, você é do FBI, tem poder para sair desse hospital de merda e voltar para casa. Arrumar um tratamento decente. Mas você está aqui, perguntando como eu estou. Protegendo a mim e a minha irmã mesmo quando desconfiamos de você. Você poderia ter saído dessa confusão a hora que quisesse, ou ao menos ter entrado nela, pra começo de conversa. Mas, de novo, você está aqui e eu… eu não sei, eu só… fiquei curiosa, eu acho. Por que você ficou? Por que você se importa?

Era uma dúvida válida para alguém com problemas de abandono e confiança, não era?

Por que ela ficou? Por que ela se importa?

Francamente, Kirby nem sabe dizer de onde vem tal zelo e cuidado com essa garota. Com todos esses garotos. Talvez Kirby se veja neles; no jeito nerd de Mindy, sorriso brincalhão do Chad e lado protetivo de Tara; a adolescente dentro dela que teve que crescer mais cedo do que planejado gritando, implorando para fazer parte de um grupo leal de amigos depois de tudo o que aconteceu. Ou talvez ela esteja tentando se livrar da culpa; tentando aliviar a morte inocentes de seus ombros - ela era amiga da Jill, afinal, como caralhos ela não pode ver que tinha coisa errada? -, compensando pelos dias em que ela ficou de braço cruzados e se escondendo em porões enquanto seus amigos eram mortos.

Não importa, porém. Não mais. Não realmente.

O motivo; a culpa; a raiva. Tudo isso é facilmente esquecido quando os olhos injetados de sangue de Tara encontram os seus, tamanha e rara fragilidade sendo mostrada abertamente para ela. 

- Eu não sei – É a verdade crua, a exaustão nas palavras expressa isso. – Eu não sei, mas… eu me importo. Com todos vocês. E eu estava sendo sincera quando disse que você poderia falar comigo. Isso, claro, se você quiser. Sem pressão. Como eu disse, eu gosto da companhia de qualquer maneira.

Tara a fita intensamente, uma espécie de brilho dançando no castanho de suas órbitas que Kirby não consegue deduzir o que significa. Mas, quando a morena sorri um sorriso sem dentes e lhe dá um maneio ameno, Kirby acha que deve ser por uma boa causa.

Tara não diz mais nada - nem faz menção de que ela possa dar as costas e sair -, e Kirby não insiste.

O silêncio que recai sobre a sala é confortável. Fácil, embora elas literalmente se conheçam há menos de dois dias. Algum tipo estranho de comodidade entre sobreviventes que poucos conseguem entender.

Com isso, Kirby apenas… dá tempo à garota mais nova. Assiste enquanto Tara se vira e volta menos de um minuto depois com o copo de água que ela havia pedido. Mira cautelosamente a menina andar pela sala, mexendo inquietamente em cada aviso pregado na parede e em seu prontuário para enfim voltar a sentar-se.

O silêncio perdura o bastante para Kirby crer que vai ser isso; que a primeira opção sugerida é a escolhida - e ela está bem com isso, que Tara sinta-se à vontade o suficiente com ela para manter-se em uma quietude pacífica -, e a agente do FBI está há um passo de pegar no sono quando a confissão vem através de um murmúrio azedo.

- Eu a amava.

Soa distante para seus próprios ouvidos, e Kirby não sabe se é porque ela estava prestes a cair em outra dimensão, ou pela voz sufocada de Tara.

- Eu a amava tanto – Ela repete, punhos cerrados sob o queixo, a mandíbula trancada. – E, talvez, se eu for sincera comigo mesma… t-talvez tenha uma parte de mim que sempre vai amá-la.

E, quando Tara ergue a cabeça e finalmente se permite olhar para a detetive, Kirby vê tanto de si mesma naquele olhar quebrado e suspiro cansado, que fisicamentedói.

- Amber. – Não é uma pergunta ou um julgamento. É um fato. Concreto, real e lancinante. Uma verdade oculta dos livros e reportagens. Uma que Kirby só é capaz de identificar porque ela vem tratando essa mesma dor como um velho amigo há mais de dez anos.

Tara não nega. Não ousa se explicar. Ela apenas desvia os olhos dos de Kirby, uma lágrima singular escorrendo por sua bochecha.

- Nós conversamos sobre ir para a faculdade juntas. Amber e eu. Estudar cinema; arte, música. Dividir um apartamentinho de bosta do centro da cidade. Nós faríamos sessão de filmes ruins às quartas e encheríamos a cara às sextas e receberíamos o restante da galera aos finais de semana para festas do pijama – Tara ri, amargo e sem vida e tão excruciante quanto o choro de outrora. – E agora eu estou aqui. Cursando cinema, tendo noites do pijama e enchendo a cara na cidade que nunca dorme. Na cidade que eu detesto saber, detesto lembrar, que ela adorava. E eu estou fazendo tudo isso sem ela, simplesmente porque ela decidiu foder com tudo que tínhamos ano passado. O quão fodidamente irônico é isso?

