
Caixa de Pandora
Hyacinth já suspeitava que sua proposta causaria um caos completo ao ser apresentada ao Wizengamot.
Afinal, não era todo dia que alguém ousava questionar uma lei tão antiga e sagrada quanto o Estatuto Internacional do Sigilo, especialmente com ideias tão radicais quanto as suas.
Ela, porém, não se intimidou.
Na semana que antecedeu a sessão, ela preparou-se como se estivesse prestes a entrar em uma batalha. Revisou cada ponto da proposta, ensaiou sua argumentação e até praticou feitiços de escudo — só por precaução. Sempre poderia haver algum espertinho querendo pegá-la de surpresa.
O mundo bruxo precisava mudar, adaptar-se aos novos tempos, e ela estava disposta a ser a faísca que iniciaria essa transformação. Mesmo que isso significasse enfrentar a fúria do Wizengamot e todos os bruxos que ainda se apegavam às regras do passado.
— Isso é um ultraje! — gritou um bruxo dos assentos dos Lordes mais tradicionalistas, o rosto contorcido em desgosto. — Um absurdo! Integração com trouxas? Ela deveria estar no St. Mungus e não no Wizengamot.
— Ela está completamente certa, seu velho caduco! — bradou um jovem bruxo dos assentos liberais, de cabelos desgrenhados e rosto animado, acenando entusiasmado para Hyacinth. — Abrir o mundo mágico para os trouxas é o futuro. Eu voto a favor!
— Seu homem tolo! A votação nem começou ainda! — repreendeu uma bruxa de aparência austera, sentada ao lado do jovem exaltado. — E pare de acenar para essa… essa radical!
O salão transformou-se em um pandemônio.
Bruxos gritavam uns com os outros, defendendo posições opostas com uma veemência que ameaçava virar agressão física. Alguns se levantaram, gesticulando e apontando dedos acusadores, enquanto outros se encolhiam em seus assentos, tentando se proteger da confusão.
Hyacinth estava no olho do furacão, se sentindo dividida entre a satisfação de ver suas ideias provocando um debate tão acalorado e a apreensão de que a situação saísse do controle.
— SILÊNCIO! — ordenou o Chefe Bruxo Travers, a voz grave e autoritária. — Vocês não estão no meio do Beco Diagonal, Meus Lordes. Comportem-se como adultos!
Ele respirou fundo, tentando controlar a própria irritação, enquanto lançava um olhar de soslaio para o Ministro Shacklebolt, que parecia igualmente exausto.
— Lady Black, peço desculpas pela conduta inapropriada de alguns membros desta assembleia. Por favor, prossiga com sua argumentação.
O salão gradualmente se acalmou, embora um burburinho de vozes descontentes ainda pairasse no ar, como um enxame de abelhas furiosas.
— De fato, Chefe Bruxo. Obrigada.
Hyacinth fez uma pausa, deixando o seu sarcasmo se perpetuar brevemente no silêncio.
— Se os membros desta honorável assembleia fossem mais perceptivos e menos dados a ataques histéricos, teriam notado que minha proposta não se trata de integração total e irrestrita com trouxas, nem de abrir o mundo mágico para essa população, como alguns parecem acreditar. — Ela deixou que suas palavras penetrassem na mente daqueles bruxos exaltados. — Trata-se, sim, de adaptarmos o Estatuto Internacional do Sigilo aos nossos costumes atuais e à realidade do século XXI. De reconhecermos que o mundo mudou e que nós, bruxos, não podemos permanecer imóveis no tempo, como temos feito desde o século XVII.
Um silêncio tenso instalou-se no salão, quebrado apenas pelo farfalhar de pergaminhos e o pigarrear ocasional de algum bruxo.
Hyacinth aproveitou a pausa para observar a plateia. Rostos marcados pela idade e pela tradição contraíram-se em expressões de desconfiança e desaprovação, enquanto outros, mais jovens e de semblantes mais abertos, pareciam apenas curiosos.
— A verdade é que o Estatuto do Sigilo, em sua forma atual, está ultrapassado. — continuou Hyacinth. — Ele foi criado em uma época de conflitos bárbaros, durante a Caça às Bruxas, quando a fogueira era a resposta para qualquer coisa que os trouxas não compreendiam. Um tempo em que o número de trouxas no planeta era baixo, e o número de bruxos ainda menor. O acesso ao conhecimento era limitado, e a tecnologia trouxa, praticamente inexistente. Hoje, vivemos em um mundo completamente diferente. Um mundo globalizado, hiperconectado, onde as fronteiras entre o mundo mágico e o mundo trouxa estão cada vez mais tênues. A cada dia que passa, a tecnologia trouxa se aproxima do que antes considerávamos exclusivamente mágico. Eles têm meios de comunicação instantânea, aparelhos que registram fotos e as compartilham em questão de minutos, câmeras espalhadas pelas cidades que captam cada movimento. O que acontece se esses aparelhos registram uma atividade mágica?
