
Era uma noite fria em Hogwarts. Neve descia gentilmente pelo céu, acumulando nas beiradas das grandes janelas e esfumaçando o vidro, tornando difícil de ver o lado de fora. Regulus gostava do gelado. Suas costas estavam contra a parede, as pernas esticadas enquanto um livro repousava em seu colo. Não o lia, entretanto, encarava as estantes acima. Suas vestes estavam alinhadas, como usual. A gravata apertada em um nó sufocante, e o suéter por cima de sua camisa. A capa também estava fechada e o garoto quase se enrolara nela.
Tudo em Regulus naquele dia era vago. Havia uma desordem deslocada em sua comum quietude, detalhes minúsculos apenas percebidos por quem conhecia seus pormenores. Seus fios caiam rebeldes pela face bem desenhada, grandes demais para que não cobrissem um pouco seus olhos. Olheiras fundas pintavam embaixo dos olhos e uma palidez além do comum lhe manchava. Mas, o pior de tudo talvez fosse a falta de percepção dos seus ao redores. Era como se estivesse em um eterno devaneio, encarando cantos brancos enquanto o mundo continuava sem sua ciência.
Piscou devagar assim que seus olhos arderam, mas quase não se moveu. Sua estática perdurou até um vulto alcançar sua visão. Ele apertou as orbes, espremendo entre as pálpebras, retomando o controle de seus pensamentos e assimilou o que havia a sua frente. Vestes um pouco amassadas e despojadas, uma gravata afrouxada. Mãos robustas e firmes, adornadas com anéis sutis, mas caros. Fios curtos mas bagunçados, uma feição bem marcada e olhos que lhe perfuravam o peito, arrancando as batidas de seu coração.
As cores esverdeadas de ambas as vestes eram a única semelhança entre ambos. Um sorriso se curvou nos lábios alheios e Regulus deixou um pequeno, discreto e suave sinal de deleite transparecer por sua face. Barty o olhava por cima, e se aproximou, cobrindo a estante que antes Black analisava. O rapaz voltou logo a sua carranca, mas sem piscar, fixado com suas orbes ao outro.
—— Evan está te procurando por esse castelo inteiro e você está aqui, se escondendo nesses livros —— Crouch estalou a língua no céu da boca. Se abaixou com cuidado, um joelho tocando o chão amadeirado. Seu corpo se inclinou para o do semelhante.
—— Não é minha culpa se não consigo alguns minutos de silêncio ao redor de vocês —— respondeu, empurrando do colo o livro e apoiando os dedos de suas mãos em cima das coxas, cruzados entre si. Os olhos de Barty desceram e subiram por Regulus e ele quase prendeu o ar —— o que há com você?
Ele riu, um pouco em desdém. Dali, tão próximo, os olhos escuros de Crouch pareciam ainda mais penetrantes, como um poço sem fundo, que Regulus havia caído vez após vez. Não era desconfortável aquilo, o silêncio e o fixo olhar, as respirações se misturando ao ar frio, pelo contrário, era comum. Black comumente cobria a boca de Barty, o calando depois de o ouvir divagar insanamente sobre algo e lhe pedia a quietude de um momento, e ele lhe dava, como dava tudo que Regulus pedia.
Ainda, nem aquilo podia o dar nos últimos dias. Seu pomo de Adão moveu com expressão ao engolir seco os pensamentos e desviar de Crouch. Sequer lhe foi dado tempo, já que a mão do rapaz agarrou-lhe o queixo e puxou o rosto, fixado ao que estava antes. Foi bruto e ríspido, controlador e mandou arrepios por Regulus, que sequer reclamou. Era assim, também. Barty, ao mesmo tempo que dava tudo, tomava tudo ao seu redor. Sua presença tomava espaço, engolia e penetrava, e Regulus gostava de se encolher no meio disso, num jogo mental próprio onde aquilo era o que existia. Ele cedia mais do que aparentava, e apenas Crouch entendia cada vez que algo lhe era dado. E ele saboreava, cada uma dessas coisas.
—— Seu mau humor seria melhor do que esse silêncio que vem nos dando. Está andando por aí feito um fantasma —— Barty murmurou, acariciando com cuidado o outro —— se está planejando se tornar um, talvez devesse nos avisar. Podemos passar a eternidade assombrando esse castelo —— ele riu.
Regulus soltou um grunhido, que foi quase um riso. Negou com a cabeça e levantou os dedos, enroscando-os nas vestes de Barty e o puxando com força para que caísse ao seu lado. Houveram protestos, um xingamento baixo quando suas costas colidiram rudemente contra a parede, mas Regulus apenas manteve seu olhar clínico sob ele enquanto deixava que se ajeitasse.
—— Não conversei com Evan desde que brigamos —— ele mexeu a unha de um dedo contra o outro, mexendo devagar na pele de sua cutícula —— me espanta ele estar me procurando, e não estou disposto a discutir mais uma vez.
—— Ah, vocês dois já brigaram por menos! Você não tem ideia do que está acontecendo naquela cabeça. Está matando ele —— Barty se inclinou outra vez, piscando na direção dele —— o que há na sua?