Um soluço é abafado, e a tentativa de Tara de limpar a gotícula d'água na maçã de seu rosto é inútil quando elas continuam descendo sem parar.

- Eu tentei ignorar isso, sabe? Esquecer. Eu tentei tanto. Tentei fingir que estava tudo bem. Que eu estava bem. Que eu tinha seguido em frente. Afinal, Mindy e Chad conseguiram. Sam, apesar de tudo, estava conseguindo. O namorado dela ser o ghostface não era o que a mais perturbava nessa história toda. E, se eles haviam conseguido, eu também deveria, certo? Se Sidney Prescott conseguiu depois que o namorado psicopata e traidor matou todos que ela amava, incluindo a mãe dela, então por que eu não conseguiria? Por que caralhos eu não consigo, caramba?

Não é somente uma queixa dessa vez; uma pergunta retórica banal. Era um apelo. Um pedido de ajuda no qual Kirby passou anos esperando pela resposta. E nada pareceu o suficiente para os questionamentos que ela tinha.

Até agora.

- Porque você a amava – Escapa tão depressa, que é preciso um átimo para detetive se dar conta de que os dizeres escorreram de sua própria boca. – Porque você a conhecia. E você a amava. E você se importava com ela como se ela fosse sua família. Porque ela era. Até aquele fatídico dia, Amber era sua família. Os braços com o qual você podia contar quando tudo ao seu redor desmoronava. Sua melhor amiga; sua parceira; sua… – Kirby vacila, o tremor óbvio em seu timbre que não deveria estar lá quando ela está empenhada em ajudar essa garota. Seus olhos, que Kirby sabe que estão marejados porque Tara está começando a ficar embaçada em sua linha de foco, fogem dos da Carpenter por um milésimo de segundo antes de voltarem para a mesma. – sua amante. E, quando essa pessoa te machuca; quando a pessoa com quem você fazia planos para o futuro e mais confiava na face da terra, traí você da forma que elas… – Ela engole a seco. – da forma que ela fez, isso destrói algo dentro da gente. Algo que eu gostaria de ter a resposta para você de como fazer para curar. Como consertar. Mas… eu meio que ainda estou tentando descobrir por conta própria.

E lá está Tara, atenta, encarando-a com expectativa. Um cintilar de realização e simpatia quando as peças se encaixam.

- Jill – É dito, assim como Kirby fez, não com horror ou choque, mas com entendimento. Uma veracidade que somente aqueles que passaram por isso são capazes de compreender.

É estranho, ter alguém reconhecendo seus sentimentos tão bem enterrados e escondidos em voz alta. Parece… certo e tão profundamenteerrado. Um nome que deveria fazê-la sorrir abertamente só de escutar. Uma história que talvez Kirby tivesse orgulho de contar se Jill - nas palavras de Tara - não tivesse escolhido foder com tudo.

Kirby, assim como a mais nova, não nega. Não se explica - pela primeira vez, não há necessidade -. Por quase um minuto completo, ela não faz nada além de mexer tenuamente o pescoço e sugar o beiço.

- Éramos amigas desde o sétimo ano – Começa, oscilante, mexendo ansiosamente com a cutícula mal feita. – Tínhamos nosso grupinho, assim como vocês. Mas… na maior parte das vezes, éramos apenas eu e Jill. Olivia também, a partir do ensino médio – A lembrança traz um sorriso abatido. – Eu não… não me recordo exatamente quando ou como eu me apaixonei por ela. Mas, quando eu me dei conta disso, eu não surtei. Não entrei em pânico. Na verdade, me pareceu… certo, na época. – O "às vezes ainda me parece certo” passa sem ser dito. – Me lembro de pensar que tinha demorado muito, até. Jill era alegre, radiante de uma maneira única. O tipo de pessoa que sabe que é bonita e faz bom proveito disso. Popular, mas nunca esnobe como você geralmente espera que seja. Eu ser só mais uma na lista de idiotas apaixonados por ela não foi surpresa.

Há uma pausa, e a detetive respira fundo, aperta as pálpebras para afugentar as lágrimas. De repente, Kirby se lembra do porquê passou anos sem falar sobre isso; o porquê de Jill ser um assunto proibido.

Porque, junto com as recordações, vêm as sensações com as quais ela lutou tanto para deixar para trás. As cicatrizes que bala ou faca alguma poderiam causar. A dor; o peso da traição; a raiva. Oh Deus, a raiva. Kirby não tem certeza se um dia ficará inteiramente livre dela.

Aquela fúria que corrói. Que nubla seu julgamento; que você consegue sentir formigar em sua pele, da extremidade dos pés até que consuma cada parte boa restante. Uma raiva que queima e arde. Queima em seus ossos, peito, olhos e garganta. Que a faz querer chorar até atingir a exaustão e gritar até perder o fôlego.

Kirby quase se esqueceu do quão torturante era.

- Era recíproco?

Ao menos isso é fácil de responder. Kirby não precisa pensar muito porque ela sabe precisamente o que declarar quando abre a boca. Exceto que, ao fazer, nada sai. Porque, será que realmentenão era correspondido? Nem mesmo um bocado?

