
Dezembro de 2024
A noite estava silenciosa, exceto pelo som da chuva fina batendo contra as janelas do apartamento. Catherine Coeur estava sentada à mesa, com um cigarro entre os dedos, observando a fumaça subir e se dissipar no ar. A luz do abajur criava sombras na parede, e o papel diante dela permanecia em branco.
Ela nunca foi uma mulher de escrever cartas.
Palavras eram seu ofício, seu talento, sua ferramenta mais afiada. Mas como deixar um sentimento tão profundo fluir em frases? Como se colocava anos de uma história inacabada em uma página?
Ela deu um gole no Irish Coffee, a bebida que sempre lembrava o remetente da carta. Viciante, inconfundível, feita para ser apreciada lentamente. Mas Catherine nunca soube beber aos poucos.
Ela consumiu tudo de uma vez.
Coeur percebeu que deveria ter provado Elise como se prova um bom whiskey — degustando, entendendo cada nota, cada camada. Mas não. Ela tomou Elise como se não houvesse amanhã. Como se pudesse segurá-la para sempre.
Mas o Irish acaba.
E Elise também acabou.
Catherine apertou a caneta entre os dedos e antes que perdesse a coragem escreveu no topo do papel:
Elise,
O nome sozinho foi o suficiente para seu peito apertar. Ela fechou os olhos, lembrando-se do som daquela voz, da risada discreta, do olhar que sempre parecia enxergar através dela. Mas que preferiu ir embora.
Catherine soltou um suspiro pesado, como quem só agora pudesse assimilar tamanha perda.
Três anos.
Três anos sem nenhum vestígio de Pellerin em sua vida.
Não teve mais peças em conjunto, não teve vulto dela que permanecesse. Elise se apagou de sua existência como se nunca tivesse estado ali.
E isso foi o que mais doeu.
Ela quis amassar aquele papel, quis jogá-lo longe. Quis brigar.
Porque como Elise ousou sumir de sua vida? Como ousou deixá-la com essa ausência intransponível? Como pôde pegar o coração inteiro de Coeur, segurá-lo nas mãos e, um dia, simplesmente decidir que não queria mais?
E, sim, ela viu. Ela viu Elise ser feliz sem ela.
Viu seu nome nos jornais. Viu fotos. Viu a forma como ela sorria, como parecia inteira nos braços de James, como não parecia sentir falta de nada. Como se Catherine tivesse sido apenas um erro.
E Catherine sempre soube. Sempre soube o quão repugnante poderia ser, o quanto amá-la era uma tarefa árdua e dolorosa.
Ninguém nunca ficou. Nenhum dos amores passageiros, nenhuma das mulheres com quem dividiu a cama, nenhuma das pessoas que ousaram tentar entender o caos que ela era.
Mas se nem Elise Pellerin pôde ficar… então era isso. Ninguém nunca ficaria.
Ela pegou a folha e a segurou entre os dedos. “Amasse, Catherine. Jogue fora.” Mas a mão dela não obedeceu. Porque Elise não era algo que se apagava. Ela era tatuagem, cicatriz, marca viva. Gravada não apenas na memória, mas na pele, no sangue, em cada maldito espaço entre um batimento cardíaco e outro.
E, acima de tudo, Elise estava ali — espalhada em sardas douradas que Catherine nunca conseguiu deixar de procurar. Uma constelação desenhada no rosto dela, um mapa que Catherine percorreu com os olhos tantas vezes que já sabia de cor.
E como se esquece algo que se tornou parte da própria existência?
Catherine fechou os olhos. Apertou a folha entre os dedos. Mas não conseguiu soltá-la, então ela pegou a caneta e escreveu.
Pensei muito antes de escrever isso, mas faz tempo que meu coração pede para falar. Talvez essa carta seja apenas sobre mim, sobre um desejo egoísta de encontrar alguma paz no meio do que sobrou de nós. Ou talvez, seja sobre você. Sobre o que você merece ouvir. Sobre o que eu nunca soube dizer.
O tempo é cruel. Ele preenche os vazios que deixamos para trás, cobre as feridas e, ao mesmo tempo, nos ensina que algumas dores não passam – apenas se tornam parte de quem somos. E eu preciso carregar a minha.
