
“Deixe-o ir”.
Era o que dizia todos os dias de minha vida, desde o dia em que o conheci.
Precisava deixá-lo, mas não conseguia.
Mesmo sabendo que nunca poderíamos ficar juntos, que era impossível nosso amor. Mesmo sabendo que havia alterado todas as linhas do destino que entrelaçavam nossas vidas no momento que me aproximei.
Quando o conheci, há tantas eras, tinha apenas uma missão, acertá-lo no coração com uma de minhas flechas. Eu nunca havia falhado numa missão antes, todos os alvos eram atingidos com precisão, mas naquele dia eu falhei. Minha flecha não acertou o alvo, ela sequer fora lançada.
Era uma ironia do destino, uma provação a qual me lançaram e eu não resisti, não pude evitar me encantar, me apaixonar por aqueles lindos olhos castanhos e seu belo cabelo da mesma cor, longos, que balançavam com a leve brisa que atingia aquele campo florido. Você era a flor mais bela entre todas.
E então, o mais improvável, aquele que nunca deveria se apaixonar, que nunca deveria amar, se viu completamente envolvido, atraído por aquele mortal.
Tentei ignorar o que sentia, tentei evitar todas as formas conhecidas que esse sentimento crescesse, mas foi em vão e quando se tornou impossível de manter isso só para mim, fiz o que era proibido e que poderia custar tanto a minha vida, quanto a sua.
Apareci em sua frente.
Lembro-me com perfeição do seu olhar assustado e envergonhado quando me viu, deveria ter me preparado melhor para aquele momento e não aparecer usando somente a minha túnica branca, presa somente de um lado, no ombro, deixando a mostra boa parte do meu tronco, minha aljava com as flechas e meu arco.
— Quem é você? — me perguntou enquanto tentava não me analisar por inteiro. Se soubesse que cada gesto me fazia apaixonar-me cada vez mais.
— Sou o Cúpido — respondi e vi você rir, imaginei essa sua reação, mas não podia mentir.
— Claro e eu sou filho de Júpiter — debochou.
— Talvez da própria Vênus, devido a sua beleza — elogiei e você ficou tão vermelho e tentou esconder o rosto. Toquei de leve seu rosto e o levantei, precisava ver seus olhos. — Pode me chamar de Kakashi, Iruka. Não sabe o quanto demorei para vir te ver.
— Como sabe meu nome?
— Já te disse, sou o Cúpido e sei o nome de todos.
— Pensei que não pudesse te ver.
— Não poderia, a menos que eu deixasse. O que eu também não deveria fazer — expliquei e vi mais confusão que entendimento em seu rosto.
Contei um pouco dos meus motivos de estar ali, queria dizer que era por estar apaixonado por ele, mas tive medo de sua reação e também deixei de fora o fato dele estar destinado a outro jovem. Diria em outro momento, naquela hora, queria apenas aproveitar aquele tempo ao seu lado.
Os dias que se passaram foram os melhores de toda a minha existência. Te ver sorrir, ouvir contar sobre seu dia e as crianças que ensinava era fascinante. Ver sua devoção, carinho e dedicação com os pequenos seres agitados aumentava o meu amor por ti.
Desde o princípio sabia que estava infringindo diversas leis dos deuses, em especial aquela que eu deveria seguir. Era tarde demais para desistir, não poderia ficar longe de você.
A primeira vez que tive medo de te perder, de você nunca mais querer me ver, foi quando fez a pergunta que eu evitava pensar.
— Se você é o Cúpido e faz as pessoas se apaixonarem… tenho alguém destinado a mim? — naquele momento, me pareceu hesitante, como se tivesse com medo da resposta.
— Sim, Iruka, você tem — respondi sem olhar para ti.
— Posso… posso saber quem é a pessoa?
— Por que essa curiosidade agora? — tentei desviar do assunto, mas sabia que insistiria.
— Quero saber quem é a pessoa que terei que aprender a amar.
— Se não tivesse aparecido, iria se apaixonar por ela de qualquer maneira e nem saberia que havia sido atingido pela flecha do Cúpido.
— Se não era para saber de você e continuar acreditando que era apenas uma lenda, por que me deixou te ver?
Iruka, estava fazendo perguntas da quais já sabia a resposta.
— Sabe porque… — respondi vagamente.
— Não sei, Kakashi. Apenas faço suposições e crio teorias na minha cabeça, tentando me convencer que meu coração que está errado e que não fez tudo isso por… — parou de falar e desviou seu olhar para que não visse as lágrimas.
— Por gostar de você e não querer te ver com outra pessoa. Sei que estou sendo egoísta e prepotente, que não deveria me envolver com um mortal, mas…
— Eu também te amo.
Mal tive tempo de processar o que ouvi, pois logo te segurava em meus braços e sentia sua boca na minha. Como amava essa sua ousadia. Amava tudo em você.
A partir daquele momento, apenas tive a confirmação que não poderia te deixar, que enfrentaria tudo e todos para ficar ao teu lado, havia se tornado a razão da minha existência e nada me afastaria de você.
