
1.
Ao levar Yelena para dentro de sua casa, Sam se sentiu como uma criança chegando com um cachorro de rua. Bem, de fato havia um cachorro, Fanny seguia sua dona por todo canto. Sarah e os meninos já haviam saído, mas Bucky provavelmente ainda dormia no sofá ou qualquer coisa do tipo. Quando ele entrou, o super soldado estava lavando louça.
— Nada disso, Fanny. Você fica aqui fora por enquanto — ela advertiu a cadela, usando uma voz fina que Sam quis ter gravado.
— Buck, nós temos visita — anunciou.
No momento em que o ex-assassino se virou para ver quem passava pela porta, o prato na mão dele se estilhaçou no chão.
— Rooskaya? — ele balbuciou, os olhos azuis petrificados.
— Zimniy Soldat — ela quase cantarolou.
Sam sentiu seu sangue gelar. Nunca era um bom sinal quando alguém se referia a Bucky assim. Entretanto, antes que sequer tivesse a chance de abrir a boca para perguntar que porra estava acontecendo ali, Bucky e Yelena colidiram um com o outro. Não lutando, mas abraçados. Se segurando um no outro como uma tábua de salvação. Ele nunca tinha visto Bucky abraçar alguém desse jeito, com tanta força, como se ele estivesse inteiramente grato e aliviado apenas pela existência dela.
— Você cresceu — foi a primeira coisa que ele disse depois de soltá-la.
— E você virou uma dona de casa — ela apontou para o avental de bolinhas pendurado no super soldado.
E Bucky riu. Certo, Bucky agora era muito mais aberto à emoções do que era quando Sam o conheceu, mas não deixava de ser uma surpresa.
— É bom te ver livre — ela concluiu.
— Você também... — ele se calou por alguns segundos — Acho que eu nunca soube o seu nome.
— Yelena — ela estendeu a mão direita, um sorriso solene estampando os lábios.
— Bucky — ele apertou a mão dela, uma lágrima hesitante escorrendo pela face.
E eles se olharam com algo indecifrável, uma conversa tácita e codificada, pertencente somente aos dois. Sam não perguntou nada, o que quer que houvesse ali, era muito pra desempacotar.
2.
Yelena acabou se tornando uma inquilina nem tão temporária.
Não que isso fosse uma coisa ruim, as crianças a adoravam, Sarah a adorava (especialmente quando elas se uniam para transformar a vida de Sam num inferno), até mesmo Alpine, a gata diabólica de Bucky, a adorava. E claro, Fanny estava inclusa no pacote.
Mas se ele imaginou que Yelena e Bucky teriam uma convivência tranquila, ele errou e errou feio. Eles pareciam duas crianças. As duas crianças ex-assassinas mais irritantes com quem ele tinha o desprazer de trabalhar.
— Anda logo, Rooskaya, falta só um quilômetro — Bucky provocou durante a corrida matinal.
— Só um, é? Vou te fazer comer poeira, Soldat — ela riu em escárnio.
Os apelidos agora eram rotina, Sam percebeu. E nunca era de maneira aleatória. Quando os dois estavam de bom humor, era Soldat e Rooskaya. Quando o assunto era sério, Buck e Lenochka. Em raros momentos de afeição, alguma coisa em russo como Brat e Sestra, que ele não fazia a menor ideia do que significava. Quase nunca Bucky e Yelena. E o super soldado jamais a repreendia por como ela o chamava.
— Vocês já começaram? Não são nem sete da manhã — reclamou.
— Quem perder lava a louça do café — ela apontou para Bucky, sem perder o ritmo.
— Fechado — ele riu de canto — Vai entrar na aposta, Sam?
— Eu passo, divirtam-se crianças — e apenas observou o caos acontecer.
Yelena ganhou. Na base da trapaça, mas ganhou.
— Seja feliz com os pratos, Soldat — ela correu escada acima, deixando os dois homens sozinhos na cozinha.
— Soldat — murmurou — Da última vez que eu ouvi alguém te chamar assim, achei que você fosse arrancar a cabeça do Zemo.
— Bem que deu vontade — Bucky riu, colocando detergente na esponja.
— Mas da Yelena você não reclama. — apontou.
E os olhos de Bucky se perderam por um instante em algo que se parecia com ternura.
— Não machuca quando vem dela.
3.
