
— KOGA-SAN!
A exagerada força que foi utilizada para abrir a porta da sala de aula num estrondo fez Mitsuki e o restante dos alunos pularem assustados de suas cadeiras. A garota culpada da movimentação repentina não deu a mínima e correu para o próprio assento e enfiou um dos fones no ouvido de Mitsuki.
— Você precisa ouvir isso! Tocou no aleatório enquanto eu vinha para cá e é simplesmente incrível! — Os olhinhos de Aya brilharam e um instinto amoroso fez a amiga querer apertar as bochechas dela.
— Hm!? C-certo, dê play — Mitsuki respondeu e a outra garota obedeceu.
Era uma gravação ao vivo e como a roqueira bem lembrava, músicas tocadas ao vivo sempre seriam bem mais mágicas que as gravadas no estúdio. De fato, Oosawa-san não estava errada, a voz feminina cantarolante que iniciou a música e o dueto que se seguiu foi incrível, as duas vozes complementando-se no que parecia uma canção de amor. Mas como Mitsuki sabia se tratar de uma canção de amor se não entendia ao menos a letra? Bem, você simplesmente sabe quando é uma canção de amor!
— Não é ótima? E olha que nem começou direito ainda.
— Não reconheço a língua, não é inglês. Parece mais difícil que inglês, na verdade. — Mitsuki coçou o queixo pensativa. — Espera! O ritmo, a fonética, a sonoridade… isso é MPB, Oosawa-san?
Aya sobressaltou da cadeira ao mesmo tempo surpresa e animada.
— MPB? — ela questionou.
— MPB! Música Popular Brasileira. Acho que as músicas que o tio costuma ouvir não são exatamente MPB, mas são brasileiras também.
— Seu tio escuta música brasileira, Koga-san? — Seus olhos brilharam novamente e ela bateu palmas entusiasmada com a possibilidade de aprender mais sobre a música que acabara de ouvir.
— Ah, bem… ele me contou que na adolescência escutava bastante rock brasileiro, sabe? Escuta até hoje, às vezes. — Uma lâmpada invisível pareceu acender em cima da cabeça de Mitsuki. — A propósito, tem uma música que me lembra você!
As bochechas de Aya assumiram o mesmo tom rosado de seu cabelo.
— J-jura? Qual? — Ela está definitivamente envergonhada.
Mitsuki tomou o celular da amiga para digitar algo na barra de pesquisa do Spotify, Aya não sabe se é o título de uma música ou o nome de uma banda. Desta vez o som de guitarra e bateria tomaram conta do ouvido das duas garotas, uma voz masculina começou a cantar numa língua estrangeira semelhante à da música anterior, com certeza era português. Oosawa tamborilou as unhas na mesa ao ritmo do rock.
— Complicada e perfeitinha, você me apareceu — a garota de fios negros começou a cantar na mesma língua. Aya nem sabia que Mitsuki sabia português! — Era tudo que eu queria, estrela da sorte-
— Ei! Se for para cantar algo sobre mim, que seja numa língua que eu conheça! — Um beicinho se formou nos lábios brilhantes de gloss.
Como Oosawa-san conseguia ser tão adorável?
— Meio que essa é a intenção. — Mitsuki coçou a nuca desconcertada.
A gyaru se emburrou rapidamente e tirou o fone do ouvido de Koga, murmurando um “isso não vai ficar assim”. A aula se passou como de costume e após meia-hora, Aya nem se lembrava o motivo de ter ficado emburrada com Mitsuki, resolvendo deixar para lá e continuar a interagir com sua paixão de escola e principalmente de música.
[...]
— MPB, hein!? — a roqueira questionou-se no vazio do quarto, preenchido apenas pelo som da música ecoando do aparelho de som. — Me pergunto por que Oosawa-san de repente pareceu tão interessada em saber a letra desta música.
— E precisa ter um motivo plausível para se interessar no significado de algo? — Joe aproveitou a porta aberta para aparecer de súbito.
Mitsuki quase caiu da cadeira.
— Tio! Ouvir a conversa dos outros é feio, sabia?
— “Conversa dos outros”? A conversa entre você e a parede? — Joe riu e bagunçou o cabelo da sobrinha. — Você é tão fofa.
O homem se sentou na beirada da cama da sobrinha e tentou adivinhar mentalmente o que ela estava fazendo, parecia concentrada, um lápis na boca e uma expressão confusa enquanto encarava a tela do computador.
— O que está fazendo? — ele perguntou.
— Traduzindo a letra de uma música brasileira para Oosawa-san, achei uma tradução inglesa e agora estou passando para o japonês. — Ela coçou os olhos, cansada.
A dedicação da sobrinha à amizade das duas era algo que Joe admirava bastante, feliz pela garota ter criado um vínculo afetivo tão especial no ensino médio. Aya parecia amar demasiado Mitsuki e que bom saber que isso era recíproco, muito longe de se considerar uma relação unilateral. Joe sabe o que é ter amizades passageiras, daquelas que só funcionam durante o colegial, mas a delas não parecia nem de longe ser uma dessas.
— Acho que terminei. — Mitsuki bocejou. — Quer ouvir?
Joe bateu palmas animado e afirmou frenético com a cabeça.
Ela pegou o violão e começou a tocar os primeiros acordes.
[...]
— Até amanhã! — Aya se despede de Mao e Chizuru.
A gyaru seguiu seu caminho para fora dos limites da escola, estava um lindo fim de tarde, o céu alaranjado transmitia conforto e calmaria. Ela não havia encontrado Mitsuki na hora da saída, então não se despediu. Se despedir dela era a pior parte do dia, Aya passaria o dia inteiro com sua estrela do rock favorita, se pudesse, é claro.
Mas uma mão apertou seu pulso antes que ela fosse embora.
