
A gente se vê
Estava aconchegado entre as cobertas, envolvido em um casulo morno e confortável. A súbita entrada da luz do sol no quarto o arrancou, sem qualquer aviso prévio, do tremendo prazer que só o sono da manhã podia dar. Quanta crueldade! Como alguém podia suportar aquela claridade e ver encanto nela? Sirius detestava o maldito sol, as filhas da puta das manhãs e também a própria vida! Detestava!!!
- Bom dia, fofinhos! Está um lindo dia para brincar lá fora!
A Sra. Potter tinha arregaçado as cortinas do quarto. Ela ainda não se habituara a ideia de que o filho não era mais uma criança, embora James fosse um puto marmanjo. Deu um beijo nos cabelos arrepiados de Pontas, a única parte que ele deixava pra fora do cobertor. O rapaz puxou o lençol para cobrir toda a cabeça, resmungando uma reclamação inteligível.
- Hoje é quarta-feira, Jay-Jay, dia de lavar roupas. Vamos lá, a Sra. Taylor já está esperando!
A mulher caminhou pelo quarto, desviando os sapatos de salto ortopédicos da bagunça espalhada pelo chão. Não fazia o menor sentido! Os Potter eram uma família rica e tradicionalmente bruxa, mas ao invés de ter elfos domésticos, tinham uma porção de mulheres para fazer o serviço da casa: Sra. Taylor, lavadeira. Sra. Williams, faxineira. Sra. Wilson, passadeira!!! Além, é claro, da Sra. Thompson, cuja função era arrumar os cabelos e fazer a maquiagem da Sra. Potter todos os dias.
- Juntem tudo que estiver sujo e também a roupa de cama e levem até a lavanderia, por favor!
Ah, não! Outro dos hábitos absurdos daquela casa era ter que levar as roupas para serem lavadas. Por que fazer uma coisa tão idiota, quando um elfo podia simplesmente recolher tudo que ele atirava por aí? Sirius nunca tinha se dado ao trabalho de catar uma roupa que tivesse jogado no chão! Exceto em Hogwarts, é claro, em que se ocupava de juntar todas num monte em cima do malão, até o dia em que Aluado reuniria o volume dos quatro numa única trouxa e colocava do lado de fora, para que um dos elfos viesse recolhê-la. Agora ele tinha que fazer aquele trabalho de corno também...Por Merlin, o que ele tinha feito pra merecer um castigo tão absurdo? Sentou-se na cama, letárgico pelo sono. Pegou um cigarro do maço, largado em cima da mesinha lateral, e colocou na boca.
- Não, não! – A Sra. Potter puxou o cigarro, antes que Sirius conseguisse reagir. E ele supostamente devia pensar como, então???
- É o meu café-da-manhã, Sra. Potter! – O rapaz reclamou, incrédulo.
- Tem uma refeição deliciosa esperando por vocês na cozinha, Sirius! Eu pedi para que a Sra. Smith fizesse um suco de laranja fresquinho.
A Sra. Smith, cozinheira. Como podia ter esquecido dela? Até que a velha cozinhava bem! Nada comparado aos elfos, mas dava pro gasto. Gostava de agradar os meninos, inventando lanches mirabolantes no meio da tarde. Pontas ficava tão cego diante das comidas cheias de gordura e açúcar que nem sequer tinha notado que a mulher era tarada pra caralho! Sirius não demorou uma semana pra perceber que os esbarrões e as mãos fora do lugar não eram sem querer coisíssima nenhuma! Isso sem falar nas incontáveis vezes que ele tinha flagrado ela olhando diretamente pra sua bunda. Era, sem dúvidas, uma bunda incrível. Porém preferia que não fosse encarada tão sem pudor por uma velha de 150 anos!!!!
- Estou saindo para a reunião da associação. É melhor se apressarem pra comer, antes que os ovos mexidos fiquem borrachudos! – Ela colocou o cigarro meio babado de volta em cima da cabeceira. – Ah, meninos! Não se esqueçam de levar o Giorgio para o banho! É às 10h.