Com o tempo, Sam soube ao menos um pouco sobre o passado de Bucky e Yelena na Sala Vermelha, bem, na verdade tudo o que sabia era que ele a havia treinado quando pequena, e era só o que precisava saber. Não é o tipo de história que você revira. Mas certas coisas faziam muito mais sentido agora. Como os apelidos, as demonstrações estranhas de afeto, e cenas como essa: Bucky trançando o cabelo de Yelena antes de uma missão enquanto os dois discutiam fervorosamente em russo. Sam achava que cedo ou tarde precisaria comprar um dicionário, ao mesmo tempo em que acreditava que talvez o assunto simplesmente não fosse da sua conta.
— ты влюблен в него — disse ela, um sorrisinho zombeteiro nos lábios.
— Прекрати это — as mãos de metal e de carne puxaram o cabelo loiro com mais força.
Sam e Joaquín observavam a cena no mais absoluto silêncio.
— Я остановлюсь только тогда, когда ты признаешься — ela retrucou, ignorando o puxão.
— не в чем признаваться — ele fechou o semblante enquanto terminava de prender o cabelo dela.
— ты очень плохо лжешь, солдат — Yelena provocou.
— Оставь меня в покое — Bucky revirou os olhos.
— ты хочешь поцеловать его — o sorriso dela se torceu em malícia — вы хотите, чтобы его руки были на вашем теле — ela se inclinou para ele, provocando, quase como se flertasse — вы хотите услышать, как он шепчет ваше имя… — ela sussurrou no ouvido dele.
Sam podia jurar de pés juntos que nunca tinha visto Bucky daquele jeito. A postura rígida, os olhos arregalados e o rosto vermelho como se estivesse febril. Constrangido. Não irritado, constrangido de verdade.
— Já chega, Rooskaya — ele se levantou, repelindo a loira.
— ты не отрицал этого, солдат — ela retrucou.
— иди к черту — ele resmungou e correu para fora da sala.
Yelena caiu numa gargalhada histérica, com direito a lacrimejar e tudo.
— O que você disse pra ele?
— É segredo, Capitão — ela sorriu de canto.
Sam já não tinha muita certeza se era algo que ele realmente queria saber.
4.
Voltar pra casa sempre era uma coisa boa. Sam saiu em missão solo, deixando em casa seu reforço terrestre. Embora Bucky tenha insistido querer ir junto. Já Yelena se empolgou com a folga, tomando sua postura de soldado e prometendo que ajudaria Sarah e Bucky a segurar as pontas em sua ausência. Sam passou a gostar muito dela. Yelena era agitada, durona e acompanhava seu senso de humor. Ela também sabia ser bastante doce e afetuosa, assim como Bucky, um gato arisco que com a convivência se tornava surpreendentemente doméstico. Ele já não conseguia imaginar seus dias sem a presença dos dois. Foi por isso que se esforçou ao máximo para chegar em casa no mesmo dia. Bom, quase isso. Eram quase quatro da manhã quando ele chegou em Delacroix. Havia um pouco de barulho na sala, Bucky normalmente dormia com a tv ligada desde que Yelena usurpou o quarto de hóspedes. Mas nada o preparou para a cena que ele encontraria.
Yelena sentada no sofá, assistindo algum musical adolescente, os dedos finos acarinhando o cabelo castanho de Bucky, cuja cabeça se apoiava no colo dela, dormindo pacificamente. E Alpine enrolada sobre ele.
— Bem-vindo de volta, Capitão — ela sussurrou.
— Isso é inusitado — ele indicou o super soldado adormecido.
Bucky parecia seguro, à vontade e em casa. Nem sempre o sono dele era tranquilo. Ele confiava em Yelena muito mais do que parecia.
— Acredite, ele não ia dormir se alguém não o fizesse — ela seguiu fazendo carinho.
— O que foi, Sestra? — Bucky resmungou.
— Cala a boca e dorme — ela murmurou — E você também, parece exausto.
— Certo — Sam ergueu os braços em rendição — Boa noite, Lena — sussurrou.
Ela apenas acenou com a cabeça, se mantendo na mesma posição, cuidando dele. Ele os deixou sozinhos. O que quer que houvesse ali, Sam sabia que era especial.
5.
Yelena fazia falta na rotina diária.
Ela finalmente encontrou um apartamento na cidade, o que significava que ela não estaria mais 24 horas por dia sob o mesmo teto que eles. E isso era desanimador. Claro, ela ainda era absurdamente próxima, sempre em todas as missões e almoços de domingo. A Viúva Negra se tornou uma parte da família. Sarah sentia falta de sua cúmplice, Cass e AJ sentiam falta da “Tia Lena”, Sam sentia falta de sua amiga caótica, mas ninguém parecia sentir tanta falta dela quanto Bucky. Ele parecia miserável todos os dias quando acordava no quarto de hóspedes ao invés do sofá. Isso refletia até mesmo em Alpine, que assim como seu dono, andava amuada pelos cantos.
