
A história de uma princesa elemental
- James? – Reparando o distraído amigo sorrir ao encarar as vidraças, Remus compreendia a situação.
Durante as últimas horas, o pirata pode notar as trocas de olhares, acasos, acidentes e incidentes na inútil tentativa de capturar “certa atenção”. Infelizmente, o amigo era aquele que girava a cabeça quando a fofoca se aproximava e sempre cercado por pessoas amáveis, não era nada bom com segredos e cautela.
E, nos últimos dias...
Embora não soubesse a ordem das roupas utilizadas por si nas grandes festas, o príncipe opinava sobre panos de cama. Como linho era o mais adequado, sem considerar que eles estavam em um navio de contrabando. Quando recebeu as uvas na última noite pro preparo de vinho, sorriu considerando uma piada. Por um momento, parecia surreal a ideia que alimentos nem sempre fossem alimentos.
Alguém os preparava? Obviamente.
Mas não era por magia?
E Severus...
Observando os ombros distantes e os cabelos lhe servindo como cortina para ocultar o tristonho rosto, ele se esquivava. Silencioso como uma adaga empunhada por um traidor, ele compreendia o seu lugar no mundo.
Concordava.
Não questionava.
Aceitava.
Assanhando os próprios cabelos, Remus sentia muita pena dos dois.
Ainda mais quando ponderava até onde o príncipe poderia mergulhar por uma pessoa já afogada cujas pedras prendiam o corpo moribundo ao fundo do mar.
Ainda mais quando as correntes em torno dos punhos de Severus iam muito além das visíveis.
Sim. Ele não concordava. Pessoas não deveriam ser escravizadas. Jaulas, correntes? Nem animais poderiam ser submetidos a tamanha crueldade. E, inúmeras vezes, eles tinham discutidos à exaustão. Mas nada mudava a mente de Peter. Severus lhe pertencia e somente a morte iria separá-los.
E agora?
Julgando pelos sorrisos e rostos avermelhados, aquele navio abrigava dois apaixonados.
Por isto, caso ele só permanecesse observando as cartas rasgadas, queimadas e desiguais sendo arremessadas à mesa... Não seria abominável deixar duas pessoas arriscarem a vida num jogo perdido? Especialmente, quando uma destas pessoas era o seu velho e querido amigo.
Escorando-se contra a mesa, cruzava os braços ao provocar:
- Vão achar que está louco se continuar sorrindo assim?
- Moony? – Virando-se atrapalhado, James buscava algo pelos bolsos, pela roupa. Nada encontrando, coçou a nuca, sem graça. – Eu só vim pegar uma ferramenta para alguma coisa que...
- Você não me deve explicações, James. Sou seu amigo.
Baixando o rosto, James suspirava.
Aspirando o perfume impregnado ao cômodo, recordava a fria temperatura nas hesitantes mãos, saturadas em medo.
Pelos céus, quanto tempo faltaria até o maldito porto?
Às vezes, parecia que o navio não andava e os ventos os congelavam naquele pesadelo.
- E, por ser seu amigo, acho que posso ter encontrado o seu “ouriço-do-mar”.
Franzindo o cenho ao encarar os olhos esverdeados, James não disfarçava a indignação.
“Como Remus havia descoberto? ”.
“Ele se empenhava tanto em mantê-los em segredo”
Afastando-se das multidões, eles nem conversavam quando Severus o ignorava.
"Mas, afinal, poderia confiar no amigo?"
Embora Sirius afirmasse não ter escravos, o garoto estava ali, tratado como uma mercadoria.
Forçando um músculo do rosto para fingir não entender, Remus adiantou a explicação:
- Você perguntou se ele queria ouvir uma história antes de dormir.
- Ele está machucado. – Percebendo o olhar se tornar mais preocupado. - E minha mãe me contava histórias para relaxar depois de dias ruins.
- Ele é um escravo.
- Uma pessoa.
- James, escute. Por ser seu amigo, eu desejo a sua felicidade. Mas, o Ranhoso...
- Não o chame assim. – O pedido firme. Notando o mal humor, corrigiu. – Por favor, Remus. Não o chame assim.