— Nós obliviamos eles, é claro. — um bruxo bufou, com um gesto desdenhoso. — Como sempre fizemos. Apagamos suas memórias, e tudo volta ao normal. Não é preciso mudar o Estatuto para isso.
— É mesmo, Lorde Fawley? E o que acontece se um trouxa publicar essa imagem na internet? Se você não sabe, esta é uma rede invisível que conecta todas as pessoas do mundo trouxa através de seus aparelhos. Uma teia invisível onde eles compartilham informações, notícias, imagens, pensamentos… tudo o que podem imaginar, em questão de segundos! É como se cada trouxa tivesse uma coruja particular, mas que entrega mensagens para milhões de pessoas ao mesmo tempo. Como você, Lorde Fawley, propõe que milhões de pessoas sejam obliviadas? Ou vamos ignorar o problema e fingir que ele não existe, como o Ministério da Magia Britânico sempre fez?
Hyacinth ficou em silêncio por alguns segundos, encarando o bruxo tradicionalista se remexer em seu assento, visivelmente desconfortável.
— É fácil empurrar o problema para debaixo do tapete, não é? É fácil esconder-se atrás de velhas tradições, de soluções ultrapassadas, e fingir que o mundo trouxa não existe. Mas, vejam só, Meus Lordes, abram bem os olhos e enxerguem a realidade: existem mais de seis bilhões de trouxas no mundo! Não há sequer cem mil bruxos em todo o planeta, e na Grã-Bretanha esse número é ainda menor, especialmente depois da Segunda Guerra Bruxa. Seis bilhões contra cem mil… Nós somos menos de 1% da população da terra e vocês ainda acreditam que podemos nos dar ao luxo de ignorar os trouxas? Que podemos continuar vivendo em nosso mundinho isolado, como se fôssemos os únicos habitantes deste planeta? Que podemos continuar acreditando na falácia absurda de que somos maiores e melhores apenas por causa da nossa magia? Ignorar essa realidade é nos condenar à estagnação, ao isolamento e, em última instância, à extinção.
— Extinção? — zombou uma bruxa com ar altivo. — Não seja tão dramática, Lady Black. Os bruxos existem há séculos, e continuaremos a existir muito mais, com ou sem a ajuda dos trouxas.
— Com todo o respeito, Lady Bulstrode, mas o mundo mudou. — rebateu Hyacinth, pacientemente. — A tecnologia trouxa avança a passos largos, e a cada dia surgem novas formas de comunicação, de vigilância, de interação entre os povos. Negar essa realidade é fechar os olhos para o perigo que nos cerca. Precisamos nos adaptar, Lady Bulstrode. Precisamos encontrar formas de continuar vivendo escondidos, mas ainda interagir com as autoridades trouxas de forma segura, eficiente e produtiva, ou corremos o risco de sermos descobertos, expostos, e, sim, extintos.
Hyacinth respirou fundo.
— E isso é apenas um dos motivos pelos quais desejo reformar completamente o Estatuto do Sigilo… Quantas famílias bruxas foram dizimadas na Primeira e Segunda Guerra Bruxa? Basta olhar para os assentos vazios desta Suprema Corte. Até quando vamos ficar sentados em nossos tronos, apegados a tradições inflexíveis, esperando mais sobrenomes desaparecerem? Mais linhagens ficarem penduradas em apenas um único herdeiro, vulneráveis a um acidente, a uma doença, a um capricho do destino? A um Lorde das Trevas? — A sua voz assumiu um tom mais sombrio à medida que falava. — E quantos casamentos entre primos aconteceram desde então, na tentativa desesperada de preservar linhagens antigas? A cada nova geração, o número de crianças diminui, e mais da metade delas são nascidas-trouxas. Eles são o sangue novo que poderia revitalizar o nosso mundo, trazer de volta a magia que se perde a cada união consanguínea, permitir que eles possam viver em nosso mundo, abrir lojas, assumir trabalhos, iniciar pesquisas, construir famílias e reconstruir a nossa sociedade conosco. Mas o que fazemos? Nós os rejeitamos, os isolamos, os tratamos como intrusos em nosso mundo elitista e decadente.