Claro, durante o dia - e a maioria das noites - elas eram Kirby e Jill - e Olivia -, melhores amigas inseparáveis. Mas, também havia aqueles momentos, quando a noite caia e ambas estavam bêbadas demais, ou tristes demais, ou Jill havia acabado de brigar com Trevor de novo, e era tarde e escuro o bastante para ninguém ver. Aquelas incalculáveis e preciosas ocasiões onde não remanescia nada nem ninguém além delas e das estrelas na penumbra da madrugada; onde as mãos eram perfeitamente encaixadas debaixo do cobertor e os lábios eram suaves e precisos um contra o outro na calada da alvorada.

Nada nunca era mencionado na manhã seguinte e nada nunca ficava estranho. Como um acordo tácito decidido ao longo do caminho. No entanto, as promessas ainda eram as mesmas, e o toque era tão gracioso quanto. E se Kirby fechar os olhos, ela ainda pode sentir…

Não. Ela não está voltando lá. Não mais.

- Eu não sei – É o melhor que ela pode dizer. – Jill era… complexa, mesmo antes de tudo acontecer. Ela sabia como te fazer se sentir especial. O único problema era que você nunca sabia se era especial de fato, ou se ela estava te fazendo se sentir assim para benefício próprio. – Há um breve instante de calmaria, de entendimento mútuo, e então: – Você se lembra lá no cinema, quando eu contei que dei uma enlouquecida? – Tara assente. – Pois é, eu não acho que isso teria acontecido se Jill estivesse bem e não envolvida na merda toda. Mas, quando eu acordei e perguntei por ela e fiquei sabendo o que ela fez… isso me destruiu. Literalmente. Saber que minha melhor amiga; que a garota por quem eu estava apaixonada pôde ter feito o que fez… – Um suspiro exaurido escoa. – levou meses para que eu pudesse pensar em começar a me recuperar. E eu sinto que o pior, pior do que a bagunça que elas fizeram e caos que elas nos deixaram, são as…

- As perguntas – Tara termina por ela, concordando repetidamente. – A incerteza.

Kirby acena.

- Será que alguma parte disso foi real? Elas foram mesmo honestas quando disseram aquilo daquela vez? Elas genuinamente se importavam? Será que ela me amava mesmo ou foi tudo um ato? Um aquecimento para brincadeira de verdade?

Kirby arfa, o início de um baque enervante na base de sua nuca fazendo-a levar a ponta dos dedos a têmpora. Ela perde o lampejo de culpa que cruza o olhar de Tara com o gesto.

- Não pode ter sido tudo mentira, não é? – Vem sussurrante e cauteloso. Os olhos castanhos de outrem repletos de pavor e receio quando Kirby tira a mão do rosto para fita-la. – Eu sei que não há desculpa para merda que elas fizeram e eu não estou tentando arrumar uma, mas… elas se importaram em algum ponto, certo? N-não… não pode ter sido tudo um fingimento. Por favor, me diz que não, Kirby.

E, foda-se, Kirby preferiria tomar mil facadas do que ter que ver essa garota que mal começou a viver soar tão quebrada.

- Não – É singelo, apesar de tudo. Ou talvez uma mentira que ela mesma queira acreditar. Porque não pode ter sido tudo mentira. Kirby conheceu Jill aos doze anos, e ela põe a sua mão no fogo pela menina encrenqueira e risonha que ela conheceu naquela época. Não é mentira porque Kirby viu as fotos de Tara e Amber, os braços em volta da cintura e o beijo na testa e aquele tipo olhar e sorriso não pode ser forçado. – Não, garota, foi real. Pelo menos parte daquilo foi real.

Seu corpo dói. Seu crânio dói. E as fisgadas em seu abdômen estão voltando. Mas, mesmo assim, Kirby se estica para frente - apenas um pouco, nada arriscado demais - e alcança uma das mãos de Tara.

Ela sorri quando o aperto é devolvido.

- Você… uh, você acha que um dia eu vou ser capaz de seguir em frente? – Tara questiona, um leve calafrio alastrando-se por sua pele, receio tangível em sua fala. – Porque eu gosto do Chad. Gosto mesmo. Mas… mesmo assim, sempre que eu fecho meus olhos, é ela quem eu vejo. Toda vez que ele sorri para mim, eu vejo o sorriso dela. Porra, eu… eu o amo, mas eu não consigo parar de pensar que deveria ser ela. Que Amber é aquela com quem eu deveria estar realizado tudo isso. Quem deveria estar me beijando. Me segurando; me abraçando. Cuidando de mim. E eu detesto esse sentimento. Odeio olhar em volta quando estamos rindo e nos divertindo e procurar por ela, esperando que ela possa estar buscando por mim, assim como costumava ser. E eu, especialmente, odeio ela. Eu a odeio, e eu a amo e eu sinto tanta falta dela.