- O príncipe Severus... – Percebendo o amigo sorrir bobo, orgulhoso e sonhador, ratificou. – James, Severus é um príncipe de verdade.
- Um príncipe?
- Ou era. Deve ser. – Levando a mão ao queixo, o rapaz refletia. – Estas coisas são sangue. – Mediante a surpresa na expressão. – Não estranhou o quanto ele é inteligente para a leitura e matemática? Inclusive, alquimia?
- Reparei. – Incialmente pensativo, o sorriso se tornava mais largo. Aquilo seria a solução para todos os problemas até ali. Animado, James continuava. - Então, se ele é um príncipe e...
- Você só vai afastá-lo se questionar qualquer coisa sobre aquela época. Que, inclusive, eu não deveria estar falando. – Percebendo a confusão reivindicar o rosto de óculos. – Cansada das normas do palácio, a princesa Eileen se apaixonou por um plebeu. Por mais que os seus pais fossem contra a união, eles só fugiram.
- Não os julgo. – James acrescentou suspeito.
- Nisto, ela foi rejeitada pela família por alguns anos. Eles moravam em uma casa simples, longe do reinado. Os boatos dizem que ela os mantinham com as poucas posses que lhe restaram: joias, vestidos... Isto porque, Tobias acreditava que todos os seus problemas estavam resolvidos por se casar com uma nobre e ela... – ... - Ela temia preocupá-lo, por isto, fazia o possível e impossível para que ele não a deixasse.
- Talvez, eles estivessem feliz.
- Viver com medo não viver feliz, James. – Remus corrigiu, percebendo o franzir de cenho concordar, continuava. – Contudo, acredito que Severus fosse feliz. Tinha bosques pra fugir das constantes brigas dos pais e o céu para lhe fazer companhia. – Rindo sem humor, o rapaz continuava. – Mas joias e vestidos não duram pra sempre. Com isto, a mulher levou a criança pra apresentá-lo como herdeiro num pedido de desculpa. Inicialmente, o rei e a rainha não aprovaram a ideia. Contudo, conhecendo Severus...
- Imagina aquele rosto inocente com olhos grande e receosos...
- James! Eles precisavam passar a dádiva da fumaça e, naquela altura, já não existiam outros filhos ou herdeiros... E esta é uma dádiva transmitida somente entre homens.
- A dádiva da fumaça?
-Sim.
– Escutei algo sobre eles. - Encostando o corpo num barril, James recordava. – Da linhagem extinta pelo assassinato...
- Sim. – Melancólico, Remus prosseguia. – Infelizmente, a aproximação foi vista como uma grande oportunidade pelo pai de Severus. Como esperado, ele fez a cabeça da princesa para que assassinasse o rei e a rainha. – Dando de ombros como se não ligasse, repetia o planejado. – “Por que esperar tantos anos quando o garoto é o herdeiro direto? ”. Dinheiro e poder, quem não desejaria? – Baixando os olhos, - Pelo pouco que me contaram, o sangue correu durante o aniversário de nove anos de Severus. Quando eles foram envenenados junto ao pôr-do-sol. A princesa sorria já consumida pela loucura. Apanhando a coroa do chão para colocar sobre os cabelos do filho, ele correu. Correu chorando. Amaldiçoando tudo que ficava para trás. Não sei. Deveria gostar dos avós.
- E, por isto, o sequestraram? Ainda deve existir alguém para...
- Não. Sem um herdeiro para reivindicar a coroa, o castelo foi saqueado. Talvez, a indignação possa ter se alastrado como praga pelo coração do vilarejo. – Baixando o rosto, Remus mordia os lábios. – Eu não sei. O que sei é que os pais conseguiram pegar o garoto e, por um tempo, viveram fugindo. Sem dinheiro, o pai de Severus se entregou ao álcool e terminou por vendê-lo quando já não tinha nada.
- Ele vendeu o próprio filho?
- Sim.
- Se eu encontrar este maldito... – James praguejava.
- Como espera que o Severus reaja se você matar o pai dele?
- Mas ele vendeu o próprio filho.
- Se ele está aqui até hoje, optando pela escravidão a aceitar a Coroa.