O maldito mascote da Sra. Potter. Sirius abominava aquele cachorro idiota e era recíproco! Seus calcanhares estavam cheios de mordidas do escroto do Giorgio. Imaginava que o ódio que o cachorro sentia por ele tivesse a ver com alguma diferença no cheiro dele, por causa do animago. O poodle era tosado ao modelo de uma princesa, ainda que agisse como o maior macho-alfa. Chegava a ser ridículo! Talvez dois cachorrões como eles não pudessem mesmo dividir o ambiente em paz.
Sirius não estava sendo mal-agradecido. Nunca poderia retribuir o que os pais de Pontas estavam fazendo por ele, deixando que ele morasse ali, como um filho. Era incrível pra porra morar com o seu melhor amigo o ano inteiro, inclusive nas férias! Ali, pela primeira vez, tinha um lugar em que se sentia bem, fora de Hogwarts. A coisa toda de sair de casa teria sido muito diferente, se a família de James não fosse tão acolhedora com ele.
Ainda assim, não dava pra mentir que eles tinham hábitos esquisitos e até estúpidos, muito provavelmente vindos do tataratataratatara sei lá quem do pai de Pontas, que era paupérrimo antes de inventar umas poções medicinais importantes (era irrelevante pra Sirius decorar a história de quais, óbvio) e cultivados até que o próprio Sr. Potter criasse um troço pra cabelos e quadruplicasse aquela fortuna, deixando a família rica pra caralho pra sempre. Bom, aquele cabelo de merda que Pontas herdara pelo menos tinha servido pra alguma coisa.
- Vamos, Jay-Jay! Ou então o pobrezinho do Giorgio vai perder o horário no cabeleireiro! – Debochou, levantando da cama e vestindo uma camiseta pra sobreviver ileso aos olhares canibais da Sra. Smith.
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- Aqui, docinho! – Crabbe irrompeu no cômodo e entregou um prato abarrotado a Yvonne. Deu de ombros, ao ver que Leona o encarava. – Omelete de espinafre. Folhas escuras são boas pro bebê!
- Então ‘tá. – A loira continuou a fechar as sandálias, desinteressada.
- Henry, você não pode ficar aqui. Tem garotas peladas! - Narcissa largou o cabelo da garotinha e olhou pra ele com repreensão.
Eram seis as primas de Wilkes que entrariam na cerimônia lançando pétalas de rosas no chão. Já estava arrependida de ter prometido a Gwen que faria o cabelo das pestinhas! O cômodo, uma antessala ENORME, estava um caos, com maquiagens e presilhas e roupas e sandálias e buquês e comidas e taças espalhadas por todos os lados. Ela deveria supostamente encontrar a coroa de flores pra prender no cabelo da menina. Usar um accio seria tão mais fácil! Se ela soubesse onde tinha deixado a varinha...
- AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH! – Outra das garotinhas saiu gritando de volta a gigantesca suíte onde Gwen e a mãe estavam sendo arrumadas por profissionais, nua exceto pela meia calça, os sapatinhos boneca e a coroa de flores que Cissy já tinha prendido no cabelo dela.
- Viu? CAI FORA!
- Eu já vou! Só... Querida, ponha os pés pra cima! Lembra o que o curandeiro disse? – Ele vasculhou o lugar até encontrar um banquinho, descansado os pés de Yve sobre a mobília, sem que ela precisasse parar de comer.
- HENRY!
- Fui! – Acenou e saiu, mas logo voltou correndo para dar um beijo na testa da noiva antes de ir embora de vez.
Effie deu uma risada e balançou a cabeça. Cissy revirou os olhos. Henry estava decidido a ser um pai excepcional! Desde que Yvonne descobrira a gravidez, ele se mantinha ocupado em dar ao bebê o ambiente perfeito para se desenvolver, sobretudo depois que ela tivera um sangramento com ameaça de aborto, semanas atrás. A partir daí, ele se tornara incansável! Isso significava garantir que Yve não precisasse levantar um dedo para ter ao alcance qualquer coisa que quisesse e até o que nem sabia que queria.