— Oosawa-san! Espere por mim. — Mitsuki ofegou.
Os olhos de Oosawa brilharam, ali estava ela.
Mitsuki estava com um violão nas costas e tinha corrido até ali aguentando o peso dele, por isso parecia exausta.
— Venha comigo. — Ela puxou a mão de Aya.
A garota de fios rosados não ousou questionar, ela seguiria Koga-san até às trevas se fosse preciso.
Mitsuki não largou a mão da amiga em nenhum momento, o que a deixou corada, pareciam um casal. Um garotinho apontou para as duas no meio do caminho e disse alto para a mãe: “Olha mamãe, namoradas”, a mulher riu e mandou a criança ser discreta. Aya quis enfiar a cabeça no chão igual um avestruz.
— Chegamos!
Estavam no parque da cidade. Mitsuki ainda não havia largado a mão de Aya, pelo contrário, puxou-a para debaixo de uma grande cerejeira. Ambas só se separaram quando Mitsuki teve de tirar o violão nas costas e preparar-se para tocá-lo.
— O que você pretende, Koga-san? — Aya sentou-se na grama do lado dela.
— Você queria saber a letra daquela música brasileira, certo?
Aya concordou.
— Eu pensei em escrever uma versão japonesa, mas iria tirar a magia da coisa. — Ela posicionou o violão debaixo do braço direito. — Então resolvi aprender em português mesmo, mas traduzi a letra para que você saiba o que eu estou cantando, Oosawa-san.
Uma folha foi entregue à Aya.
— Koga-san… — Ela parecia prestes a chorar de emoção. — Não…
— Só acompanha, acho que vai gostar — Mitsuki interrompeu e começou a dedilhar as cordas do violão.
Em breve a ambulância chegaria para buscar Oosawa. Koga não pertencia a este mundo, como ela era real? Como alguém faria aquilo por outra pessoa, apenas por que sim? Ela perdeu seu tempo para fazer algo tão especial que Aya nem conseguia acreditar, ninguém nunca tinha gostado dela a esse ponto.
— Certo, vamos lá. — A roqueira respirou fundo.
Os primeiros acordes começaram, Mitsuki ficava tão linda tocando e fazendo aquilo em público somente por causa de Aya mostrava que ela gostava da amiga até demais.
Se um dia eu te encontrar
Do jeito que sonhei
Quem sabe ser seu par perfeito
E te amar do jeito que eu imaginei
Então era assim que a música começava? Aya fixou os olhos na folha de papel, acompanhando o português de Mitsuki pela tradução japonesa.
Ao virar a esquina
Atrás de uma cortina
Me perder
No escuro com você
Debaixo da cerejeira, o pôr do sol no fundo e os fios de cabelo caindo sobre o rosto dela, Mitsuki era tão linda, tão, tão, tão linda. Tão linda quanto a letra ou a melodia da música. Linda era pouco, ela era surreal, inalcançável, mas ali estava ela cantando uma música apenas para Aya.
Fogo na fogueira
O seu beijo
E o desejo em seu olhar
As flores no altar
Os olhares delas se esbarraram e os olhares falam, confessam coisas nunca ditas em voz alta. O que elas confessaram ali, naquele exato segundo, dicionário nenhum no mundo conseguiria definir.
Véu e grinalda, lua de mel
Chuva de arroz e tudo depois
Dama de honra pega o buquê
Ninguém mais feliz que eu e você
— N-ninguém m-mais feliz que e-eu e… — Aya tentou repetir em português, visivelmente nervosa.
— Ninguém mais feliz que eu e você — Mitsuki continuou a cantar, sorrindo.
— Ninguém mais feliz que eu e você — Aya repetiu sem se importar com a pronúncia errada.
— Ninguém mais feliz que eu e você. — Mitsuki sorriu mais ainda e o sorriso refletiu no rosto da outra garota.
Koga preparou-se para cantar a última estrofe da música.
Mas se um dia eu te encontrar
Do jeito que sonhei
Quem sabe ser seu par perfeito
E te amar do jeito que eu imaginei
O que é o amor, senão os raios solares refletidos nas órbitas de Oosawa Aya, que diziam mais do que qualquer palavra? Mitsuki pensava que era uma pena, no entanto, a amiga não reconhecer que aquilo era pouco: Oosawa merecia mais do que músicas tocadas ou traduzidas — ela merecia canções e álbuns escritos para ela. Se Mitsuki fosse escritora, então ela escreveria peças teatrais para Aya. Se Mitsuki fosse escultora, então ela faria as mais lindas esculturas do rosto de Aya. Se Mitsuki fosse romancista, escreveria uma coleção de livros, cada um com centenas de páginas dedicadas a expor o quanto ela amava Aya.
Sim, ela amava, já não era nenhum segredo para ambas.
E Aya a amava de volta.
Quando o último verso foi cantado, várias pétalas de cerejeira caíram sobre as duas garotas, tal qual uma chuva de arroz jogada em noivos.
— Chuva de arroz e tudo depois. — Aya riu.
— Dama de honra pega o buquê. — Mitsuki entrou na brincadeira.
Com o término da canção, perceberam que estavam perto demais, mas não ousaram se afastar. Nenhuma das duas queria quebrar o contato visual, sustentado por sorrisos calorosos que se refletiam no rosto uma da outra. O sorriso de Aya agradecia à Mitsuki, que, por sua vez, retribuía com um olhar que dizia: “Eu faria muito mais por você”.
Aya aproximou-se mais ainda para tirar uma pétala do canto do lábio de Mitsuki. “Perto demais”, ela pensou. Mas quando ia se afastar, Mitsuki segurou seu rosto e a impediu.
— Ninguém mais feliz que eu e você, Oosawa-san.
E então a beijou.