Eu olho para trás e vejo quem eu fui. Vejo erros que cometi, palavras que não disse e outras que jamais deveria ter dito. Vejo atitudes impensadas, gestos egoístas e a falta de cuidado. Eu sei que, em algum momento, posso ter feito você duvidar do seu valor, da sua força ou da sua capacidade de ser amada do jeito certo. E isso me dói. Muito. Não porque eu quero ser perdoada ou seja lá qual o pensamento egoísta que pode parecer com a minha ação de agora, mas simplesmente porque você não merecia carregar isso.
Elise, você foi a minha maior aposta. E não deveríamos ser julgadas por apostar no amor e em alguém que tanto amamos, não é? Mas pagamos um preço alto demais. Sempre soubemos o preço, mas viver ele, senti-lo no peito, é muito mais difícil do que apenas conhecer o risco.
Pellerin, você é e sempre será a parte mais bonita e sincera da minha vida. Você foi meu porto seguro por anos, e tudo que eu sempre quis foi te passar um pouquinho do conforto e segurança que você sempre me passou. Você sempre soube o que fazer quando eu desmoronava, mas eu nunca soube te dar o mesmo. E eu sinto muito.
Eu nunca quis que você fosse embora.
Mas, ao mesmo tempo, eu entendo.
A única coisa que eu quero agora é que você seja feliz. Não sei se já encontrou esse amor leve, inteiro, sem as tempestades que eu trouxe para você. Não sei se alguém já segurou seu rosto e disse que você merece o mundo. Mas se ainda não aconteceu, eu espero que aconteça. Porque você merece. Você sempre mereceu.
Eu escrevo isso não para reviver memórias, nem para abrir feridas que o tempo já cobriu, mas para honrar quem você foi para mim — e quem você sempre será.
Obrigada.
Por ter sido minha calmaria quando eu só sabia ser tempestade.
Por ter segurado minha mão quando eu não sabia para onde ir.
Por ter me amado mesmo quando eu não sabia receber amor.Por tudo.
Obrigada, Elise.
E desculpe.
Catherine.
O ponto final ficou ali, fixo, definitivo como se desafiasse Catherine a desfazê-lo, a torná-lo novamente um ponto e vírgula. Ela aprendeu com a última vez, que não se mexe em criações finalizadas, não se muda o rumo do que já foi. Crie outra, viva outra.
Catherine encarou as palavras por mais tempo do que deveria, os olhos ardendo, o peito afundando em algo que não sabia nomear. Ou melhor, ela sabia, era uma despedida que não queria ser uma despedida, mas sabia que precisava ser.
Ela passou os dedos pelo papel como se pudesse sentir Elise ali, como se a tinta fosse suficiente para trazê-la de volta. Mas não era.
Nunca seria.
Ela dobrou a carta com cuidado, como quem embala uma última lembrança. Sentiu a garganta fechar, o peso do tempo desabando sobre os ombros. Os olhos encheram-se de lágrimas pela primeira vez em anos.
Ela não tentou impedi-las.
Quando se levantou da cadeira, as pernas estavam fracas, como se todo o corpo rejeitasse o que estava prestes a fazer. Pegou o sobretudo, mas o frio daquela noite não era nada comparado ao vazio que crescia dentro dela.
A calçada molhada refletia as luzes de natal da cidade, distorcendo tudo ao seu redor. Cada passo ecoava como um aviso, como se o universo quisesse que ela voltasse atrás, que continuasse fingindo que Pellerin não existia mais. Não era justo reaparecer, era?
Mas ela não voltou.
A caixa de correio estava ali, esperando. Como um confessor silencioso, pronto para guardar aquilo de mais nobre e verdadeiro que Catherine carregava.
Ela parou diante dela.
Respirou fundo.
O papel tremia em suas mãos.
Ela pensou em rasgar. Pensou em correr. Pensou em guardar a carta no bolso e fingir que nunca a escreveu.
Mas Catherine Coeur nunca fugiu de nada.