A pressão na mão de Kirby aumenta, e não há nada que a detetive possa fazer quando Tara esconde a cabeça na palma da mão livre. Quando a barreira se rompe e essa garota começa a chorar e soluçar tão angustiada e desesperadamente; como se tivesse - e talvez ela, deveras, tenha - passado esse ano inteiro sem desmoronar. Sem derrubar uma maldita lágrima desde que tudo aconteceu.

Por um instante, apenas por um mísero segundo, Kirby desejou que se mover - respirar - não doesse tanto. Porque então ela poderia levantar daquela maca horrenda e acolher essa menina em seus braços. Ela não pode - não consegue -, porém.

Kirby a segura firmemente, portanto. Já que é a única coisa que está ao seu alcance. Ela retribui o enlaço em seus dedos - como se o simples ato pudesse sugar um terço da agonia da garota e transferi-la para si -, buscando lhe passar o máximo de conforto possível e a deixa sentir. Deixa que Tara se liberte daquilo que ela vem segurando por meses agora. Inferno, ela mesma se pega chorando baixinho com as memórias trazidas à tona.

Cinco, dez, vinte minutos. Kirby não tem plena convicção de quanto tempo se passa. Mas, gradualmente, Tara começa a se acalmar, a respiração entrando e saindo com mais facilidade, o tremelique em seus corpo diminuindo drasticamente. E é quando o pranto para completamente e a quietude volta a reinar sobre o cômodo, que Kirby finalmente diz algo.

- As pessoas dizem que a vida segue em frente, mas esquecem de contar que, às vezes, o tempo congela só para você.

Tara bufa, se apressa para secar os resquícios de água em seu queixo com a gola da blusa.

- Gostaria que as pessoas não esquecessem de mencionar algo tão importante.

Há um sorriso sorrateiro em seus lábios com o comentário, e Kirby se pega dando um riso molhado.

- É, garota, eu também.

Uma enfermeira passa correndo pelo corredor, murmúrios afobados a seguindo.

- Você vai ficar bem – Kirby irrompe, semblante sereno e sorriso doce.

- Você acha?

A detetive acena.

- Eu fiquei – Ela dá de ombros trivialmente. – E eu estava totalmente por conta própria. Mas você… você tem todo um grupo de apoio ao seu lado, Tara. Sua irmã, Chad, Mindy. Inclusive Gale e Sidney.

- E você.

A sugestão - tímida e insegura - faz um sorriso de orelha a orelha desabrochar na mulher mais velha.

- É. Você, todos vocês, tem a mim também.

- Sabe… – Um intervalo dramático é feito, e Tara sorri, covinhas aparecendo na lateral da bochecha. – Você não precisa mais ficar por conta própria, se não quiser. Você mesma disse, nós fazemos parte da mesma família maluca e disfuncional. Está presa ao quarteto top agora – O pescoço de Tara pende para frente, decepção estampada em sua face. – Por favor, não diga ao Chad que eu usei esse apelido.

Kirby ri, descansando a mão sobre a barriga quando o arrependimento bate imediatamente.

- Droga, pequena Carpenter. Não me faça rir – Sua cabeça tomba contra o travesseiro com um gemido dolorido, riso fácil ainda iluminando sua feição.

O nariz de Tara se enruga, beiço comprimido numa linha tênue e divertida em um pedido de desculpas silente.

- Eu… olha, estou falando sério, ok? Você tem um lugar conosco. E eu não falo só por mim quando disso isso – Tara considera, revira as órbitas com deleite ao recordar-se de algo. – Quer dizer, não é como se Chad não tivesse te achado uma fodona total. E Sam, apesar de não admitir, pensa o mesmo desde o ensino médio.

E isso não deveria fazer Kirby corar. Mas faz. E ela reza para que Tara não perceba a diferença.

- Oh. – É tudo que ela diz. Oh. Deus, ela continua sendo uma otária por mulheres bonitas mesmo quando elas não estão por perto.

- E Mindy… bom, Mindy vai ficar insuportável por ter acertado.

A sobrancelha direita de Kirby se eleva. Lábios franzidos em confusão pura.

- Sobre… eu não ser o ghostface?

- Oh, não – Tara gargalha. – Não, ela definitivamente desconfiou de você nisso. Sobre você gostar de mulheres.

Ah. Claro.

- Quem gosta de mulheres?

Como em uma brecha perfeita - sério, Kirby já assistiu a filmes de terror onde demônios demoram mais para responderem a uma invocação -, Mindy entra pela porta, colher de plástico pendurada na boca, pote de pudim de chocolate em mãos.

- O que? – Mindy indaga quando olhares questionadores pairam sobre ela. – Eu estava voltando pro quarto do Chad e acabei ouvindo. Não posso fazer nada se vocês soltam essa informação pro mundo escutar.

Ela gesticula despretensiosamente, e Tara sacode a cabeça em descrença cômica.

- Bom te ver também, Mindy – Kirby saúda com sarcasmo, uma lufada de ar lhe escapando quando Mindy senta-se com um pulo na beirada de sua cama.