Bucky e Yelena estavam constantemente orbitando em torno um do outro.
Era diferente da parceria entre Bucky e Sam, era algo muito singular e restrito, como se eles estivessem sempre naquela bolha. Ele e Bucky eram parceiros, amigos. Havia quem dizia que eles se completavam, e ele secretamente concordava com isso. Mas era diferente quando se tratava de Yelena, ela e Bucky eram, como ela dizia, farinha do mesmo saco.
— Atenção, rapazes! A alma da festa está de volta! — ela estacionou a nova motocicleta no quintal, Joaquín desceu da garupa parecendo meio tonto — Tenho quase certeza de que o Falcãozinho não tá muito bem não.
Sam correu em auxílio dele antes que Torres vomitasse no gramado.
— Sentiu minha falta, Soldat? — ela se jogou nos braços de Bucky.
— Mais do que imagina — ele a beijou na testa e lhe bagunçou os cabelos loiros.
— E ele não foi o único — argumentou, depois de colocar Joaquín sentado na varanda — Isso que a gente se viu na quarta.
— Também senti sua falta, Sammy — ela lhe deu um beijo estalado na bochecha — Sarah e os garotos estão nas docas? Acho que vou passar lá.
— Você tem uma coisinha linda aí — Bucky apontou para a Kawasaki dela.
— Quer uma carona? — ela girou a chave no indicador.
— Acho que prefiro pilotar — ele devolveu.
— Estou confiando em você, Brat — ela jogou a chave para ele — Mas se me deixar cair eu juro que te mato.
Os dois subiram na moto, Yelena se segurando com força na cintura de Bucky. E Sam só podia ficar parado e assistir enquanto eles se distanciavam.
+1.
Bucky corria com AJ e Cass nas docas e isso tinha absolutamente tudo pra dar errado.
— Ele vai cair na água — afirmou.
— Vai — Yelena anuiu.
Assim como Sam, ela assistia a cena de longe.
— Vocês dois formam um belo casal — comentou.
— O que? — ela arqueou as sobrancelhas e arregalou os olhos verdes.
— Você e o Buck — respondeu — Ficam bem juntos.
Após dois segundos de silêncio total, Yelena começou a gargalhar como se ele houvesse acabado de contar a piada mais engraçada da história.
— Eu e Buck? — ela parou o riso para tomar fôlego — Você realmente achou que eu e ele estávamos juntos?
— Vocês… não estão? — certo, agora ele ficou confuso — Eu achei que, sabe, por causa do carinho, e dos segredos, e os apelidos em russo…
— Os apelidos em russo? — ela cruzou os braços — Brat e Sestra? Irmão e irmã?
— Espera, é isso que significa?
— É sim — ela riu de novo até colocar a mão em seu ombro — Sam, eu não estou interessada em homens.
Oh.
Oh.
— Nem em ninguém, pra falar a verdade — ela deu de ombros — Não é o meu lance, essa coisa de relacionamentos.
— É uma coisa da Sala Vermelha?
— Não, é uma coisa da Yelena — ela sorriu de leve.
— Buck sabe?
— Que eu sou assexual, arromântica e definitivamente não interessada nele? — a loira provocou — Sabe sim, não precisa se preocupar. он не смотрит на меня капитан.
— Já entendi, eu preciso aprender russo — revirou os olhos — Desculpa por sair presumindo as coisas, e obrigado por me contar, eu acho.
Tudo que Yelena fez foi abrir os braços, e ele prontamente entendeu o recado. Deus, Sam se sentia meio estúpido. Claro que Bucky e Yelena se viam como irmãos. Eles não estavam apaixonados, estavam sendo protetores. Sam, seu idiota. Tanto Bucky quanto Yelena perderam suas irmãs, eles se conheciam de épocas sombrias, é óbvio que se ligariam desse jeito um ao outro.
— Ninguém me convidou pra sessão de abraços? — Bucky questionou, completamente encharcado.
Ele caiu na água, de fato.
Sem dizer nada, Yelena o agarrou pelo braço de metal e o puxou para o meio do abraço molhado mesmo. Ali havia afeto, segurança. E se Sam e Bucky permaneceram abraçados depois que ela se esgueirou para fora, nenhum deles disse nada.