Ela apertou os lábios, fechou os olhos e, antes que pudesse mudar de ideia, soltou o envelope na fenda metálica.
O som foi quase imperceptível.
Mas dentro dela, foi um estrondo.
Ela ficou ali por um instante, imóvel.
As lágrimas voltaram, silenciosas.
Ela passou a mão pelo rosto, respirou fundo e levantou a cabeça.
E então, sem olhar para trás ou esperar qualquer coisa dessa ação, foi embora.
:: Quarta Parede — O ponto final é o ponto de partida. ::
Outubro de 2023
A taça de vinho estava esquecida entre seus dedos. O restaurante era iluminado por uma luz âmbar suave, o suficiente para tornar cada detalhe mais íntimo, mais sufocante. Elise deveria estar focada no homem sentado à sua frente. Mas sua visão estava fixa em outra direção.
No canto oposto, de costas para a entrada, estava Catherine.
Os cabelos loiros, tão familiares, caíam sobre os ombros como se nunca tivessem mudado. Mas algo nela parecia diferente, mais leve — ou talvez fosse Elise quem estava diferente, carregando um peso que Catherine não parecia mais sentir. Um fardo pesado demais, por uma escolha pesada demais.
Elise piscou, como se sua mente estivesse pregando uma peça, implorando para ser apenas mais um devaneio, mas não. Não estava. Era Catherine.
Ela levou a taça de vinho aos lábios, tentando recuperar algum controle sobre o próprio corpo, mas o gesto foi automático, vazio. Tudo dentro dela parecia congelar enquanto seus olhos permaneciam fixos na figura à distância.
Fixos na ideia de que deveria ter sido mais forte. Deveria ter tido bravura para se encontrar e permitir que Catherine continuasse em sua vida. Elise sabia que elas tinham tudo, mas foi ela quem não soube lidar com a melhor amiga ocupando um outro espaço. Ela se apegou a um passado que não havia morrido — havia melhorado. No fundo, Elise não sabia como ser outra coisa na vida de Catherine.
O sorriso de Catherine trouxe Elise de volta para o presente. Catherine inclinou-se levemente na direção da mulher ao seu lado, sussurrando algo que a fez rir. Elise piscou, o peito queimando com a lembrança de quem ela mesma havia sido — e de como deixou Catherine ir por capricho.
Elise apertou a taça de vinho com mais força, tentando conter o tumulto dentro dela. Mas era impossível. Catherine estava ali, tão perto e, ao mesmo tempo, a um universo de distância.
Ela desviou o olhar, incapaz de sustentar a visão de Catherine tão inteira ao lado de outra. Outra pessoa que parecia fazer bem a ela. Mas, não foi esse o único pedido que Elise fizera ao universo? Que Couer fosse feliz como merecia, como ela foi incapaz de fazer.
Quando voltou a olhar, o que viu destruiu o pouco que ainda restava dentro de si.
A mulher ao lado de Catherine, com um sorriso afiado que irradiava confiança, falava algo que Elise não podia ouvir. E Catherine… Catherine sorriu de volta. Não um sorriso qualquer. Aquele sorriso.
O sorriso que Elise achava que nunca veria de novo, muito menos dirigido a outra pessoa.
O mundo ao redor de Elise desabou.
A conversa do homem à sua frente tornou-se ruído branco. Os talheres batendo nos pratos, os risos ao fundo, a música — tudo parecia vir de muito longe.
Ela estava ali, presa naquele instante, enquanto Catherine segurava a mão da mulher. Os dedos entrelaçados. A forma como a outra inclinava-se para mais perto. A naturalidade com que elas existiam juntas.
Catherine seguiu em frente.
Elise sabia que isso aconteceria. Porque era de Catherine Coeur que estavam falando. Mas saber e ver eram coisas completamente diferentes. E foi por isso que Elise mudou-se para outro continente. Para nunca correr o risco de vê-la.
A taça de vinho escorregou um pouco entre seus dedos, mas Elise a segurou com força antes que caísse. Não percebeu que sua mão tremia até que o líquido vermelho quase transbordou.
— Elise?
A voz do homem à sua frente quebrou o momento como um vidro rachando.