A moça estava deleitada com aquilo, é claro! Principalmente com a aliança de noivado colossal que ostentava na mão direita. Cissy já tinha pegado ela mirando a joia com adoração pelo menos umas quatro vezes, só naquela tarde. O colar pesado da família Crabbe, com o pingente de um crustáceo, era horrendo! Contudo, Yve o empunhava com um orgulho que chegava a ser arrogante. No fim das contas, ela tinha conseguido o que queria. Dentro de uma quinzena, antes que a barriga crescesse demais, passaria a pertencer à alta sociedade da Grã-Bretanha. E Henry ainda tinha um ano em Hogwarts pela frente, hein? Xeque-mate!
- Esse vestido está me deixando rechonchuda? – Gwen saiu do quarto, puxando a cintura do vestido mais para baixo. – Ai, está!
- Não, Gweny. Você está maravilhosa! – Narcissa abriu um sorriso diante da imagem super enfeitada da amiga.
- Eu não sei... Meus quadris parecem largos demais. Vocês sabem que eu odeio minhas ancas!
- Não tem nada de errado com os seus quadris!
- E se ele não gostar do vestido?
- Ele vai gostar! – Leona intercedeu.
- Ele nem vai olhar pra isso... – Mastigando os ovos, Yvonne acrescentou. – Mas você está linda! – Se corrigiu, depois do olhar fuzilante que Narcissa deu a ela.
- Você quis dizer gorda! – Gwen girou duas vezes em frente ao espelho, analisando o pomposo vestido branco.
- Gwen, você amou esse vestido assim que experimentou, lembra? Não conseguiu ter olhos pra nenhum outro depois de ver esse. Está perfeito! O Wilkes vai amar! – Effie apertou os ombros da amiga, sorrindo para ela pelo espelho. – Você só está nervosa. Agora engula um calmante e tudo vai ficar bem!
- Ok. Tudo bem. Eu posso fazer isso. Mademoiselle Joana, coloque o meu cabelo pra cima!
Os cachos avermelhados balançavam soltos ao redor do rosto de Gwen e ela retornou para o quarto. Era fofo, em certa medida, ver o quanto ela estava empolgada e ansiosa para que tudo saísse perfeito. O casamento, sem dúvida alguma, era o grande dia da vida de Gwen. Ela tinha ansiado por aquilo desde que Narcissa conseguia se lembrar. Cissy estava feliz, em vê-la, de uma forma um pouco torta, realizar um sonho tão desejado. O assobio ritmado foi seguido por duas batidas na porta, por mais que estivesse entreaberta. Evan entrou, acanhado, e veio até ela. Colocou o saquinho de papel sobre a mesa, em cima das outras dezenas de tralhas que estavam ali.
- Obrigada! – Cissy sorriu o quanto pode, mordendo a ponta de um grampo de cabelo para abri-lo. Seria tão mais fácil com a varinha, onde ela tinha colocado? Largou os cabelos da garotinhas, que estava pronta e logo saiu correndo dali.
- Você está deslumbrante! – Ele elogiou, passeando o olhar pelo vestido rosa bebê.
- Desgraçado! – Deu um soco no ombro do rapaz.
O estilo que Gwen escolhera para o casamento era... Peculiar. Laços, babados, mangas bufantes e rendas, todos juntos, não eram exatamente o que Narcissa amava usar. Ainda mais num tom tão infantil de rosa. Mas, se era o sonho da amiga, o que ela poderia fazer além de enfiar o vestido por cima da cabeça e fingir estar adorando?
- Até onde eu sei, o Evan também não deveria estar aqui. Mulheres peladas!!! – Effie reclamou, segurando o vestido aberto em volta do corpo.
- Desculpa! – Ele cobriu os olhos com a mão.
- Ele só veio me trazer cigarros, Effie. E já está de saída.
- Agora!
- Você está realmente deslumbrante, Cis! – Sussurrou e sumiu dali, dando uma gargalhada.
