
Rosas lavanda.
No atual momento, Crowley estava tentando ficar parada em sua casa, porque bem, essa era sua ação preventiva de crises. Sua casa não era tão grande e haviam muitas plantas e roupas jogadas no meio do caminho, então o máximo que conseguia dar eram três passos para cada lado.
“Parem de me olhar assim, porra!” Ela gritou para suas samambaias e costelas-de-adão. “Eu juro por tudo que eu vou deixar vocês sozinhas aqui e nunca mais voltar!”
Crowley tinha medo. Medos que nunca conseguiu encarar e lidar. Um de seus medos apareceu num jardim, acariciou sua bochecha e olhou para ela com os olhos marejados.
Como a ruiva nunca encarava o que sentia e simplesmente projetava seus medos e inseguranças em suas plantas, ela não sabia como lidar com a crise bem na sua cara.
Por quatro anos, Aziraphale sempre foi a única para Crowley, por quatro anos fofos e inocentes na vida de uma criança. A ruiva sempre amou a outra, e mesmo depois dessa ter ido embora, Aziraphale nunca saiu de seus pensamentos.
E encontrá-la de novo depois de tanto tempo é como deitar na areia quente e molhada na frente de uma onda prestes a estourar em todo seu corpo e não conseguir fazer nada contra isso.
Ela iria enlouquecer.
“Crowley, pelo amor das deusas!” Uma ocultista de óculos redondos e grandes demais para seu rosto adentrou sua casa empurrando a porta com muita força, fazendo a pequena guirlanda que estava pendurada do lado de fora cair.
“Tá fazendo o que aqui? Eu não te chamei.” Não que adiantasse muito falar isso nesse momento, Anathema já estava colocando sua bolsa na mesa de centro. A de cabelos pretos bufou. “Você não sabe gerenciar uma crise!” Ela gritou enquanto cutucava o dedo com força no peito da mais alta. “Ou vai me dizer que até agora você não jogou nenhuma das suas plantas no lixo?”
Crowley admitiu derrota e sentou no sofá completamente destruída, escorrendo pelo assento como se fosse óleo. “E o que você me sugere, bruxa?”
“Sugiro que você seja uma pessoa normal e seja uma amiga.” Ela disse sentando ao lado da ruiva. “Seja sincera comigo, Crowley. Porque você está tão nervosa?”
E nem ela sabia. Ela já amou Aziraphale, ela a ama ainda. Mas se passaram tantos anos que parece que de algum modo todo aquele sentimento congelou no tempo. Ela sabe o que é falar que ama Aziraphale, mas não sabe mais o que é sentir isso.
“Eu não…Eu não sei como ela é. Ela com certeza mudou, não sei se vou reconhecer ela além daqueles ois e tchaus que já demos no jardim” Ela desviou o olhar da amiga e olhou pro teto. “É disso que eu tenho medo, daquela não ser a minha Aziraphale. Tenho medo dessas novas memórias serem completamente diferentes e substituirem as que já tive com ela.”
Crowley sentiu uma mão em seu ombro. “E você prefere sentar aqui e corroer com seu medo ou tentar se aproximar dessa nova Aziraphale? Você está pensando no pior, Crowley, você não é assim. Ela pode não ser a mesma que você conheceu, mas ainda é ela.”
A ruiva retirou seu olhar do teto e fitou com seus olhos marejados na mulher ao seu lado. “Eu te odeio.” E bufou.
Anathema apenas sorriu e viu Crowley retirar seu celular do bolso. “O que você-“
“A gente trocou número no jardim, vou mandar uma mensagem pra ela.” A ocultista levantou do sofá e recolheu sua bolsa. “Vê se deixa suas plantas viverem.” E caminhou com sentido a porta.
“Você realmente veio aqui só pra me encher?”
“Eu vim aqui ao seu resgate, sua ingrata.” E ela saiu pela porta rindo.
Seu celular vibrou. Era ela.
Azi
Olá! Aqui é a Aziraphale!
-Aziraphale
opa
Você está bem?
-Aziraphale
eu to
azi KKKK
você não precisa
assinar todas as
suas mensagens
Eu sei que não, mas
sinto saudades de
escrever cartas.
Queria saber se você
está sem compromissos
agora. Iria convidá-la para
tomar café comigo.
to completamente
livre agr
onde vc quer ir?
Me encontre na entrada
da faculdade as seis.
com ctz
te vejo lá
Crowley desligou o celular e colocou a mão no próprio peito, seu coração estava batendo muito rápido. Ela ia tomar café com Aziraphale depois de tanto tempo. Ela ia conversar com ela e fazer piadas e rir e o café…
“Foda-se o café, eu preciso me trocar.” E ela foi diretamente para seu quarto. Parece que outras roupas iriam se juntar a bagunça térrivel no chão do apartamento.