Ela piscou, forçando-se a desviar o olhar.
— Desculpe. Estou distraída.
Ele franziu a testa, confuso, mas não insistiu.
Elise tentou prestar atenção no que ele dizia, mas as palavras não faziam sentido. Seu olhar retornou para Catherine, incapaz de resistir.
A sensação de perda foi esmagadora. Sua boca queria gritar o que seu coração implorava para despejar, expurgar, expelir.
Diga, Catherine, diga: tem como vomitar você?
Tem como apagar cada vestígio seu que ficou pelo caminho?
Catherine não a viu.
Isso Elise sabia. Se tivesse visto, talvez algo em seu rosto a teria traído. Mas Catherine parecia completamente absorta na mulher à sua frente, no mundo que elas pareciam construir juntas. E pelo anel no dedo daquela mulher, Elise sabia que o futuro delas estava sendo desenhado ali.
Elise engoliu em seco, o gosto do vinho amargo demais para engolir.
Ela queria ir embora. Queria levantar da mesa e sair correndo antes que Catherine risse de novo, antes que segurasse aquela mão com ainda mais firmeza, antes que Elise fosse esmagada pela certeza de que havia chegado a hora de aceitar que nunca mais teria Catherine de volta.
Mas ela não podia se mover.
Tudo o que pôde fazer foi sentar ali, como uma espectadora invisível do que poderia ter sido sua vida, se tivesse sido diferente, se ela tivesse conseguido enxergar o fim do túnel. Catherine sempre havia sido a luz que a guiava para fora do lago escuro e profundo. Mas como encontrar o caminho de volta se Catherine havia apagado a luz?
E então Catherine sorriu novamente.
Elise fechou os olhos.
Ela entendeu.
A porta não poderia ficar mais aberta. Catherine era inverno, o vento que corta a pele. E ela era sensível a temperaturas baixas.
::
Elise empurrou a cadeira para trás com mais força do que pretendia. O som dos pés de metal arrastando no chão chamou a atenção de James, mas ela não se importou. Apenas saiu.
A noite estava fria, mas o ar do lado de fora do restaurante parecia insuficiente para aliviar o peso em seu peito. Elise andava rápido, os saltos ecoando contra o chão de pedra, como se pudesse fugir do que acabou de acontecer. Como se pudesse se esconder do seu grande “e se?”.
Mas ela sabia.
Ela sabia que James viria atrás dela.
— Você pode pelo menos fingir que não está fugindo? — A voz dele cortou o silêncio da rua, carregada de uma exaustão que Elise conhecia bem.
Ela parou, mas não se virou.
— Não estou fugindo.
James riu, um riso sem humor, um riso amargo. — Ah, não? Então por que diabos você saiu daquele restaurante como se tivesse visto um fantasma?
Elise fechou os olhos e respirou fundo, mas ele já sabia. Claro que sabia.
— Era Catherine, não era?
Ela se virou devagar, os olhos escuros de James a perfurando.
— Sim.
James assentiu lentamente, como se estivesse confirmando algo que já esperava.
— E o que isso importa? — a voz de Elise soou mais dura do que pretendia.
James passou a língua pelos dentes, cruzando os braços.
— Importa porque você tá aqui comigo, mas olhou pra ela como se tudo o que tivemos no último ano nunca tivesse existido. Como se eu fosse… nada. E ela, ela… fosse tudo.
Elise abriu a boca para rebater, mas ele não terminou.
— Importa porque, quando me aceitou de volta, eu achei que você realmente queria tentar.
Ela riu, mas não havia nada engraçado. — E eu não tentei, James?
Ele a encarou, os olhos queimando em fúria contida.
— Você tentou? — James deu um passo mais perto, abaixando a voz. — Porque pra mim, parece que você só estava tentando fugir dela.
Elise sentiu o impacto dessas palavras como um soco. Mas ficou em silêncio, os olhos agora brilhando com uma fúria não por James, mas por si mesma.
Por sua estupidez de tê-la deixado ir.
Por não ter pedido: "Ei, Catherine, me espera?". Mas era Catherine, ela não esperava por ninguém. A ignorância pode ser uma virtude, quisera Elise ser ignorante de Catherine Coeur. Talvez as coisas tivessem sido diferentes.
