
Capítulo 4
Anos e anos se passaram, cada um tão terrível e cheio de terror quanto o anterior.
Eu tinha quase certeza de que era incapaz de sentir qualquer coisa neste momento. Havia momentos que eu tinha escapado tão longe em minha mente que às vezes não conseguia sair. A única coisa que me mantinha sã eram as minha lembranças de casa, dos meus amigos, da minha família.
Os quarenta e nove anos de Tamlin haviam acabado e nada havia acontecido.
Pelo menos foi isso o que pareceu.
Alguns dias após o prazo terminar, algo ocorreu que chocou a todos Sob a Montanha.
Uma humana apareceu e reivindicou Tamlin na frente de Amarantha e sua corte, afirmando amá-lo verdadeiramente e inegavelmente.
Feyre.
Esse era o nome da humana.
Eu nunca cheguei a vê-la ou a ouvi-la. Mas soube o que Amarantha tinha feito com ela na sua primeira noite aqui e o acordo que fez com a humana.
Feyre deveria completar três tarefas escolhidas por Amarantha, três tarefas para provar o quão profundo são o senso de lealdade e o amor dela por Tamlin, ou responder a um enigma ditado por Amarantha, e a maldição sobre a Corte Primaveril seria quebrada e toda a corte de Tamlin, incluindo a humana e Tamlin, poderiam sair daqui e estariam livres para sempre.
Fora isso eu não sabia de mais nada. Amarantha não vinha me ver desde que Feyre chegou aqui.
As únicas pessoas que eu via eram os guardas que me traziam comida e aqueles que ficavam fora da minha cela. E foi assim por vários dias, até que em uma noite tranquila algo aconteceu.
Os guardas que Amarantha havia designado para cuidar e me supervisionar tinham acabado de sair após deixarem meu jantar e estavam aguardando do lado de fora para recolher os utensílios que utilizei.
O ar parecia vibrar em expectativa. Algo grande estava acontecendo Sob a Montanha.
Comecei a sentir os poderes que envolviam a minha cela vibrar e começar a se estilhaçar. Como se em resposta disso, os meus poderes voltaram para mim de uma única vez.
Eu me curvei diante daquele poder estrondoso dentro dos meus ossos, meu sangue e meu fôlego. Eu me tornei o meu poder, antigo e profundo. Eu me tornei a escuridão e a luz das estrelas, as trevas no final de tudo e, ao mesmo tempo, a esperança de todas as coisas vivas.
E dobrei esse poder à minha vontade.
Ergui as mãos. Desejando que a escuridão condessasse mais, moldando-a, forjando-a.
E com um leve movimento de meus dedos, a porta de minha prisão se partiu em milhares de pedacinhos. Aqueles soldados de Amarantha que estavam do lado de fora pararam imediatamente de respirar quando caminhei em direção a eles.
E os lobos de trevas dispararam de trás de mim.
Os soldados se viraram, fugindo.
Mas meus lobos eram mais rápidos. Eu era mais rápida conforme corria com eles, no coração da matinha.
Lobo após lobo saiu rugindo da escuridão, tão colossais quanto aqueles que observava na Corte Noturna, disparando pelos tuneis, me guiando para a saída da minha prisão.
Dei cindo passos até a matilha chegar aos soldados que guardavam minha cela.
Dei sete passos até a matilha os matar, escuridão e sombras descendo pelas gargantas, dilacerando-os...
A cada passo que eu dava, sentia mais de meu poder retornando. A cada batida de meu coração, sentia cada vez mais forte a minha conexão com a escuridão e a luz das estrelas.
A cada curva que eu dava, mais soldados apareciam — todos pareciam desesperados e sem controle. Afinal de contas, sua senhora estava morta.
Amarantha tinha finalmente morrido.
E eu joguei minha ira sobre seus servos.
Meus lobos se se chocaram contra os soldados, as armaduras, destruindo-os. Aqueles que conseguiam voar gargalharam... debochando.
Ergui a mão para cima e fechei os dedos em punho.
A escuridão os cercou, as asas, a armadura, os rostos... E virou gelo.
Gelo tão escuro e frio que existia antes da luz, antes de o sol aquecer a terra. Gelo de uma terra envolta em inverno, gelo de partes de mim que não sentiam piedade, nenhuma simpatia pelo que aquelas criaturas tinham feito.
Congelados, os soldados alados caíram na rocha de uma só vez. E se quebraram sobre o chão.