- Filho da puta! – Ela tateou o embrulho, abrindo a carteira de cigarros e colocando um direto na boca. Se não sabia onde estava metida a varinha, que dirá o suporte que usava pra fumar! – Acende aqui?
Effie revirou os olhos e puxou a varinha de debaixo de uma almofada, para acender o cigarro dela. Depois, virou-se de costas. Narcissa tragou e apoiou o cigarro em cima de um pires perdido na bagunça. Começou a fechar os botõezinhos encapados, um a um. Eram 18. DEZOITO malditos botões nas costas de cada madrinha!
- Você devia falar com ele. – Euphemia comentou, em voz baixa.
- Eu sei.
- Já faz dois meses, Cissy.
- É, eu sei. Arrume a coluna!
- É justo que vocês conversem sobre, depois de terem transado. – Ela se empertigou, murmurando a última parte entre os dentes.
- A esta altura ele já deve ter entendido que foi só uma coisa que aconteceu, Effie.
- E foi? – A negra se virou, cruzando os braços a frente do corpo.
- Foi. – Buscou o cigarro, aspirando o fumo.
- Tem certeza?
- Toda. Agora se vira pra eu terminar!
- Então por que você não consegue falar sobre o assunto com ele? – Deu as costas a ela, a contragosto.
- Porque não tem nada pra dizer, Effie. Nós fizemos sexo, foi ótimo, fim. – Soltou o cigarro em cima da porcelana.
- E ele te pediu em casamento!!!
- Não vamos lembrar disso agora, por favor.
- Não foi imediatamente. – Voltou a tocar no assunto, depois de alguns segundos em completo silêncio.
- E daí?
- Não foi no calor da emoção, só porque você tem uma buceta fantástica, Cissy! Ele pensou sobre o assunto! Deve ter pensado pra caralho!
Narcissa respirou fundo. Fechou o último botão. Aquelas porcarias eram justas como o demônio! Se tivesse que fechar outro vestido, ia quebrar as unhas, com toda a certeza. Especialmente se fosse o de Yve, que provavelmente estaria apertado no quadril. Ou nos seios. Ou nos dois.
- Eu não quero ter essa conversa, Effie. Primeiro, porque eu não acho que ela seja necessária. O Evan e eu somos AMIGOS. Ele mesmo reconheceu isso quando disse que a gente podia se casar, já que TINHA QUE CASAR COM ALGUÉM. – Ela frisou a última parte, ainda que estivesse falando em baixo tom.
- Por Merlin, Cissy! Qualquer pessoa consegue ver que ele é caidinho por você! Vindo aqui te trazer cigarros...
- Ele estava me devendo.
- Ele faria qualquer coisa pra ficar mais tempo do seu lado.
- Então por que ele falaria daquele jeito?
- Porque ele sabe que se admitir que está louco por você com todas as letras você vai surtar!
- Vamos fazer assim: Deixa que, sobre isso, eu e ele nos entendemos. ‘Tá bem?
- Você não vai falar com ele nunca, Narcissa.
- Esse é o jeito mais diplomático de ele entender o meu não.
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Deitou-se na cama. Os pedaços de pergaminho ocupavam não só a escrivaninha, mas também as paredes e o teto. Olhou pra cima, avaliando os desenhos. Alguns eram bons! Outros, nem tanto. O melhor era aquele que estava grudado bem em cima dele: Um esboço realista dos amigos como animagos. Tinha se dedicado com especial afinco às diferentes nuances de cor nas pelagens. Até mesmo o sorriso sacana de Almofadinhas estava ali, na bocarra do cachorro. O lugar escolhido para colá-lo fora proposital, para que adormecesse sonhando com as aventuras dos quatro por Hogsmead.
No entanto, havia outro para o qual não conseguia parar de olhar desde que o fizera, uma semana atrás. A verdade é que colocar a imagem no papel tinha sido a única forma de tirá-la da cabeça. Virou de lado, encarando os olhos. Agateados, mas ligeiramente arredondados em cima e embaixo. Pareciam sorrir. Pareciam julgá-lo. Pareciam chamar seu nome. Ele respondera, algumas vezes, amparado pela escuridão da madrugada. Dorcas Meadowes.