E nessa, ela perdeu Catherine. E machucou James.
— Me diz, Elise. Me diz que, se Catherine virasse pra você agora e dissesse que ainda te ama, que quer você de volta...
James engoliu seco, olhando diretamente nos olhos dela. Aqueles olhos que continham faíscas de raiva, mas, acima de tudo, uma verdade impossível de esconder.
— Me diz que você não largaria tudo pra correr pra ela.
Elise sentiu o ar escapar de seus pulmões.
Porque ela não podia dizer isso.
Porque, no fundo, ela sabia a resposta.
James riu baixo, balançando a cabeça.
— Foi o que eu pensei.
Elise sentiu a garganta fechar. — James...
Ele ergueu a mão, impedindo que ela continuasse. — Sabe o que mais dói? Eu sempre soube que havia alguém. Mesmo antes de eu voltar. Mesmo antes de eu entrar de novo na sua vida. Eu só nunca quis admitir que esse alguém era Catherine, porque eu sabia que nunca teria chance de brigar com ela.
Elise desviou o olhar, sentindo o peito se rasgar, como se a constatação de outra pessoa dizendo o que ela tanto tentou omitir fosse suficiente para destruí-la.
— Você escolheu voltar pra mim porque não estava bem.
James deu um passo para trás, como se estivesse chegando a essa conclusão naquele exato momento.
— Porque eu era o seu perfeito escape. Não porque queria.
Elise queria gritar. Queria negar. Mas era verdade. Tão verdade quanto quando ela finalizou aquele ciclo com Catherine e soube que não era um adeus, que não era um ponto final. Tão certo quanto o amor que sentia por Coeur, era a certeza de que James foi um escape seguro.
E James sabia.
— E sabe o que é mais fodido, Elise? Você me ama. Eu sei que ama. Mas não é suficiente, né?
O silêncio foi a única resposta dela. Porque o que ela poderia fazer? Mentir pra si mesma já tinha sido quase impossível. Ela não conseguiria mentir para ninguém.
— Você olhou pra ela e, pela primeira vez, eu entendi. Eu sou a escolha segura. Ela é a escolha que te destrói.
Elise sentiu a lágrima quente escorrer antes mesmo de perceber que estava chorando. James a observou por um momento, e então, suspirou.
— Espero que um dia você tenha coragem de escolher a destruição.
E então, sem esperar por mais nada, ele se virou e foi embora.
Deixando Elise sozinha com o único pensamento que a consumia.
Se Catherine a chamasse hoje, ela largaria tudo?
A resposta veio antes que ela pudesse evitá-la.
Sim.
Sim.
Mil vezes sim.
:: Quarta Parede — O ponto final é o ponto de partida. ::
Por três anos até Dezembro 2024
Catherine soube que estava perdida no momento em que beijou Elise. Não porque foi errado, mas porque foi a única coisa certa em muito tempo.
Ela nunca tinha parado por ninguém. Sempre foi movida por impulsos, pelo desejo do momento, pela vontade de experimentar. Mas quando beijou Elise, pela primeira vez tudo fez sentido.
Depois de anos ouvindo as pessoas ao redor insinuarem que havia algo entre elas, depois de tantos olhares, ciúmes disfarçados, trocas de palavras que sempre pareciam carregar mais do que diziam… ali estava a verdade.
Era ela. E Catherine soube.
Soube no instante em que seu corpo derreteu sob o toque de Elise, quando sua mente colapsou e, pela primeira vez, olhou naqueles olhos azuis que refletiam a mesma intensidade de sentimento.
Era Elise. Sempre foi.
E, então, elas se permitiram.
Catherine não tinha mais Madeline. Elise já estava longe de James. E por um tempo, funcionou. Foi intenso, foi quente, foi como se tivessem esperado a vida inteira por aquilo.
Mas Elise não estava bem. Já vinha há algum tempo presa dentro de si mesma, tentando encontrar respostas que não pareciam chegar. James voltou, e saiu da vida dela na mesma velocidade. E então, Elise começou a afundar.