Divida meu tempo com minhas obrigações como Cúpido e você, meu amor. Escondia de todos, nosso envolvimento, se os outros deuses soubessem do nosso amor, seríamos afastados e punidos e não poderia te ver machucado ou morto.
Em uma das minhas fugas, antes dela, fui interceptado por Vênus, minha mãe, a deusa do amor e da beleza.
— Sei o que está fazendo, o que está escondendo. Deixe-o ir ou sofra as consequências. Achou mesmo que poderia escondê-lo de mim? Se realmente o ama, como diz, não o condene. Se for atrás dele mais uma vez, irei agir. Não faz ideia da bagunça que fez por causa dessa tolice.
— Não é tolice. Eu o amo, deveria saber disso — revidei mesmo sabendo que ela estava certa.
— O amor foi feito para os mortais, Kakashi, para lhes dar sentido a vida que levam, para fazê-los suportar todo o sofrimento. O que faria quando chegasse a hora de Iruka partir? Passará toda a eternidade sofrendo por algo que sabia que chegaria ao fim.
— Pediria a Júpiter para torná-lo imortal, assim poderíamos ficar juntos sempre — contei meus planos para ela, precisava convencê-la.
— Imaginei que faria isso, meu querido e sinto muito — não entendi o que Vênus quis dizer, até ela me mostrar Iruka, mais velho, sozinho e infeliz em um quarto escuro. Tentei me mover, mas meus pés estavam presos.
— O tempo passa de forma diferentes para nós aqui. Nesses poucos minutos aqui, na Terra se passaram anos. Iruka te esperou, dia após dias, noite após noite e você nunca voltou. Ele teria tido uma vida feliz ao lado do seu escolhido. Seria amado e amaria da mesma forma, terminaria seus dias ao lado de uma família, mas você tirou isso dele Kakashi.
— Não. Eu não tirei nada, foi você. Você que me impediu de estar ao lado dele, de amá-lo e protegê-lo como sempre disse que faria. Você é causa da infelicidade de Iruka. Me deixe ir até ele, me deixe trazê-lo para perto de mim — implorei sentindo uma dor em meu peito, a mesma dor que Iruka deveria estar sentindo.
— Se não tivesse agido pelas minhas costas, não quebrado uma das principais regras, de não se envolver com os humanos, quem sabe as coisas teriam acabado de outra maneira. Você será feito de exemplo para quem ousar seguir teus passos. Eu te libertarei, mas sempre que tentar se aproximar de Iruka novamente, as coisas sempre terminarão da mesma maneira. Quantas vezes será capaz de fazê-lo sofrer? Quantas vezes conseguirá abandoná-lo sem explicação? Quantas vezes irá fazer ele se apaixonar apenas para machucá-lo? É um ciclo infinito, Kakashi. Deixe-o ir, agora.
Deveria ter entendido o que minha mãe falou naquele momento, deveria ter levado a sério suas palavras. Mas acreditei que meu amor seria o suficiente para impedir tudo aquilo de acontecer. Acreditei que meu amor não iria machucá-lo e sim, salvá-lo. Como era um tolo ingênuo.
Levou algumas vidas para poder finalmente entender que meu amor apenas machucava Iruka. Vênus e Júpiter fizeram questão de fazê-lo renascer em épocas diferentes, com nome diferente, mas sempre com a mesma alma. E eu sempre o encontrava, sempre nos apaixonávamos e sempre acabávamos da mesma forma. Eu diante da minha mãe, o vendo definhar, esperando por um retorno que nunca acontecia, ouvindo a mesma súplica da deusa.
— Deixe-o ir.
O mundo mudou tanto, os humanos evoluíram, prosperaram, causaram mais guerras que paz, mas pareciam nunca desistir. Infelizmente, nos últimos tempos, pareciam retroceder em relação aos outros, sempre julgando, condenando, separando aqueles que consideravam diferentes, aqueles que simplesmente queriam os mesmo direitos, queriam ser livre e amar.
Em meio a esse mar de pessoas tão diferentes, eu o encontrei mais uma vez. E dessa vez, minha mãe pegou pesado. Iruka estava exatamente igual quando o conheci. Os mesmos olhos castanhos, cabelos longos presos num rabo de cavalo, até a mesma cicatriz. E era um excelente professor, seu amor por crianças e por ensinar nunca mudou.
“Deixe-o ir”, uma voz conhecida ecoou em sua cabeça, sabia a quem pertencia, quando Iruka se aproximou. Não pude evitar sorrir, mas meu sorriso logo desapareceu ao escutar as palavras que saíram de sua boca.
— O que quer de mim? Por que não me deixa em paz? Me abandonar uma vez não foi o suficiente? Quer me iludir, me enganar mais uma vez?