O nome dela não estava em nenhum lugar nos jornais. Era menor de idade e, ainda que não fosse, estava encoberta pela cortina de fumaça que Dumbledore jogou sobre o caso. A curiosidade geral sobre o homicídio da garota era tremenda, contudo, muito pouco se sabia. Os tabloides falharam em suas tentativas de encontrar uma fonte confiável, porque até mesmo os alunos que estiveram no baile não conseguiam detalhar o que tinha acontecido.
Pontas repetiu incessantemente em suas cartas a preocupação com Dorcas, discorrendo em longos parágrafos sobre como eles precisavam fazer alguma coisa e como era perigoso que nascidos trouxa como ela estivessem indefesos no meio daquela guerra. O rapaz estava obcecado com a ideia de se juntar a resistência! Remus estava mais preocupado sobre como Dorcas estaria se sentindo depois de encontrar Chloe morta. Será que tomaria o Expresso, dali a 4 dias? Pensou muitas vezes em enviar uma carta para demonstrar seu pesar, embora nenhuma delas tivesse avançado. Ele não fazia a mínima ideia de como começar uma carta com tamanha densidade, sobretudo depois de as coisas terem terminado entre eles como tinham terminado. Além disso, o que Dorcas menos precisava era de um lobisomem mestiço por perto, para deixar a vida ainda mais complicada. Era melhor assim: Jogar uma última pá de terra sobre o que um dia tinha sido a amizade deles.
- A sopa está quente! – A mãe dele bateu na porta, anunciando o jantar. – Remus? – Girou a maçaneta e entrou no quarto, depois de não ter resposta.
- Eu não estou com fome.
Sopa de repolho, pela terceira noite seguida. Hope tinha feito um estoque do vegetal, aproveitando alguma promoção. Encontrar preços absurdamente reduzidos era um passatempo para sua mãe. O orgulho com que ela contava sobre os achados do dia e os sicles que tinha economizado podia assustar um desavisado. Para Remus e seu pai, não havia tanta graça em comer o mesmo prato por dias a fio, só porque tinha sido barato. Há semanas ele estava sonhando com o retorno pra Hogwarts! Depois de um verão inteiro se alimentando de porções requentadas das ofertas da semana, até mesmo a torta de rins parecia um delicioso banquete.
- Remus John, você precisa empacotar suas coisas! – Ela o advertiu, chateada com as caixas de papelão vazias, abandonadas em um canto.
- Estou lembrando.
- Querido... – Sentou-se na beirada da cama, passando a mão pelo rosto dele. – Você sabe que não podemos ficar por muito tempo.
- Posso fazer isso em um minuto, mãe.
- Então faça! Você vai se sentir melhor.
Remus duvidava. Desde que tinha entrado em Hogwarts e passara a viver a maior parte do tempo na escola, a vida dos seus pais tinha se tornado um pouco mais fácil. Somente depois de um longo verão de 3 meses é que precisavam empacotar as coisas e fugir de mais uma vizinhança ressabiada pela desconfiança. Mudar-se apenas uma vez por ano era melhor do que a cada poucos meses, mas ainda era uma lembrança constante do quanto a existência dele deixava a vida das pessoas complicada. De qualquer forma, não tinha muito o que guardar, além dos parcos pertences que levaria consigo no malão.
- Vem, vamos comer! – Ela parou, encarando os olhos de Dorcas na parede. – Este aqui está muito bom, hein? Quem é?
- Não é ninguém. Só algo que vi no jornal. – Não era exatamente uma mentira.
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Narcissa tomou um pouco do café aguado. Um senhor cheio de malas esbarrou em sua cadeira e resmungou um pedido pouco convincente de desculpas. A mesa pequena parecia mais apertada porque a cafeteria estava cheia de passageiros apressados. Effie não se importava com os esbarrões constantes, preocupada em lambuzar mais um Scone com uma camada de geleia de quase um dedo de altura.