- Hey, Kirby – A Meek pisca, estalando os dentes num charme forjado e, se cada centímetro do corpo da detetive não estivesse latejando agora, ela poderia arriscar um chute na garota. – Então… – Ela arqueia as sobrancelhas sugestivamente, lambe o restante do doce nas bordas da colher. – De quem estávamos falando? Porque, eu vou ser sincera com vocês, eu senti uma vibe vindo daquela enfermeira… Danvers, o nome dela, eu acho. Extremamente gostosa.

Tara abaixa o olhar, cruzando os braços e abafando uma risada.

Mindy grunhe quando, novamente, nada é dito.

- Escutem, eu acabei de perder minha namorada e meu irmão mal sobreviveu a um filha da puta mascarado. De novo. Eu preciso de uma distração, tá legal? – É jogo baixo, e Mindy sabe. – Qual é, um nomezinho. Por favor.

Kirby suspira derrotadamente, porque, caramba, ela detesta ter um fraco por esses adolescentes.

- Eu… – A loira hesita, mordisca a ponta da língua. Que seja, não é se ainda fosse verdade, de qualquer modo. Mais ou menos. – Eu costumava ter uma queda por Sidney Prescott.

A revelação não passa de um cochicho atrapalhado e constrangido. E Kirby conta acurados cinco segundos antes de:

- Oh meu Deus, eu sabia! – Mindy gargalha, juntando as palmas das mãos com entusiasmo, e a careta que Tara lança para a detetive não pode ser descrita como nada além do mais puro e tradicional “eu avisei”. – Eu posso ser horrível quando se trata de ghostfaces, mas meu gaydar é incrível. Puta merda. Sidney Prescott… está brincando comigo?

- Oh não. Ela com certeza não está – A voz enrouquecida que ecoa pelo recinto não parte de nenhuma das três, e todos os pescoços se voltam para a figura de cadeira de rodas na porta, a pose classuda e soberba sempre presente mesmo dado as circunstâncias. – Kirby costumava segui-la como um cachorrinho abandonado implorando por atenção antigamente, não é, Reed? Olhos brilhando como os de uma criança na Disney toda vez que Sid entrava na sala. Foi surpreendente você nunca ter derrubado uma baba sequer.

- Com todo respeito, vai se foder, Gale – O xingamento é dito com vontade, mas não há um pingo de ressentimento em seu tom, sorriso carinhoso marcando presença ao fitar a jornalista com uma idolatria jamais admitida.

Gale sorri de volta, e lhe envia um maneio ligeiro. Um movimento que diz mais do que elas são aptas de expressar uma para a outra. Kirby devolve no mesmo instante.

- Ok, isso – Mindy se anima, aponta o indicador com um balançar incessante para a repórter. –, isso sim é notícia de primeira linha, Gale Weathers.

Kirby imerge contra o travesseiro com uma reclamação audível, resiste à vontade de esconder o rosto avermelhado sob os lençóis.

- Hey, eu não estou julgando – Se adianta Mindy ao ver a reação de outrem. – Eu conheci a mulher ano passado, e ela ainda está tão gostosa quanto era dez anos atrás.

- Oh Deus – Kirby choraminga, rolando as órbitas enquanto tenta manter afastado o riso que esforçar-se para se libertar.

- O que? Eu não estou mentindo. Tara, estou mentindo?

- Eu acho… – Tara pondera, mirando Kirby com contentamento. – que você tem um gosto bem específico para mulheres.

O maxilar de Kirby cai, expressão absolutamente abismada e atônita tomando conta.

- Eu… eu não… o que?

- Você tem um tipo – Mindy alega, como se fosse óbvio. – Todo mundo tem um tipo.

- Eu não.

- Ptz, por favor – Gale zomba, sem tirar os olhos da revista que só Deus sabe da onde ela tirou.

- O que isso deveria significar? – Há um vinco surgindo na testa de Kirby, boca entreaberta com impaciência.

Gale levanta o queixo, sorriso arrogante enfeitando seus lábios que faz Kirby entender o porquê de essa mulher já ter levado tantos socos. Céus, ela acrescentaria mais um à lista se não estivesse debilitada.

- Eu só estou dizendo… eu sou uma repórter, é meu trabalho observar o meu arredor – E é isso. É tudo que ela diz com um gesto desleixado antes de voltar ao catálogo de moda. Kirby nem sabia que Gale Weathers poderia ser desleixada se quisesse.

O pior, contudo, é o lampejo de conhecimento que pulsa nos azuis alheio. O ar de sabedoria e lucidez que indica que Gale sabe e não está se referindo a Sidney ou Jill.

O mero pensamento faz Kirby corar e estremecer.

- Ok…? – A concentração de Mindy intercala entre as duas, Tara espelhando a reação e espreitando Kirby de relance. – Eu não tenho ideia do que rolou aqui, mas o que interessa é que você, Agente Reed, gosta de mulheres e tem um tipo sobre o qual nós vamos conversar a respeito, porque Chad ainda está dormindo e eu estou entediada o suficiente para rodar esse hospital bancando o cupido.

- Por favor, não.

- Por que não? – A pergunta parte de uma Tara genuinamente curiosa.