Engolindo a raiva, James baixou o olhar.
"Quem em sã consciência... ?".
A própria saliva amargava.
Ele não tinha direito de sentir aquele ódio, ainda assim...
Cuidadoso, Remus continuava:
- Mas, sabe, a vida de Severus não era tão ruim até recentemente. Seus antigos tutores, tecnicamente, terminaram o salvando da prostituição, do tráfico de órgãos. Investiram em sua educação e, até mantém a princesa Eillen num hospital psiquiátrico. Eles aguardam que ela possa melhorar e abençoe o mundo com um novo herdeiro. – Caminhando até a janela, a tristeza lhe pesava o olhar ao notar a escura lama tonalizando o céu. – Acho que deve ser por isto que, nos últimos quinze anos, a fumaça anda provocando tanto caos, escurecendo a terra e destruindo navios. As coroas Elementais precisam de suas realezas para que o nosso mundo permaneça funcionando. – Voltando a fitar o amigo, pedia. – Por isto, volte para casa.
- Para o castelo?
- Para onde mais?
- Mesmo quando o bem do mundo, custa meu coração?
- O que é um coração em relação há milhões? – Percebendo o amigo revirar os olhos entediado, insistia. – James, a fumaça está desertando vilarejos. Ainda assim, as pessoas conseguem correr, escapar. Mas, e o fogo?
- Eu só tenho uma única vida, Remus. Não me parece justo.
- Justo? – Indignando-se, Remus respirava para não perder a paciência. – Você quer falar de justiça, James? Você nasceu com um único propósito enquanto muitos nascem sem ter o que comer, escondendo-se em buracos para sobreviver. Por favor, uma terra sem dono, é uma terra entregue ao caos.
- Você não entende...
- Eu não entendo? Você o chamou de ouriço-do-mar, por quê? Já se machucou com algum de seus espinhos? – Percebendo-o pensativo, amenizou. – James, por favor, Severus não é... – Umedecendo os lábios enquanto escolhia as melhores palavras, continuava. – Além de escravo, aposto que aquele garoto está amaldiçoado. Tudo que ele toca, destrói.
- Não é verdade.
- Como não? O garoto destruiu a própria família, destruiu o reinado, destruiu até a vida dos antigos tutores e...
- QUE DROGA, REMUS! – Possesso, James explodia entredentes. – Nada foi escolha do Severus.
- Mas ele estava lá. E desde que chegou aqui, não conseguimos UMA ÚNICA ESTRELA. Sirius almeja arremessá-lo ao mar.
- Ele não ouse.
- Mas este garoto é a própria personificação da desgraça. Ele vai destruir a sua vida...
- POR QUE VOCÊ SÓ NÃO PODE TORCER PRA DAR CERTO? – James interrompeu enfurecido. – Que droga!
- Eu torceria se existisse a mínima chance deste navio não naufragar. – Refletindo sobre a própria frase, corrigia angustiado. – Quer dizer, eu quero que salve a sua vida, James. - ...- Enquanto, ainda existe uma chance. Se o reino perder você...
- É claro e, por isto, devo seguir a minha vida como a droga de um tijolo sustentando um legado.
- Um legado de séculos. – Percebendo o desdém na expressão alheia, Remus se estressava. – Você não pode destruir tudo por causa de uma aventura de duas semanas.
- Duas semanas... – James desdenhou, num muxoxo.
O que Remus poderia saber?
Por que ele deveria só virar as costas para a única pessoa que o visitava enquanto ele estava abandonado naquele calabouço?
Por que ele tinha que desistir de Severus por causa de umas mortes ou péssimas escolhas de outras pessoas?
E daí se fosse duas semanas?
Dois meses?
Dois anos?
Aquele tempo pertencia única e exclusivamente a sua vida e, por isto, ele deveria decidir como gastá-lo.
– É sério, James. – O loiro prosseguia quase num clamor. - Não entregue o seu reinado.
- Eu entendi.
- Escute-me só desta vez.
- Ok. – Assentindo com um leve sarcasmo, o príncipe garantia. – Não sabe o quanto estou ansioso por este maldito porto.