- Tem certeza de que você não quer pedir mais nada? Eu vou pagar! – Indagou, com a boca meio cheia.
- Só o café é suficiente, obrigada! – Narcissa não teria como pagar nem se quisesse. A cafeteria trouxa não aceitaria seus galeões sem antes chamar a polícia.
- Você vai acabar desaparecendo, Cissy!
- Onde é que eu assino?
- Engraçadinha!
- Lilá vai me encher de comida assim que eu chegar para o almoço, não se preocupe.
Levantou o olhar para o grande relógio posicionado bem no centro da parede. Não tinham muito tempo livre, todavia Effie não parecia preocupada. Enquanto comia, estava distraída, lendo o Profeta diário. O jornal estava esticado sobre as pernas da moça, embaixo da mesa, para que as fotografias se movendo não chamassem a atenção de nenhum dos trouxas. Precisariam sair logo, para serem vistas apenas o suficiente.
- Você viu as manchetes? Arquivaram o caso.
- Isso é ótimo! Menos um aspecto com o qual teríamos que nos preocupar.
O verão inteiro tinha se passado sob especulações. Scrimgeour e seus subalternos não tinham avançado nada nas investigações. Interrogatórios, suposições, inquéritos... Nada. A coisa tinha sido planejada perfeitamente pra que tudo que os aurores pudessem encontrar fosse fumaça. E a marca, como um aviso de que eles estavam no comando. Qualquer cidadão tinha suas teorias e as manchetes se modificavam todos os dias, cada vez mais absurdas. Sobre ela, Effie e Meadows ninguém sabia, porque Dumbledore fizera o impossível para preservar a privacidade delas. Muito se comentou na sociedade sobre não mandar os filhos de volta a Hogwarts. Contudo, ela duvidava que os alunos não estivessem todos lá, prontos pra tomar o Expresso. Os muros da escola e a presença firme do diretor ainda impunham a segurança que nenhum outro lugar era capaz de dar aos jovens bruxos.
- Escuta, tem uma outra coisa que eu queria te pedir. – Mordeu mais um pedaço do scone. – Dá uma olhada nisso!
A cena parecia, em partes, um Déjà vu: A unha comprida de Euphemia, pintada de vermelho, indicando um quadrado na coluna social. O anúncio era ainda mais pomposo do que o do noivado de Gwen. Os Parkinson e Grengrass podiam colocar a família Wilkes no bolso, se quisessem, mesmo em comunhão com os Yaxley. Dentro das 28 sagradas, não havia economia diante de um bom casamento. E aquele era excelente! Leona Grengrass e Ambrose Parkinson contratariam noivado dentro de 10 dias.
- Ele não é meio velho pra se casar? O sobrinho deve estar no...
- 5º ano, hoje. – Puxou o jornal de volta, dobrando-o de qualquer jeito. - Ele tem 38.
- 38? Pobre Leona!
- É sobre isso. Eu preciso que você fale com ela, Cissy. O Harpias estava negociando-a como batedora!
- Eu, Effie? Eu não sou amiga dela assim. Você é!
- Era. Ela não está falando comigo, lembra?
Ah, é! Tinha aquilo. Cissy se recostou na cadeira bamba. Esta era uma notícia que ela não esperava. Sempre imaginou que Leona chegaria muito perto de entrar pro clube das solteironas antes de aceitar se casar com alguém, assim como Bellatrix. Principalmente com um oferta que era o que ela sempre tinha sonhado: Jogar como profissional no Harpias de Holyhead. Não era fácil encontrar mulheres que jogassem na posição de batedoras e ela teria sido brilhante! Ninguém seria capaz de afastá-la da seleção nacional dentro de uma ou duas copas mundiais.
- Por favor, Cissy!!!
- Esquece isso.
- Por favor! Você não pode deixá-la perder essa oportunidade!
- ESQUECE isso. – Bebeu um gole do café, já meio frio.
- Alguém precisa abrir os olhos dela!!