- Sério? Até tu, Brutus? – Kirby a encara com indignação notória, e a Carpenter encolhe os ombros, mãos discretamente alçadas em rendição e carranca falsamente culpada. O sorriso, todavia, não exibe fração de remorso quando as covinhas começam a marcar as dobras de sua bochecha.

- Tara tem razão. Por que não? – Apoia Mindy, tronco voltado diretamente para a detetive. – Nunca se sabe, o amor da sua vida pode atravessar por essa porta a qualquer momento.

- Ah, sim. Claro. Eu vou só… estalar os dedos – Ela o faz, sorriso emanando deboche. – e bum! Mulher bonita entrando.

Kirby vê Mindy revirar os olhos, a morena prestes a argumentar quando, sem aviso, um grito sussurrante ressoa abruptamente no cômodo.

- O que diabos vocês estão fazendo aqui?

A boca de Mindy se abre, permanece nesse estado por bons 10 segundos, e se fecha logo depois. Ela repete a ação pelo menos mais umas três vezes. Seu foco indo e voltando da figura de pé para Kirby até que ela finalmente enuncie:

- E eu quero um milhão de dólares – A garota reproduz o gesto alheio, estalando os dedos com ceticismo. É o bastante para fazer Tara e até mesmo Gale caírem na gargalhada.

Kirby por outro lado… bom, talvez ela realmente tenha um tipo. Talvez ela tenha um fraco por morenas mentalmente instáveis que saibam como empunhar uma pistola. Porque, repentinamente, ela esquece de como soltar o ar preso em seus pulmões - e ela tem quase certeza que a máquina ridícula registra um pico diferente em seus batimentos - quando Samantha se aproxima.

Porra.

- Eu deixo vocês sozinhos por, o que? Uma hora, uma hora e meia. E vocês fazem uma festa no quarto de alguém que deveria estar descansando? Vem importunar uma pessoa que vocês mal conhecem?

- Ei! – Mindy protesta, uma mão repousando na perna de Kirby e outra no próprio peito, ofensa singela em sua face. – Não fala assim. Somos melhores amigas.

Dois tapinhas são distribuídos no calcanhar da loira, e Kirby se pega prendendo a parte interna da bochecha entre os dentes, dá o seu melhor para continuar imperturbável e ranzinza com o comentário quando o sorriso casto pinica para sair.

- E você – Sam se vira para Gale; ignora a manifestação com um rápido arregalar de olhos. –, você quase morreu, Gale. Nem deveria ter estar fora da cama.

- Não seria uma novidade, querida – Rebate a jornalista, desinteressada. E, se Kirby não soubesse do que essa mulher é capaz, ela acharia adorável a maneira como o rosto de Sam se contorce num misto de irritação e preocupação.

Samantha exala nitidamente, cobrindo as pálpebras com a palma da mão; massageia as têmporas como uma mãe exausta.

Fofo.

Como se escutasse seus pensamentos, Sam volta-se para ela pela primeira vez desde o cinema.

Os ombros da morena caem, ruga ao redor dos olhos suavizando.

- Hey – Ela cumprimenta, canto da boca repuxando-se calorosamente. – Como você está?

Kirby sorri na mesma intensidade, torce para que o maldito aparelho em seu dedo não a traia.

- Eu vou sobreviver – Replica, e, se seus olhos demoram-se mais do que deveria nos bíceps alheios antes de cair nos cortes do antebraço, você não pode culpá-la. – Você está bem?

Sam segue seu olhar, dedilha o esparadrapo com cautela ao entender.

- Não foi nada – Uma pausa. E Sam parece incerta ao brincar com um riso nervoso: – Você deveria ter visto o outro cara.

Ah, o bom e velho humor ácido. Yep, Kirby definitivamente tem um tipo. E ela definitivamente pode ter uma paixão estúpida e inapropriada por Samantha Carpenter.

- Bem… – Kirby ri, mais impressionada do que provavelmente deveria. – se for minimamente parecido com o que você fez com o Greg na queimada entre turmas, eu sinto muito por ele.

- Eu… como… – Sam gargalha, baixo, chocado e lindamente despojado de um jeito que Kirby mataria para ver com mais frequência. – Não acredito que se lembra disso.

Sam a contempla com uma espécie de fascínio indecifrável e riso maravilhado, e Kirby os considera parcialmente responsável - junto com a anestesia e seu cérebro inútil - pelo peso demasiado que as próximas palavras proferidas carregam.

- Você é bastante inesquecível, Samantha Carpenter. Mesmo naquela época.

Kirby umedece o beiço - xinga e apedreja-se internamente ao se dar conta do que disse -, e ela pode, literalmente, ouvir seu coração errar uma batida enquanto admira a vermelhidão subir pelo torso de Sam; quando a morena abaixa a cabeça com um sacudida envergonhada, lábio inferior entre os dentes contendo um sorriso incrédulo. 

- Puta que me pariu! – É a exclamação de Mindy quem a tira de sua bolha particular. – Puta merda, você tá zoando com a minha cara. Eu… – Ela tampa a boca com um tapa descoordenado, estrangula uma risada com a ação.