Regulus riu, um pouco engasgado e revirou os olhos, porque não sabia por onde começar. Tudo, pensou o garoto, mas parecia uma explicação pequena demais. Ele encarou Crouch de volta, tentado a se encolher em seu conforto, mas apenas levantou com calma sua destra e tocou sua bochecha com o dedão, de cima para baixo. O rapaz franziu o cenho, intrigado com o gesto, mas aceitando a demonstração como alguém que ansiava por aquilo. Aquilo apenas partiu mais ainda o interior do Black.
—— Aqui não —— ele retraiu sua mão e se afastou ligeiramente. Regulus ajeitou a capa, junto do fecho e segurou no livro encourado, não antes de olhar outra vez ao que o olhava, sem piscar. A língua de Barty passou devagar pelo próprio lábio, uma mania insuportável do rapaz —— à noite. Não durma. Conversaremos em outro lugar.
Ele aceitou a resposta, se levantando. Regulus esperou alguns segundos, escaneando-o e apenas balançou a cabeça, deixando um sorriso sutil adornar sua a face. Aquilo poderia ser tão fácil se fossem apenas eles.
—— E Evan? —— Barty arqueou a sobrancelha, tomando o lado do Black.
Ele negou e endureceu sua expressão, enrijecendo o corpo.
Não posso, ele pensou.
Não posso desapontar os dois numa mesma noite.
Regulus passou os dedos pelo ombro do amigo e saiu, a passos firmes e distantes.
Regulus encontrava prazer em observar a lua em seu zênite. Imponente, ofuscava as outras estrelas que rodeava, exercendo uma exemplar dominância. Era possível ver o seu reflexo no grande lago, distorcendo um pouco sua forma arredondada e a dissolvendo pela água. Seu brilho prata era belo. Sabia que não era uma estrela, e que a mera distância causava aquela impressão, mas a ilusão era confortável e satisfatória. Assim como aquela noite.
Barty estava ao seu lado, ambos os corpos esparramados pela grama. Um feitiço simples distorcia a imagem de ambos, para passarem desapercebidos por Filch ou sua gata, o Black havia se certificado. Estava ali a um tempo, quieto e em silêncio, apenas tateando a ponta dos dedos de Crouch, que fazia um péssimo trabalho em falar baixo. Não o censurou, entretanto. Sua voz lhe guiava e o garoto concordava, realmente acompanhando cada coisa que ele dizia.
—— E você teria visto isso, se estivesse dormindo no nosso quarto pela última semana —— Crouch murmurou, puxando a ponta dos dígitos do Black. Regulus deu de ombros, mas empurrou sua mão na dele, esfregando a pontinha dos dedos pela palma. Me desculpe.
—— Eu não consigo —— falou, e pareceu que fora a primeira vez naquela noite. Barty o olhou mais atento e virou o corpo, sua destra puxando de vez a mão do menor para que seu equilíbrio se perdesse. Regulus caiu debruçado contra ele, ambos os braços em cima do peito —— não consigo nesses últimos dias.
—— Suas poções, onde estão? Se continuar com isso, vai me obrigar a misturar com seu jantar —— Barty disse, sorrindo. Sua língua passou pelos próprios lábios, devagar. Regulus revirou os olhos, relaxando o corpo. Se esparramou por cima dele, metade de seu corpo cobrindo o peito. Seus dedos seguravam no tecido de sua camiseta e ele ensaiou uma resposta, que morreu em sua garganta —— Regulus?
Ele negou. As poções, pensou, haviam acabado. Foi no quinto ano, quando Regulus se recusava a fechar os olhos, que Evan e Barty apareceram com uma poção. Num primeiro gole, regulus apagou contra sua cama, ou talvez tenha sido a de Evan, e dormiu uma noite toda, sem um sequer sonho. Mas um gole virou uma garrafa e uma garrafa apenas o deixava atordoado. E Regulus não podia. Alerta, vigilante, porque a espreita estava algo, estava vindo e ele não podia. . .
Algo pressionou seu rosto e Barty estava ali, e as preocupações desapareceram, porque ele ocupou todo o espaço, tomando, invadindo, conquistando o que já era dele. Regulus piscou, ainda disperso e confuso, mas sentiu ondas de seus sentimentos colidirem, amolecendo-o. De repente, era impossível fazer qualquer coisa. Ele encarou o olhar insano de Crouch, sua língua devagar tocando o próprio lábio, mas o cenho franzido, o gesto sutil de encostar o rosto ao dele, o pedido que lhe contasse o porquê fugia de seu olhar, de seu toque.
Ele estava em todo lugar e Regulus sentou contra sua perna, quieto. O que ele queria, o que sentia, tudo era tão ínfimo, ele percebeu. Por que apenas não posso ter aquilo e estar satisfeito? Por que o mundo continuava a girar, e exigir e tomar, enquanto ele apenas queria entregar para ele, para Barty, para Evan, para os beijos, suspiros, toques e abraços dos dormitórios. Mas ele podia espernear e exigir o quanto fosse, porque seu mundo continuaria cinza e sua vida breve. Por isso, encontrou sua voz e puxou Barty para si.