O problema era que Catherine estava afundando junto. Ela via Elise cada vez mais fechada, tentando lutar contra algo que Catherine não sabia como ajudar. Ela tentava, mas pela primeira vez, Elise não falava com ela.
Antes, qualquer problema que Elise tivesse, ela recorria a Catherine. Mas agora, quando o problema era Catherine, para onde Elise iria?
E então veio o pior.
Elise começou a se sentir deslocada.
Porque Catherine sempre teve sua independência, sempre teve seu círculo social, sempre teve suas saídas com Debbie, sempre soube equilibrar sua vida. Mas Elise não conseguia mais ver isso como algo apaziguador. Ela sentia que estava ficando de fora. E foi se afastando.
Catherine tentava puxá-la de volta, mas Elise já não conseguia ouvir. Não importava o que fazia, nada parecia suficiente.
Elise ficava ali, sentada ao lado dela no sofá, presente, mas distante. Catherine via os olhos dela vagando, a mente em outro lugar. Às vezes, ela sorria, mas não era o sorriso que Catherine conhecia.
E então vieram as brigas. Pequenas no começo. Sobre coisas bobas, sobre nada. Depois, maiores. Sobre tudo. Até que, uma noite, Catherine entendeu. Elise não estava ali de verdade. Não como antes. Não como precisava estar.
E então, a dor veio. E Catherine não podia suportar isso. Ela passava noites olhando para Elise dormir, sem saber o que fazer.
Mas a realidade era que Elise estava infeliz. Por seus próprios motivos. Mas também com ela. Por causa dela. E não havia nada que Catherine pudesse fazer para mudar isso.
Catherine observou Elise sentada no sofá no meio da sala, a respiração pesada depois de mais uma discussão que não levou a lugar algum. Os olhos dela estavam vermelhos, a expressão tensa, os ombros caídos como se tudo pesasse demais.
E Catherine soube.
Soube que, por mais que doesse, por mais que quisesse Elise com cada parte de si, ela não podia segurá-la ali.
Então, Coeur atravessou o espaço entre elas, sem pressa e sentou no colo de sua pessoa favorita nesse mundo. Levantou a mão hesitante, deslizando os dedos pelo rosto de Elise, sentindo a pele quente contra a sua em uma tentativa de gravar cada detalhe em sua memória.
Porque sabia que aquela seria a última vez.
Então, baixinho, disse:
— Você precisa ir, meu amor.
Elise piscou, como se não tivesse entendido. As lágrimas brilhavam, banhando a imensidão azul. A constatação bateu direto no peito de Pellerin.
— O quê?
— Você precisa se cuidar, Elise. — A voz de Catherine falhou, mas ela manteve o olhar. Manteve a firmeza que não sentia. — Vá para perto da sua família. Vá se lembrar quem você é, o quão importante você é.
Elise congelou.
O silêncio entre elas ficou pesado.
Os olhos dela começaram a brilhar, o queixo tremendo ligeiramente.
— Catherine…
Catherine fechou os olhos por um instante, reunindo a força que já não tinha. E então a beijou. Um beijo quebrado, pequeno. Mas definitivo.
— Eu só quero que você seja feliz.
Elise soltou um soluço curto, como se tivesse sido atingida.
Mas Catherine não cedeu. Porque sabia que, se cedesse, imploraria para que ficasse. E Elise não podia ficar.
Então, ela a soltou.
E Elise foi.
E Catherine nunca se sentiu tão vazia.
::
Catherine tentou.
Tentou esquecer Elise. Tentou seguir em frente. Tentou se convencer de que o que teve com ela foi um capítulo encerrado, algo que, por mais que tivesse sido intenso, já não cabia mais na vida que estava construindo. Seu ponto final, sem ponto de partida.
E então, apareceu Camille.
No começo, parecia certo. Ou, pelo menos, parecia possível. Camille era encantadora, sabia exatamente o que dizer, como se encaixar na rotina de Catherine, como fazê-la sentir que estava seguindo em frente.
Coeur se deixou levar.
Porque precisava de alguma coisa. Se Elise não era mais uma opção, então qualquer coisa serviria. E Camille era isso. Conveniente.