Não esperou por uma resposta vinda de mim e nem sabia se conseguiria responder algo. Vê-lo com tanta dor, tão machucado e saber que eu era o causador de tudo aquilo, me destruiu, ou melhor, terminou de destruir o último pedaço inteiro do meu ser. Vênus fez um bom trabalho, apesar de ter levado séculos, milênios para que eu finalmente entendesse a lição. Pelo menos, minha amada mãe deixou só a primeira lembrança, não saberia lidar se tivesse que explicar ou contar sobre todas às vezes que causou dor e sofrimento aquele que jurei amar e proteger.
Por um tempo, acreditei que apenas me afastando e não me envolvendo seria o bastante para reparar o mal que causei. Infelizmente, pareceu só piorar. Para colocar um ponto f final em tudo aquilo e livrar meu amor daquele tormento, precisaria deixá-lo ir, precisava me despedir, me desculpar pessoalmente.
Conseguia ouvir a voz da minha mãe me dizendo para escolher um momento melhor que aquele, mas se não o fizesse aqui e agora, não teria outra oportunidade e não o faria sofrer mais uma vez. Abri a porta devagar e por alguns segundos, minutos ou horas, perdi a noção de tempo ao observar aquele que mais amei em toda a minha existência. Iruka estava belo em seu conjunto de terno branco, cabelo trançado de lado.
— Você está magnifico — não pude impedir as palavras que saltaram de minha boca. — Aposto que a própria Vênus está com inveja da tua beleza.
— O que você quer, Cúpido? — perguntou enquanto se virava, como queria o enrolar em meus braços e implorar por perdão, mas aquilo só adiaria o inevitável.
— Desculpa. Quero te pedir desculpas, por tudo, meu amor…
— Não… não me chame de amor… — Iruka me interrompeu.
— Desculpa, de novo. Me perdoes, Iruka, por tudo. Eu nunca quis te magoar, te fazer sofrer, muito menos te abandonar. Eu tinha o plano perfeito e sabia que daria certo e nada disso teria acontecido. — pausei e esperei por alguma palavra, algum olhar, nada veio, então continuei. — Pediria a Júpiter para te tornar imortal e assim, viveríamos juntos, não precisaríamos nos separar. Não pude falar com o deus e nem me despedir de você. Fui preso, julgado e condenado em minutos, mas para você, foram muito mais que isso. Fui obrigado a te ver sofrer todos os dias e não podia fazer nada, o que eu mais desejava era te abraçar, te beijar e dizer que tudo ficaria bem. Me negaram uma despedida, um adeus, um último beijo. Quando te conheci, me apaixonei, não pensei nas consequências que esse sentimento poderia trazer. Como um deus do amor, acreditava que o amor era o sentimento mais belo e que jamais traria dor. Se causasse dor e sofrimento, não seria amor. Me questiono, Iruka, era amor que senti, ou apenas obsessão? Se não tivesse aparecido, me aproximado, me envolvido, nada disso teria acontecido, nunca teria que passar por todo esse sofrimento. — não consegui mais falar nada, as emoções tomaram conta de mim, naquele momento, não me sentia um deus e sim, um humano como aquele a minha frente.
— Se arrepende? De me amar? De me mostrar toda a beleza do mundo? De me fazer a pessoa mais feliz enquanto estávamos juntos? — apesar da voz baixa e embargada, consegui compreender facilmente.
— Não, meu único arrependimento é te fazer sofrer. Eu te amei, meu amor, com todo meu ser. Eu te amo como amo minha vida. Eu te amarei por toda eternidade e além.
— Então fique, não vá embora, não me abandone mais uma vez — implorou enquanto se virava para mim.
“Deixe-o ir!”
“Deixe-o ir!”
“Deixe-o ir!”
“Deixe-o ir!”
“Deixe-o ir!”
“DEIXE-O IR!”
Ouvia a voz de minha mãe e do próprio Júpiter ecoar em minha mente e sabia que se ficasse, se cedesse ao pedido de Iruka, continuaríamos naquele tormento eterno. Mesmo sabendo que era errado e que talvez aquilo machucasse ainda mais nós dois, o beijei como se a minha vida dependesse disso, como se aquele ato fosse resolver todos os problemas e nós teríamos finalmente o nosso final feliz.
Usando toda a força de vontade que tinha, todo o amor que sentia, sabendo que seria melhor e o certo a se fazer, me afastei. Não conseguiria dizer adeus, não conseguiria me despedir.
Iruka me encarava com olhos avermelhados, os lábios macios um pouco inchados, o corpo tremendo, num pedido para ficar. Fechei os olhos, se o encarasse mais um segundo, perderia a coragem. Estiquei meu braço e o tão conhecido arco surgiu, um pouco desgastado pela falta de uso, minha aljava contendo apenas uma flecha também estava ali. Ainda de olhos fechados, peguei, aquela flecha que nunca disparei, tentando não tremer, a coloquei na corda. Abri meus olhos.
— Deixar ir, também é uma forma de amar.
Declarei antes de soltar a flecha, que atingiu seu alvo com precisão. O coração daquele que amei, que amaria para sempre, não pertence mais a mim. Nunca me pertenceu e agora, era hora de dizer adeus.