Kirby não sabe precisamente o que a fez perceber. Se foi a adoração refletida em seus olhos, o sorriso de adolescente encantada, o batimento descompensado ou a situação num geral. Mas basta um olhar para Kirby deduzir que Mindy sabe. Porque é claro que Mindy.

Ela pensa seriamente em mandá-la ficar quieta, mas levantaria mais suspeitas. Então Kirby somente espreme os lábios um no outro, pisca repetidamente em um pedido - uma súplica, um clamor - desesperado para que, pelo menos uma vez na vida, Mindy não banque a espertinha.

- Foi mal – Mindy empenha-se em manter-se séria, mesmo que seus ombros estejam tremendo e seus olhos marejados por segurar a risada. Kirby espera pelo pior. – Foi mal, eu só… lembrei de uma piada escrota que Chad me contou – Explica casualmente para o restante das mulheres lhe encarando com estranheza. Kirby respira aliviada. – Vocês podem voltar a flert… – Ok, dane-se a dor, Kirby é rápida em desferir um chute forte, mas discreto na garota. – conversar! Vocês podem voltar a conversar. Jesus.

- O q… – Sam morde a língua, desiste do que quer que fosse dizer ao compartilhar um careta comicamente desgostosa com Kirby, que ri da reação. – Quer saber? Eu não vou perguntar. Não. Ao invés disso, eu vou levar você – Ela se move para trás de Gale, envolve os dedos ao redor do pegador de borracha da cadeira de rodas. –, de volta para seu quarto, que é de onde você nem deveria ter saído depois da cirurgia pela qual passou. E quando eu voltar…

- Oh, pelo amor de Deus – Gale explode, se vira para Sam o máximo que pode na posição em que está. – Quando você voltar, você vai sentar aqui com essas três crianças…

- Eu tenho trinta anos – Sai murmurado e exaurido e completamente desprezado pela repórter, que continua o monólogo sem interrupções.

- … conversar sobre seja lá o que nerds falam e descansar. Ou vá pra casa transar. Ou literalmente qualquer outra coisa. Só… relaxa, mulher – Sam abre a boca. – E não foi uma sugestão.

Um silêncio absoluto domina o ambiente, e as quatro mulheres se entreolham de canto.

- Agora você pode me levar de volta – Gale ordena com tranquilidade, sorriso arrogante de quem disse tudo que precisava.

- E depois eu quem sou mandona – Samantha reclama através de um sussurro, arrastando Gale porta a fora.

A jornalista se despede com um titubear de dedos digno de realeza, e seu riso conhecedor paira sobre Kirby uma última vez.

- Estou apostando em você, Reed. Faça valer a pena. – E com isso ela se foi, e Kirby está centrada demais no que acabou de ser dito para notar Mindy pular da cama e ir até o corredor.

- Ok, o que foi aquilo? – Tara dirige-se a Mindy, segue a amiga com os olhos enquanto a mesma retorna com um sorriso de gato cheshire no rosto. – Você odeia todas as piadas do Chad.

- Óbvio, ele é péssimo nisso. A nova informação que eu recebi, no entanto. Isso sim é de qualidade.

É mais do que o necessário para trazer Kirby à realidade.

- Mindy, não.

- Oh, Mindy sim – A gêmea rebate, sorriso travesso crescendo.

- Mindy, eu juro por tudo que é mais sagrado…

- Kirby tem uma queda pela Sam!

Um rosnado exasperado vaza de Kirby ao mesmo tempo em que as órbitas de Tara crescem de tamanho.

- Nem fodendo? – Ela dá um pulinho que seria excepcionalmente cativante em outro contexto. – Oh meu Deus, isso é incrível! – Um movimento excitado para agarrar o bíceps de Kirby é feito, mas Tara para no meio do processo ao avaliar o estado da detetive. – Por que não me contou?

- Porque… – Kirby se embola, mexe com as mãos freneticamente. Negar não vai adiantar nada a essa altura. Não quando ela está corando como um tomate com a misera insinuação. – Porque é só um crush ridículo que vai passar assim que eu voltar para Atlanta! Além do mais, não é como se eu tivesse uma chance real. Ela tem namorado, esqueceram?

- Eu não sei… – Mindy reflete, pescoço ziguezagueando de uma lado para o outro. – Danny parece ser um cara legal, sim. Mas…

- Eu acho que você deveria investir – Tara a corta, roendo o canto das unhas em uma mania ansiosa, e ela soa muito mais sisuda do que a ocasião pede. – Olha, eu juro que não sei de nada, mas meu sexto sentido de irmã mais nova diz que você deveria pelo menos tentar.

Kirby a analisa, negligencia a chama de esperança que queima em seu âmago.

- Eu acho… que você só está dizendo isso porque gosta de mim e quer me manter na família.

Tara ri alto, decide jogar junto.

- Claro, Kirby. Você está absolutamente certa. Digo, pra que uma cunhada nerd quando eu posso ter duas, não é mesmo?

- É disso que eu estou falando, cara. O reconhecimento merecido e uma parceira de filmes decente. Já era hora, caramba.