- Se chegou ao ponto de ser anunciado no jornal, não tem mais nada que eu ou qualquer pessoa possa fazer, Euphemia.
- Merda! – Effie jogou o corpo pra trás, chateada.
- Talvez ela tenha escolhido isso.
- Leona?
- Niyati disse que haveria dois caminhos, lembra? E ela poderia não escolher o mais coerente.
- Niyati? Sério, Narcissa? Você passou tempo demais perto da Yvonne!
- Graças a Merlin não! Eu só estava comentando... – Remexeu a colher pra agitar o café. – É melhor a gente ir.
Effie buscou o porta-moedas na bolsinha transversal, onde tinha reunido os pertences mais importantes. A mochila pequena, magicamente expandida, Narcissa é quem tinha organizado pra ela, com uma quantidade razoável de roupas, sapatos e livros que foram sendo transferidos pouco a pouco para a Mansão Black ao longo das semanas. Mesmo assim, grande parte das coisas ficaria pra trás, para não levantar suspeitas.
A plataforma não ficava distante da cafeteria. Todavia, fizeram uma volta um pouco maior, cruzando a estação duas vezes, para que fossem vistas próximo a intersecção entre as plataformas 9 e 10. Na primeira, Matilda acenou pra elas de longe, empurrando um carrinho com o malão. Merlin, era esquisitíssimo vê-la sem Nate ao lado! A garota teria um último ano de independência em Hogwarts, longe da sombra bem-sucedida do irmão. Na segunda foi Raymond Avery, acompanhado dos pais, quem cruzou com elas e Cissy fechou a cara. Effie a puxou pela manga da camisa. O número de testemunhas era o bastante!
Pararam, uma de frente pra outra, do lado de fora do vagão. A maioria dos passageiros já tinha embarcado, com o tempo curto até a partida do trem. Cissy entregou a mochila a amiga, porque não sabia mais o que fazer. Effie tinha uma aparência pálida e suada. Havia certa reticência que não deveria estar ali. A moça precisava estar firme e certa do que queria, pra enfrentar as próximas horas. Vasculhou a própria bolsa, tirando de lá um vidrinho.
- Você comprou água? – Estendeu o frasco para a amiga. – Aqui, uma poção contra enjoo. Só pro caso de você se sentir mal no caminho.
- Não precisava, Cissy! A Gwen é que tem problema com isso.
- Dessa vez vai demorar mais do que o costume... Leve, você pode precisar! – Fechou a mão da amiga em volta da poção. - Lembre-se, eu vou te dar oito ou nove horas de cobertura, no máximo.
- Eu sei! Vai ser o suficiente! A esta altura eu já vou estar a caminho d...
- Shhh! É melhor se eu não souber.
- Certo. – Ela enfiou a poção dentro da bolsinha, nervosa. - Já tínhamos conversado disso.
- Se me derem Veritaserum, a última coisa que vou saber é que pegou o trem até o aeroporto de Glasgow e depois, puff, desapareceu no mapa!
Effie jogou os braços em volta dela, apertando seu corpo num abraço apertado. Narcissa se enrijeceu, ligeiramente surpresa com a intensidade do carinho. Depois, apertou a amiga contra si em igual medida. Tentou guardar um pouco de tudo que havia nela: Os olhos esverdeados emoldurados pelas sobrancelhas arqueadas, ansiosos e cheios de receio, o nariz largo, com a pontinha redonda, e o sorriso franco debaixo dos lábios grossos, que também guardavam a língua ferina. Prendeu uma das trancinhas escuras entre os dedos, decorando o conjuntinho de saia e blazer xadrez que Effie usava naquele dia de despedida. Cissy viu que a amiga fazia o mesmo, com o olhar perdido no chapeuzinho rosa-cereja estruturado que cobria parte de seus cabelos loiros.
- Use o mínimo de magia que conseguir, não esquece! Pra não ser vista e nem rastreada.
- Eu vou sentir tanto a sua falta! – Admitiu, baixinho.