~~~**~~~
“Maggie, estou com medo de ter feito a escolha errada.” Aziraphale disse a sua amiga na frente do portão da faculdade, faltando seis minutos para o horário marcado com uma certa ruiva. “E se ela não aparecer?”
“Daí você vai saber se ela ainda presta ou não.” Maggie sorriu e tocou a menor no ombro. ”Aziraphale…”
A pequena parecia perdida, estava olhando para todos os o lados esperando que uma certa ruiva aparecesse e não tivesse pegado o primeiro trem para o lugar mais longe possível de Aziraphale.
“Você tá segurando sua respiração.” Aziraphale soltou com tudo o ar que estava armazenado dentro de si. “Por quanto tempo você esteve esperando por isso?” Maggie indagou.
Ela virou-se violentamente para a mais alta e franziu a testa. “Eu…Acho que desde que eu fui embora…Sempre esperei que ela me encontrasse.” Ela sorriu triste. “Um sonho bobo e infantil.”
Maggie sorriu. “Que bom. Ela já te encontrou.” Ela apontou para frente. “Deus me ajude.” E Aziraphale respirou tão fundo que jurou que algumas flores se mexeram debaixo dela.
Crowley podia mudar tudo nela mas o jeito que ela andava e a presença dela nunca mudariam. Ela se aproximava com uma confiança que Aziraphale nunca sonharia em ter. “E aí.” Ela mexeu sua mão um pouco com intenção de algo mas logo colocou as duas no bolsos de sua calça.
“Eu to indo então.” Maggie sorriu. “Boa sorte, Zira.” Aziraphale não sabia se sentia aliviada ou preocupada com a ausência da amiga.
“Então…” Aziraphale esperava pelo pior, pelos piores tipos de pergunta ou confissões, esperava pelas acusações que viriam, pela dor do abandono que Crowley sentiu quando ela foi embora de Tadfield e esperava pelo…
“Qual café você tem em mente, Aziraphale?” Inesperadamente a ruiva sorriu, tentando abrir caminho para Aziraphale guia-la.
“Ah, claro! Não sei há quanto tempo você tá por aqui, mas um pouco depois do parque tem um café com os melhores bolos e tortas. Você nunca comeu nada igual e…” Aziraphale parou. Ela estava falando demais. Elas acabaram de se ver novamente depois de tantos anos e ela tornou tudo desconfortável. Talvez não tenha sido uma boa ideia convidar Crowley em primeiro lugar, talvez ela devesse fugir agora e previnir outra humilhação-
Crowley riu.
Crowley riu.
“Você realmente não mudou nada, anjo.”
Anjo. Esse apelido. Aziraphale havia perdido a noção do quanto ela sentia falta de ser chamada assim pela ruiva. Ela perdeu noção do quanto aquela risada pesada e melodiosa fazia falta em seus dias pacatos e ela perdeu noção que ficou encarando Crowley com uma expressão questionável.
“Eu não quis dizer por mal, não seja tão sensível.” Ela disse com o ar desinteressado mas Aziraphale sabia que no fundo ela se preocupava. Ela nunca deixou de se preocupar.
“Eu sei.” Ela sorriu.
~~~**~~~
Quando chegaram no tão estimado café, elas já se acostumaram com a presença uma da outra. As duas sentaram numa mesinha isolada e fizeram seus pedidos.
“Você tem certeza que não vai querer nada pra comer?” Aziraphale perguntou.
“Não to com fome.” Crowley respondeu, sentada de uma maneira muito questionável na cadeira (se aquilo podia ser considerado sentar).
“Sério?” Ela estava com uma pontada de decepção no olhar, queria muito que a ruiva experimentasse os bolos que ela estava tão animada pra comer. E Crowley com certeza percebeu a decepção e bufou. “Eu pego um pedaço do que você pediu.” E então revirou seus olhos e a felicidade restaurada em Aziraphale foi nítida.
“Dois anos.” Crowley falou de repente.
“Que?” Aziraphale disse confusa tomando um gole de seu chá.
“Você tinha me perguntado quantos anos eu estou aqui. Dois anos”
“Ah…Você veio direto de Tadfield?” Ela perguntou apavorada de que essa pergunta seria passar um pouco dos limites que elas estipularam em momento algum.