— Sangue-ruins! — exclamou um bruxo de feições aguçadas e olhar frio. — É isso que eles são! Uma mancha em nossa sociedade, uma ameaça à pureza do nosso sangue! Não devemos permitir que eles se misturem a nós, que maculem as nossas linhagens com sua magia fraca e instável!
Hyacinth sentiu o sangue ferver em suas veias, mas respirou fundo, lutando para manter a calma.
— Lorde Flint, suas palavras são um insulto a todos os nascidos-trouxas que contribuíram para o nosso mundo até agora e aqueles que deram suas vidas nas batalhas da Segunda Guerra Bruxa. Se a idade chegou para o senhor mais cedo do que o esperado, e a senilidade já lhe roubou a memória e a gratidão, permita-me refrescá-la. — Hyacinth repreendeu, com a voz firme e o olhar fulminante. — Pessoas como Hermione Granger, uma nascida-trouxa e uma das bruxas mais brilhantes que eu já conheci, lutaram bravamente durante a guerra ao meu lado e hoje ela dedica a sua vida como uma funcionária brilhante do Departamento de Execução das Leis da Magia. E ela é apenas uma dos inúmeros alunos nascidos-trouxas ou mestiços que lutaram ou morreram na Batalha de Hogwarts, enquanto muitos de vocês se encolhiam em suas próprias calças: Dennis Creevey, Colin Creevey, Justin Finch-Fletchley, Edward Tonks, Katie Bell, Aurora Sinistra, Dedalus Diggle, Elphias Doge, … A lista continua e é imensa, e o senhor, Lorde Flint, ousa dizer que esses bruxos são sangue-ruins? Que a sua magia é fraca e instável? Onde o senhor estava durante a batalha, meu Lorde? O problema é que o senhor e todos que concordam com você estão cegos. Cegos pela própria ignorância, arrogância e preconceito! A pureza de sangue que a Sociedade Bruxa Britânica tem tanto orgulho de defender, mesmo 10 anos após a Guerra Bruxa, é uma ilusão, uma mentira que tem nos levado à ruína. É hora de abandonar essas crenças arcaicas e abraçar o futuro, um futuro onde todos os bruxos e bruxas, independentemente de sua origem, sejam bem-vindos e respeitados. E se, mesmo após a queda de Lorde Voldemort, vocês insistirem no mesmo discurso, então eu sinto lhes dizer que as minhas últimas palavras serão “boa sorte”, porque vocês vão precisar.
Um silêncio ensurdecedor abateu-se sobre o Wizengamot.
As palavras de Hyacinth deixaram à mostra as feridas mal cicatrizadas da guerra e a fragilidade de um mundo que se recusava a enxergar a própria realidade.
Rostos empalideceram, olhares se desviaram, e até mesmo os bruxos mais arrogantes pareciam incomodados com a verdade nua e crua exposta por Hyacinth.
Lorde Flint, o alvo do ataque verbal de Hyacinth, permaneceu imóvel em seu assento, o rosto contraído em uma máscara de raiva e humilhação. Ele abriu a boca para retrucar, mas as palavras pareciam presas em sua garganta.
O peso dos nomes citados por Hyacinth, os nomes daqueles que lutaram e daqueles que morreram pela liberdade do mundo bruxo, e a prova de sua própria covardia durante a guerra, esmagava-o como uma montanha invisível sobre seu peito.
— Meus Lordes, eu entendo a resistência à mudança. Não assumi o assento Black para brigar, para causar tumulto ou desafiar as tradições sem propósito. Estou aqui para fazer acontecer mudanças reais e úteis para a sociedade. E eu entendo que é natural apegar-se ao familiar, ao conhecido, ao que sempre foi. Mas o mundo não é estático, ele está em constante transformação. E enquanto os trouxas criam formas de transporte cada vez mais avançadas, foguetes para pousar na lua, pesquisas revolucionárias na medicina e biologia, investigam o DNA humano e desvendam os segredos da vida, nós sequer tivemos ações concretas para fornecer suporte às crianças órfãs no pós-guerra. Os trouxas estão lá fora, a um passo de se tornarem melhores do que nós, e nós estamos aqui, apegados a métodos antigos, crenças ultrapassadas e uma visão de mundo que já não se sustenta diante da realidade. O que eu trago não são palavras vazias e promessas infundadas. É um projeto claro, em passos perfeitamente aplicáveis e uma proposta de mudança que vai levar anos para ser completamente implementada e aceita na sociedade, mas que vai nos tornar mais fortes e vai permitir que nossas crianças cresçam em um mundo novo, não mais marcado pelos horrores de uma guerra.