Kirby ri, mais um bufo em forma de risada do que qualquer outra coisa, e ela não pode resistir ao impulso quando o punho fechado de Mindy se ergue no ar, a mesma abrindo e afastando a mão lentamente ao ter o gesto retribuído, um pequeno “boom” de efeito sonoro seguindo.

Uma risada afetuosa vem da entrada.

- Gale tem razão. Pode ser uma péssima ideia deixar vocês serem amigas – Declara Sam, escorada no batente da porta, braços cruzados sobre o peito.

Há uma bolsa roxa sob seus olhos, e seu sorriso é cansado, embora de terno. A ponta de seus dedos tremem contra pele cortada, resultado da falta de nicotina, se Kirby tiver que adivinhar. A detetive ainda a acha de tirar o fôlego.

- Tarde demais para isso – Mindy protesta, elevando o pulso em soquinho para Kirby novamente.

A agente a encara com deleite e desdém ilusório.

- Nós não vamos fazer isso sempre.

- Nós vamos. – Devolve a garota, inabalável. – Mas eu vou deixar passar dessa vez. Enquanto eu penso num toque digno.

A resposta de Kirby se limita a um rolar de olhos afeiçoado e divertido. E a loira amolece quando Sam ri junto da interação.

- Não quer mesmo um pouco de paz? – Samantha certifica-se. – Eu posso…

- Sam, está tudo bem! – Kirby a tranquiliza, sequer a deixa finalizar. – Sério, eu aprecio a companhia – Ela repete as exatas palavras que dissera a caçula mais cedo.

Exceto que, ao contrário de Tara, Sam parece ver por detrás da gentileza. Consegue enxergar o medo borrado e escondido nas bordas da superfície. O aterrorizado e não proferido “por favor, não me deixe. Não me deixe acordar sozinha e abandonada de novo. Por favor. Por favor. Por favor”. A oração não projetada e camuflada por seus olhos afáveis.

Pela primeira vez em muito anos, Kirby encontra alguém que a enxerga. Que genuína e inteiramente a veja mesmo por entre as mentiras fajutas e dar de ombros desinteressados e ainda escolhaficar.

- Ok – É tudo que Sam diz, sorriso ameno ao se permitir cair no miúdo sofá branco do cômodo com um baque surdo. – Vamos ficar.

Há uma troca de olhares agradecido. Um “obrigada” não dito. E então:

- Hey, Reed, Tara já comentou sobre o gosto horrível que ela tem para filmes? – Mindy questiona, pitada de escárnio em sua voz ao voltar a se aconchegar no pé de sua cama.

O queixe de Tara torce para o lado em indignação.

- Não é horrível. É refinado! Sinto muito se você não sabe a diferença.

 - Eu sei a diferença, é por isso que tenho propriedade para falar. Mas, ei, tudo bem, acredite no que quiser, meu bem. O que quer que te ajude a dormir à noite.

Kirby compartilha um sorriso sorrateiro com Sam - que dá a ela aquele olhar de “foi escolha sua” do qual Kirby só pode rir -, retorna sua atenção para a morena mais nova em seguida.

- Ok, pequena Carpenter. Me dê mais detalhes e eu escolho de que lado ficar.

 

[...]

 

Honestamente, Kirby não tem ideia de como a conversa evolui da preferência cinematográfica de Tara para se Ross traiu ou não Rachel - porque, aparentemente, nem mesmo os nerds fanáticos por filmes de terror podem resistir aos encantos de Friends -. Ou em que momento da discussão entre quais os melhores assassinos slashers do cinema e as séries clássicas dos anos 90, ela acaba adormecendo.

A última coisa que Kirby recordar-se é da gargalhada de Tara ricocheteando pelo espaço quando Mindy discorda de Sam - Carpenter acabou de dizer que Buffy era sua série preferida dos anos 90? Kirby está escolhendo lutar por essa mulher nesse mesmo instante se for isso - em algum tópico. O nome de Chad sendo mencionado não muito depois em uma memória que faz as três rirem.

Ela não vê quando Mindy sai do quarto para checar o irmão; ou quando as irmãs Carpenters sentam-se sob um silêncio confortável, a verificação silente para saber se está tudo bem, a bochecha de Tara repousando no ombro de Sam como resposta. E Kirby, decerto, não está ciente da maneira na qual Samantha adormece na cadeira ao lado de sua maca, o modo atencioso com o qual Tara planta um beijo casto na testa da irmã e na bochecha da própria Agente antes de retirar-se e deixá-las sozinhas.

Kirby está vagamente ciente, no entanto, de uma mão pressionada na sua durante a madrugada. De ouvir um “estou feliz que esteja bem” aliviado e timidamente murmurado. E quando a detetive acorda na manhã seguinte - muito bem acompanhada, obrigada. Chupem essa pesadelos malditos -, com Chad numa cadeira de rodas dando a ela um sorriso comedor de merda de quem sabe todos os seus segredos, Kirby decide que, talvez, ela acabe ficando em Nova York por mais algum tempo.