“Nkg…Não. Assim que consegui eu saí daquele lugar. Fiquei em Nova york um tempo. Consegui dinheiro o suficiente pra fazer minha transição…E foi onde eu conheci a Anathema.” Ela sorriu e aquele sorriso foi o primeiro que fez o peito de Aziraphale doer. Quem era Anathema? E por que ela era tão relevante? Crowley estava comprometida? Mas porque isso deixaria Aziraphale com um nó na garganta? Sua amiga estava feliz e estava bem, ela encontrou alguém que a amasse….
“Tira esses olhinhos de cachorro abandonado do rosto. Ela é minha amiga. Depois da transição eu quase fui parar nas ruas e por muito pouco eu não…Não entrei pra prostituição. Ela foi a única que esteve lá por mim quando nem mesmo eu conseguia me cuidar.”
Ah…Aziraphale era bem egoísta, né? Aquilo não era sobre ela. Aquilo era sobre todos os anos que Aziraphale não esteve por perto para ajudar sua amiga…Ela era uma péssima pessoa.
“Para.” Azirphale olhou para cima até se encontrar com os olhos amarelos ouro enquanto Crowley se apoiava na mesa com os braços, se aproximando da loira. “Qualquer coisa que você estiver pensando. Para.”
“Sinto muito.” Aziraphale disse de maneira arrependida. “Relaxa, eu to bem agora.”Ela assegurou a loira.
Crowley nunca desaprendeu a ler Aziraphale. A loira sorriu. “E você?” Crowley disse. E a menor pensou no que falar.
“Eu estou na faculdade há um ano mas me mudei para Londres quando meus pais morreram.” Ela não fez nenhuma expressão de dor mas Crowley ergueu suas sombrancelhas por cima do óculos escuro. “Tenso. Meus sentimentos.” Aziraphale ergueu sua mão para imepedir Crowley.
“Por favor, não. Passei tempo demais recebendo pêsames por pessoas que não me conheciam.” Crowley apenas a observou. “Eles continuaram fazendo-“ “Sim. Até o último suspiro deles, eles me obrigaram a ir para a igreja e me manipularam com a ideia de que deus não me amaria do jeito que eu era.”
Aziraphale não sentia mais a dor e a tristeza que assombrou sua infância e adolescência, então falar sobre isso era como falar sobre uma calçada irrelevante numa rua irrelevante com uma cor igualmente irrelevante que ela passou num dia….Bem, irrelevante.
“É algo muito engraçado…Eu sempre senti tanto ódio deles, mas hoje é como se fosse algo que nunca aconteceu. Eu tenho as memórias mas não lembro o que é sentir aquilo.” Os olhos de Aziraphale se perderam no resto do chá que permanecia no fundo da xícara.
“É porque você não precisa mais sentir isso.” Aziraphale sentiu sua mão sendo recoberta por outra, com dedos mais longos e finos. A loira pôde sentir os calos que Crowley tinha por conta da jardinagem. Ela queria conhecer cada um deles. “O ódio que você tinha era por auto-defesa. Você não precisa mais dele.”
Aziraphale olhou para cima e percebeu que Crowley já não usava mais seus óculos. Aqueles olhos cansados e gentis nunca mudariam. Aqueles olhos dourados contavam uma história tão linda que a loira tinha vontade de chorar, mas ao invés disso, ela sorriu. Segurou a mão de Crowley e levantou sua outra mão para acariciar a bochecha dela.
Foi de forma lenta, pois ela não sabia onde o limite era, mas surpreendentemente Crowley pendeu até encostar na mão da mais nova.
“Eu acho que não era apenas auto-defesa…” Crowley segurou, com sua mão livre, a mão que acariciava sua bochecha e perguntou, como se estivesse encantada com algo que ainda nem foi dito. “Era o que além disso?”
“Sua defesa.”
Crowley levantou sua cabeça que estava apoiada na mão de Aziraphale e franziu sua testa mas permanecia com um sorriso no rosto. “Minha?”
“Ah, Crowley…Eles já tentaram me afastar de você tantas vezes. Falavam que você estava me corrompendo e me levando para um caminho indesejado.” Ela revirou os olhos. “Eles…Falavam, entre si, coisas horríveis de você e da sua família. Nas primeiras vezes eu tinha medo de responder e começar um conflito. Mas…Teve um dia que eu não pude ficar calada.”
Crowley estava observando com os olhos arregalados e atentos. Ela estava curiosa e ao mesmo tempo maravilhada de descobrir que Aziraphale a defendia. “Não se preocupe. Pode falar. Tenho certeza que qualquer que for o insulto, eu já ouvi.” Ela riu. Aziraphale não.
A mais nova respirou fundo e continuou. “Eles estavam conversando na sala, pensaram que eu já tinha ido dormir….Te chamaram de projeto de traveco e ouvi Gabriel dizer que isso era bom porque você morreria cedo e não teriam que se preocupar comigo. E ele riu. Ele riu como se aquilo não tivesse sido a coisa mais cruel que alguém já disse.”