Finalmente, ainda sob o silêncio da Câmara dos Lordes, o Chefe Bruxo Travers pigarreou para chamar a atenção da assembleia e iniciou a votação da proposta de Hyacinth.
Por alguns segundos, os olhares se cruzaram, hesitantes.
Então, lentamente, algumas varinhas se ergueram, brilhando com uma luz que sinalizava o seu voto. Primeiro em um fio tênue, depois engrossando em um feixe de luz conforme mais e mais bruxos se juntavam à maioria e votavam a favor da moção — para a imensa perplexidade de Hyacinth, até mesmo Lucius Malfoy estava entre aqueles que decidiram levantar a varinha a favor do projeto.
Alguns segundos depois, Hyacinth respirou aliviada.
A moção foi aprovada!
Um sorriso triunfante abriu-se em seus lábios. A aprovação do projeto era apenas o primeiro passo de uma longa jornada… mas que passo!
Agora, nomeada chefe do projeto, cabia a ela apresentar a proposta na Confederação Internacional dos Bruxos, buscando apoio internacional para sua implementação na Grã-Bretanha.
Em paralelo, ela deveria iniciar o planejamento detalhado do projeto. Era preciso definir cronogramas, buscar alianças e parceiros com outros Lordes, alocar recursos, estabelecer metas e prazos.
Cada detalhe seria cuidadosamente analisado por todo o Wizengamot a cada trimestre e corrigido ao longo do caminho.
Ela sabia que não seria fácil, mas estava feliz!
Finalmente, com a reunião encerrada, Hyacinth foi cercada por Lordes e Ladies ansiosos para parabenizá-la e oferecer apoio. Alianças começaram a se formar ali mesmo, o que a poupou de um longo e árduo trabalho de convencimento. Ela sabia que receberia muitas corujas nas semanas seguintes.
Antes de seguir para o nível 9, de volta ao elevador, Hyacinth teve o caminho interrompido por ninguém menos que Lucius Malfoy. De novo.
— Lady Black. Permita-me parabenizá-la pela sua excelente argumentação e pela aprovação do seu projeto.
— Lorde Malfoy. — Respondeu ela, com um aceno de cabeça. — Eu agradeço. Confesso que fiquei surpresa por receber o seu apoio…
Ele esboçou um leve sorriso, quase imperceptível.
— O futuro do mundo bruxo depende de mentes jovens e inovadoras, Lady Black. E, como demonstrei com o meu voto, eu estou disposto a apoiar aqueles que ousam desafiar as convenções em prol do progresso.
— Bem, essa sim é uma novidade. — Hyacinth soltou sem querer, com um bufo.
Imediatamente, ela se arrependeu da franqueza. Mas já era tarde demais, as palavras escaparam antes que ela pudesse contê-las. Walburga teria pulado para fora do retrato para repreendê-la pela falta de educação em um ambiente formal.
Surpreendentemente, a reação de Malfoy foi soltar uma gargalhada divertida. Hyacinth o encarou, perplexa.
— Eu admiro a sua franqueza, Lady Black. — Malfoy respirou fundo, ainda com um sorriso nos lábios. — Sim, eu suponho que a minha reputação me precede. E não de uma forma positiva, eu receio. Mas eu lhe asseguro que 10 anos de solidão é suficiente para mudar um homem, e eu pretendo investir nessa mudança.
— Bem, eu espero que as suas ações falem mais do que as suas palavras, Lorde Malfoy.
— Eu pretendo dar-lhe motivos para acreditar nisso, Lady Black. — Respondeu Malfoy, os olhos fixos em Hyacinth, transmitindo uma intensidade que a fez estremecer. — Enquanto isso, aguarde a minha correspondência nas próximas semanas para demonstrar o meu apoio no seu projeto.
Hyacinth assentiu, ainda incerta, mas disposta a pelo menos lhe dar o benefício da dúvida.
Antes de se despedir, Malfoy se curvou levemente e levou a mão de Hyacinth aos lábios, assim como da última vez.
Ela, diferente da última vez, chegou em casa com a mente focada nos significado por trás dessa conversa, enquanto tentava ignorar o seu coração acelerado.