- Eu também! Mas vou estar orgulhosa, Effie! Muito, muito orgulhosa de que você esteja seguindo o que sempre quis pra si.
- Obrigada! Por tudo! Eu não ia conseguir sem você.
- É claro que você iria, sua idiota! Ninguém poderia te impedir de ser a melhor herbologista do mundo! Por favor, publique logo um livro pra que eu possa exibir como decoração na minha sala de estar como se eu entendesse a metade do que está escrito!
- Case com o Evan! – A garota apertou seu braço com carinho.
- Chupe uma montanha de paus! – Provocou, sussurrando, em resposta.
- Sério, Cissy! Você merece recomeçar a sua vida, depois de tudo o que aconteceu no último ano.
- Eu nem sequer sei se tenho uma vida, Effie! É como se tudo tivesse pertencido a Andrômeda... Como se ela tivesse me emprestado uma vida que eu julguei ser minha e depois levado embora tudo que envolvia aquela vida, quando partiu.
- Ele vai ser um bom marido pra você. Vai te ajudar a entender tudo que aconteceu e reencontrar a SUA história, Cissy. Uma vida toda sua!
- Vou pensar no assunto.
- Prometa, Cissy!
- Eu vou fazer o que for melhor pra mim, Effie. Eu prometo! Eu pus um cobertor na mochila, se você sentir frio com essa minissaia.
- Puta não sente frio! – Brincou, trazendo Narcissa pra perto em mais um abraço. - Vai dar tudo certo. – Ela afirmou, mas Cissy percebeu que era mais como se estivesse perguntando.
- Vai sim! – Beijou o rosto da amiga. – Todas as quintas-feiras eu irei até a agência do correio, ver se chegou algo na... caixa postal?
- Exatamente! Caixa postal 0-4-7. Você vai precisar ir lá e encerrar ela assim que receber uma carta que venha por coruja. É só uma precaução, enquanto as coisas não se assentam.
- Mal posso esperar pra receber a primeira! – Um apito soou, indicando a última chamada aos passageiros. – Faça uma boa viagem, meu bem, e encontre a felicidade que está indo buscar!
- Eu te amo! – A voz embargada de Effie se perdeu em seu pescoço, num terceiro abraço. – Diga a Gwen que eu a amo também. E que não foi nada pessoal, só não quis incomodá-la na lua de mel.
- Eu direi, mesmo sabendo que ela não vai acreditar. – Soltaram-se lentamente e Effie apertou as alças da mochila.
- A gente se vê, Cissy!
- A gente se vê, Effie.
Euphemia virou de costas e subiu no trem. Lhe acenou um último adeus, esperando enquanto conferiam sua passagem, e depois partiu, em direção a vida que a esperava em algum outro lugar no mundo, bem longe dos casamentos arranjados que queriam colocar em seu destino. Os olhos de Narcissa se encheram de água, misturando orgulho, uma saudade antecipada e o alívio em vê-la fugir dali.
Caminhou com lentidão, depois de esperar o trem desaparecer de vista, arrastando as sandálias de salto pelo piso da Estação. Faltava pouco pras onze horas e ela se sentiu tentada a assistir também a partida do Expresso, mas era arriscado demais que alguém a visse sem Effie tão cedo. Seu saudosismo não podia ser responsável por comprometer um plano exaustivamente revisado. Imaginou que James já estivesse lá, ocupando um vagão, com a gangue dele por perto, rindo e se divertindo, como era inerente a ele. Sentiu saudades da leveza de estar com o garoto e o invejou, porque teria um ano inteiro pela frente, em branco, pra que preenchesse como sentisse vontade, ao lado dos amigos. Para ela, o mundo aqui fora é quem ditaria a vida. Passou reto e se recostou numa parede de tijolos perto da primeira plataforma, acompanhando o relógio se mover. Onze badaladas. Onze horas. O apito e a fumaça deviam estar a todo vapor. Pela primeira vez em tantos anos, nenhuma irmã Black estava a bordo do Expresso de Hogwarts que acabara de partir.
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