Aziraphale se sentiu culpada e envergonhada de falar aquele tipo de coisa, mesmo que aquilo não refletia seu pensamento. Crowley percebeu isso e apertou mais forte sua mão na mesa. “Não precisa se sentir mal por isso, anjo. Não era você.” Elas se olharam por alguns segundos que pareceram muito mais que isso. “Mas e aí, o que você falou pra eles?” Crowley perguntou.
“Bem…Eu fiquei com muita raiva e apareci na frente deles e disse que já que a única coisa que eles se importam é seguir o caminho de deus, então eles deveriam saber que nada do que eles falam está de acordo com o que Jesus pregava e que se o céu realmente for
real, era melhor eles se prepararem pra passar a eternidade no inferno. Disse que eles seriam os primeiros a pregar Jesus na cruz se ele voltasse.”
Crowley estava quieta. E isso era algo muito incomum. Ela estava com os olhos fixados em Aziraphale. Ela abriu a boca e a fechou novamente, tentando pensar no que falar.
“Por que nunca me disse isso?” Foi a primeira coisa que ela disse depois de alguns segundos no silêncio. “Nós erámos crianças, Crowley. Como eu poderia falar para a minha melhor amiga que minha família disse que seria algo bom ela morrer cedo?”
Crowley segurou as duas mãos de Aziraphale na mesa, de maneira forte mas gentil. “Sua família não te define, Aziraphale.”
“Eu sei disso.” Ela pensou. “Hoje eu sei disso” E se corrigiu. “Mas na época eu não sabia.”
“A época já passou, anjo.” Crowley disse, soltando as mãos da loira para começar a se ajeitar em seu assento, dando indícios que iria embora.
“Você já vai?” Aziraphale perguntou um pouco decepcionada enquando via Crowley se levantar. “Tenho umas coisas da faculdade pra fazer.” Ela disse e se aproximou da mais nova. “Mas não se preocupe, anjo. Eu te encontrei, não pense que vou sumir tão fácil.” E deu uma piscadinha enquanto sorria ladina.
Aziraphale a observou enquanto ia até o caixa e pagava sua parte. Antes de ir embora, Crowley deu uma última olhada para trás, por cima do ombro e sorriu, abrindo a porta e deixando aquele lugar.
O barulho da sineta que tinha em cima da porta reverberou pela cabeça de Aziraphale. Ela queria tanto compensar o tempo perdido com a ruiva. Queria tanto conhece-la de novo e relembrar dela.
Ela se levantou, quase num transe, de sua cadeira e foi até o caixa pagar o resto da conta. Pegou sua carteira amarela sem nem mesmo saber o que estava tentando pegar, mas no fundo, bem no fundo de sua cabeça, havia uma voz lhe chamando.
“…Senhorita?” O jovem que estava no caixa estava a chamando. “S-sim? Me perdoe! O que disse?”
O menino pareceu compreensivo e repetiu o que tinha falado— pelo menos umas duas vezes— “Sua conta já foi completamente paga, senhorita.”
“O que?” Ela se chocou mas levou pouco tempo para entender que uma serpente ardilosa pagou tudo.
“Você estava sentada ali no canto com uma mulher de cabelos vermelhos, né?” Aziraphale apenas concordou com a cabeça. “Ela pagou toda a conta e pediu pra eu te entregar isso.”
O jovem tirou debaixo do balcão um café com um bilhete escrito a mão e arrastou para Aziraphale. “Ah…Obrigada então.”
A loira pegou o café e saiu da fila do caixa. Aquela mulher impossível. Ela pensou. Mas seu rosto demonstrava outra coisa. Ela sorria tão leve e tão bem. Crowley sempre teve esse poder sobre ela. Mas sempre foi algo maravilhoso.
Ela lembrou do café e o levantou para ler o que estava escrito no bilhete.
‘Espero que se lembre
da nossa promessa.
Ps: espero que goste do café
também.’
A promessa. Ela realmente estava falando sobre aquela promessa? Mas elas eram crianças e completamente ingênuas da realidade.
Mas…As duas se encontraram, não é? As duas ainda eram as mesmas crianças que se encontravam no topo da colina de Tadfield para ver as estrelas. As mesmas que fizeram aquela promessa.
Aziraphale sorriu e caminhou para fora do café, abriu a porta e a sineta tocou mas, dessa vez, o som não reverberou a ponto de deixá-la num transe. Dessa vez o som parecia ser uma linda música que acalmaria a mais severa das tempestades.