Catherine, por tanto tempo acostumada a intensidade, a caos, a sentimentos que transbordavam, aceitou a calmaria como quem aceita um fardo inevitável.
Mas Camille nunca foi calma. Ela era exigente. Sutil no começo, impositiva depois. Ela queria moldar Catherine. Diminuí-la. Cortar suas arestas até que coubesse exatamente na versão que ela esperava.
E Catherine cedeu. Porque não tinha mais forças para lutar.
Cedeu em pequenas coisas no início. Deixou de sair com Debbie porque Camille não gostava. Começou a evitar algumas pessoas. Mudou a forma como falava sobre certos assuntos, se policiou para evitar discussões. Foi se fechando, se retraindo.
E, quando percebeu, não era mais Catherine Coeur.
O brilho tinha desaparecido. Ela se olhava no espelho e não via mais nada. E se perguntava: por que está nisso, Coeur? Mas não tinha coragem de responder.
Porque sair exigiria energia. E Catherine já não tinha mais nenhuma.
Até que um dia, Camille passou dos limites e Coeur finalmente quebrou aquela redoma de vidro, tão frágil que usou para embaçar sua visão. Ela não queria estar ali. Nunca quis. Nunca deveria ter ficado.
Ela se afastou, arrumou as malas, não deu explicações. Apenas foi embora.
E naquela mesma noite, sentada no chão do seu novo apartamento, cercada de caixas e de um silêncio que parecia maior do que qualquer coisa que já tinha sentido, Catherine chorou.
Não porque sentia falta de Camille.
Mas porque, depois de tanto tempo, finalmente entendia o que Elise viveu.
Era isso. O sufocamento. A sensação de não se encaixar. O medo de não conseguir sair.
Agora, ela entendia. E doeu como nunca saber que podia ter feito Elise se sentir daquele jeito. E então, sem pensar duas vezes, pegou um papel e escreveu.
Porque depois de tudo, depois de todas as tentativas frustradas de seguir, depois de se perder completamente, só havia um caminho possível.
Elise. Ela precisava de Elise naquela noite mais do que nunca.
:: Quarta Parede — O ponto final é o ponto de partida. ::
Dezembro de 2024
Elise não soube quantos minutos ficou olhando para o envelope sobre a mesa.
Os dedos repousavam ao lado dele, mas ela não se movia. Seu nome estava ali, escrito na caligrafia que reconheceria em qualquer lugar. Mesmo sem ver há anos, mesmo depois de apagar mentalmente tudo que um dia recebeu de Catherine, ainda assim, saberia.
O estômago afundou, o coração acelerou de um jeito desconfortável.
Abriu o envelope devagar, as mãos trêmulas mesmo sem querer admitir. A carta deslizou para fora e, antes mesmo de começar a ler, soube que nada mais seria o mesmo depois daquilo.
Elise leu cada palavra sem piscar, mas não conseguia absorver de verdade.
Era como se estivesse separada do próprio corpo, como se apenas seus olhos percorressem o papel, mas sua mente estivesse longe, presa no passado, no tempo em que Catherine era parte de tudo, no tempo em que não havia dúvidas de que eram elas contra o mundo.
Elise apoiou os cotovelos sobre a mesa, segurando a testa com uma das mãos. Fechou os olhos, tentando encontrar um espaço onde sua mente pudesse funcionar. Mas, pela primeira vez em muito tempo, não era dor.
Não era raiva.
Não era arrependimento.
Era algo novo.
Algo que não ousava nomear, porque ainda carregava o medo de que o destino pudesse lhe arrancar aquilo de novo.
Mas ali estava Catherine Coeur.
Depois de anos, depois de achá-la inatingível, depois de se conformar com o fato de que teria Coeur de volta apenas em sua vida, mas nunca mais entre seus dedos, entre suas palavras, entre seus dias.
E então, descobriu.
O noivado tinha acabado.
Catherine não estava mais com Camille.
Elise soube da notícia antes mesmo de Catherine lhe dizer qualquer coisa. Porque a informação circulava, porque o nome de Coeur ainda era grande demais para que ninguém comentasse.