—— Me conte outra vez. Sobre depois —— Regulus murmurou, fechando os olhos.
Barty não, contudo, já que ele ainda sentia o olhar penetrante do rapaz. Seus dedos estavam abraçando seu corpo, subindo e acariciando seus fios, estavam por todo o lugar e não era o bastante. Nunca era.
—— Um apartamento grande. Teremos dinheiro, com sua mãezinha morta, o moribundo do meu pai em uma cova e… bom, Evan pode arranjar o dinheiro —— Barty começou, tateando a nuca alheia agora. Agarrou ali, possessivo e firme, e certo, e encaixado, e pertencente de uma forma que Regulus sequer podia colocar em letras ou formas —— Paris. Você vai ensinar Evan, porque é melhor do que eu. Seremos nós três. Eu vou vestir uma boina, como em uma daquelas fotos que vimos, e você, vai estar… não consigo escolher a imagem preferida. Mas você, Evan e você embaixo de….
E Barty falou, e Regulus sorriu, imaginando e se agarrando na possibilidade, no futuro impossível que ele supunha que existiria. Barty era doce demais para um homem dito como louco, com mãos firmes e beijos doces, e tudo que havia de insano era, na verdade, o que Regulus queria.
—— … e ninguém vai ouvir mais da gente. Talvez Pandora, porque ela mataria eu e Rosier se sumíssemos com você. Mas você será nosso, em Paris. Depois da guerra. Depois de vencermos.
Ele o apertou, porque não existiria nós, nem vitória, porque mesmo com a marca ardendo em seu antebraço e ainda que tivesse aceitado o destino impossível de se fugir, ele havia encontrado uma forma de se se redimir, de mudar, de parar. Mas não haveria amanhã. Não haveria Paris. Regulus entreabriu os lábios, mas apenas soltou um último riso, após saborear as possibilidades e guardou a sensação imaginária dentro do peito. Não haverá futuro, porque amanhã eu irei trair vocês, Regulus queria dizer.
—— Parece bom —— disse, sussurrando —— um futuro bom. Je te donnerais un château. J'en ferais des princes.
O sorriso de Barty aumentou com o francês escapando da boca do Black. Regulus aproximou o rosto de seu ouvido, beijando a bochecha, depois seu lóbulo e encostando a boca suavemente contra o outro:
—— Mes princes, à genoux devant moi.
Barty estremeceu e Regulus sorriu, presunçoso, com peito aquecido. Ele empurrou Regulus e tomou o lugar acima do rapaz, dígitos agarrando as mãos alheias e peito contra peito, rosto contra rosto. Black não encontrou o que esperava, no entanto. O sorriso de Crouch havia esmorecido, desaparecido em uma carranca confusa e seu olhar fosco e contorcido, enquanto aproximava seu rosto do dele.
—— Você sabe que eu faria qualquer coisa, não sabe? —— sua voz rouca e baixa, e Regulus podia jurar que seu coração se contorceu, quase explodindo em seu peito. Naquele momento, não importava o quão ruim Barty fosse, porque ele o segurava, ele impedia que tudo desabasse —— o que há, Regulus?
Mas ele não encontrou a voz para falar. Regulus apenas o olhou, olhos marejados e um pequeno suspiro se misturou ao ar quente. Queria que Barty, de alguma forma, descobrisse. Apenas tome, arranque a verdade de mim, tome conta de tudo, me impeça, grite, apenas perceba. Era tudo que ele pensava. Mas Barty apenas o olhou, desesperançoso.
—— Eu sei que está com medo, mas eu posso cuidar disso. Eu e Evan. Nós já lhe dissemos, tantas vezes. Apenas me diga o que você quer que eu faça —— sua voz continha uma emoção nova, que não parecia pertencer na voz do rapaz: desespero —— eu posso lhe dar qualquer coisa.
Menos isso, pensou Regulus, porque amanhã eu vou trair vocês. Amanhã não vai existir mais.
Tome.
Me impeça.
Me segure.
Me leve embora.
Mas tudo que Crouch fez foi aceitar o silêncio. Regulus se inclinou e tocou seus dedos gélidos contra a face bem marcada de Barty e desceu devagar aos seus lábios. Sua boca tocou a dele, lento e sutil, estranho e distante. Barty capturou seu inferior com os dentes e Regulus se inclinou, seus peitorais tocando e respirações trocadas. Talvez não importasse a pessoa ruim que ele era, porque Regulus não era bom. Ele apenas faria algo bom, para variar. Uma última chance de se redimir. Ele torcia para que Barty a encontrasse, mas achava pouco provável. Ele acreditava naquilo: na marca, em Voldemort, em sangue puro e bruxos contra trouxas. E Regulus poderia viver com isso, ele pensou, apenas se Barty soltasse o osso da guerra. Mas ele nunca o faria, então ele o beijou devagar e lento até seus lábios adormecerem e arderem, até ser demais para si. Até ele chorar, baixo e vergonhoso, e Barty beijar cada uma das lágrimas, pedindo outra vez, urgindo por algo que concertasse o que estava quebrado em Regulus.
Ele nunca deu a resposta.
Ele nunca mais o viu depois daquela noite.