Mas Elise não sentiu alívio. Não sentiu a vitória. Não sentiu o gosto amargo da vingança, porque nunca foi sobre isso.
Foi sobre ela.
Sobre o que sempre soube, mesmo quando tentou negar. Ela passou um ano inteiro sozinha porque não havia mais ninguém que pudesse ocupar aquele espaço. Porque não se permitiu abrir para outro alguém.
Porque tudo que queria era Catherine.
E agora, Catherine estava ali.
Não escrevendo para dizer que ainda ia casar.
Não escrevendo para se despedir.
Mas abrindo uma porta.
E Elise viu nisso a chance da sua vida. O que passou já não importava, porque Catherine ainda era dela. E ela ainda era de Catherine.
E talvez, só talvez, o universo estivesse lhe dando um caminho de volta para casa.
Dessa vez, sem desculpas.
Dessa vez, sem medo.
Dessa vez, para sempre.
::
Coeur,
Quero que saiba que estou respondendo isso assim que li. Não porque foi um impulso, mas porque não há nada que eu queira segurar para depois.
Não quero e não vou apontar dedos ou mexer em feridas, até porque o processo de cura já aconteceu por aqui e, hoje, consigo entender o seu lado de tudo. Mas, acima de tudo, consigo enxergar o meu.
Eu sei o que fiz de errado.
E sei que não queria ter te deixado ir. Mas precisei. E foi a coisa mais difícil que já fiz.
A sua ausência ainda preenche os espaços ao meu redor. E não tem um só momento em que eu não tenha te carregado comigo. Não teve uma pessoa que tenha entrado na minha vida que não tenha sabido quem você é.
Porque você não foi na minha vida, Coeur. Você é.
E sempre vai ser.
Catherine, você é o amor da minha vida.
A única pessoa com quem eu envelheceria. E eu não tenho medo de dizer isso. Porque mesmo depois desses anos, de tudo o que aconteceu, você permaneceu intacta aqui dentro.
Eu sempre soube que, uma hora, voltaríamos a nos falar. Agora que está acontecendo, eu não sei o que dizer primeiro.
Não sei se falo da saudade. Ou da alegria de saber que você ainda me vê. Ou da sensação de que esse é um daqueles momentos que a gente espera a vida inteira. O que eu sei é que quero te encontrar, não para reviver o que passou; não para consertar o que não pode ser consertado; mas para olhar nos seus olhos e ver que você está aqui. E que, depois de tudo, ainda podemos ser alguma coisa.
Coeur, sua carta repousa sobre a minha mesa e foi como viajar de volta para casa. Sua caligrafia foi como sentir a brisa suave de um fim de tarde na praia.
E, por fim, quero que saiba que, pode você acreditar ou não, mas foi amada. E ainda é.
Sinto sua falta.
:: Quarta Parede — O ponto final é o ponto de partida. ::
Dezembro de 2024
Elise,
Eu não sabia como seria ler suas palavras depois de tanto tempo. Não sabia se meu peito explodiria de alívio ou de dor. A verdade é que foi um pouco dos dois.
Você diz que sempre soube que uma hora voltaríamos a nos falar. Eu queria ter tido essa certeza. Mas passei tanto tempo tentando apagar a ideia de que ainda poderia te ter de volta, que ler sua carta agora parece um golpe. Um golpe no peito, na garganta, nas memórias que eu passei anos tentando enterrar.
Eu segui em frente, Elise. Segui como achei que deveria. E em algumas noites, até acreditei que tinha conseguido. Mas eu nunca consegui. Nunca fui capaz de encontrar em outra pessoa o que encontrei em você.
E eu odeio isso.
Odeio que eu precise de você dessa forma. Odeio que cada vez que eu olho pra minha vida, o que está faltando é você. Odeio que eu sinta sua falta com tudo que há em mim.
Mas eu cansei. Cansei de fingir que somos apenas duas mulheres que se respeitam, que se admiram, que sabem uma da outra melhor do que qualquer um. Cansei de fingir que não te amo.
Eu amo.
Eu te amo.
E, se você ainda puder me amar, venha para casa.
C.