Meus lobos avançavam ao meu redor, dilacerando e destruindo e caçando. E aqueles que fugiam deles, aqueles que voavam — eles congelavam e se estilhaçavam; congelavam e se estilhaçavam.
Até que os corredores estivessem cheias de gelo e sangue e pedaços quebrados de asa e pedra.
Até que os gritos dos soldados se tornaram uma canção em meu sangue.
Continuei caminhando pelos corredores sombrios e vazios. Eu estava presa realmente na cela mais profunda, e por isso demorei tanto até conseguir alcançar o nível das saídas daquele maldito lugar.
Estava quase entrando em um dos túneis que sabia, graças ao meu poder, levar para fora daquele lugar quando senti 3 feéricos se escondendo em uma das curvas perto de onde estava... E eu os conhecia.
Falkan, Caos e Chaol, seu irmão mais novo. Três dos homens de Tamlin que lhe ajudaram a me aprisionar. Com meio pensamento e um sorriso felino, entrei na mente deles e tomei elas para mim.
Não estava nos meus planos. Planos que arquitetei por mais de um século. Mas com certeza, esses machos inúteis facilitariam algumas coisas.
Ou pelo menos, eu esperava que facilitassem.
Eu consegui nos atravessar para uma floresta mais velha, mais alerta que em qualquer lugar em que eu tivesse estado.
As faias retorcidas se entrelaçavam bem próximas umas das outras, manchadas e cobertas tão completamente de musgo e líquen que era quase impossível ver a casca abaixo.
Sabia que havia conseguido chegar.
No coração de Prythian, há um território grande e vazio que divide o norte e o sul. No centro dele está nossa montanha sagrada, onde Amarantha construí seu palácio e onde fiquei aprisionada por quase cinquenta anos.
A floresta onde estava fica na ponta leste desse território neutro. Aqui não há Grão-Senhor. Aqui, a lei é feita por quem é mais forte, mais cruel, mas ardiloso. E era onde residia um dos seres mais antigos e cruéis desse mundo.
A Tecelã da Floresta.
Ela estava no topo da cadeira alimentar desse lugar, mesmo sendo cega.
As árvores rangeram, embora não houvesse brisa para movê-las.
Não, o ar ali era sufocante e velho.
Meus pais há muito tempo me alertaram de nunca chegar perto deste lugar. Se pudessem me ver agora, tenho certeza que estariam berrando comigo. Mamãe com certeza já começaria a passar mal e papai estaria com a sua expressão fria e insensível enquanto gritava comigo, pronto para me punir por minha desobediência.
E meu irmão... bem, não importa o que ele faria. Aquele era um limite perigoso: um na qual minha própria mente me obrigava a caminhar para evitar que eu pensasse no que estava prestes a enfrentar, em quanto eu estava devastada por dentro.
Raiva, dor, solidão, irritação, ódio... saudades, esperança, amor. Eu sabia que eram minhas muletas. Mas eu não me permitiria utilizar elas. Não agora de qualquer maneira.
Respirei fundo e comecei a caminhar para as árvores adiante arrastando os 3 machos atrás de mim ainda desacordados, o mais silenciosamente possível e só parei quando estava diante de uma clareira.
Um pequeno chalé branco com telhado de sapê e uma chaminé quase aos pedaços estava no centro. Comum... quase mortal. Havia até mesmo um poço, o balde estava apoiado na borda de pedra, e lenha fora empilhada debaixo de uma das janelas do chalé. Nenhum ruído ou luz do lado de dentro; nem mesmo fumaça subia da chaminé.
Os poucos pássaros na floresta ficaram em silêncio. Não totalmente, mas para manter o canto ao mínimo. E... ali.
Baixo, vindo do lado de dentro do chalé, havia um murmúrio belo e constante.
Talvez fosse o tipo de lugar no qual eu, muito tempo atrás, pararia caso estivesse com sede ou com fome, ou precisando de abrigo para a noite.
Talvez fosse essa a armadilha.
As árvores ao redor da clareira, tão próximas que os galhos quase arranhavam o telhado de sapê, podiam muito bem ser as barras de uma jaula.
Terra coberta de musgo marcava o caminho até a porta da frente, já entreaberta. Um pedaço de queijo. E eu estava prestes a entrar na armadilha.
Com os olhos brilhando e, devagar, em silêncio, segui para a entrada deixando cair silenciosamente os feéricos desacordados na beirada da clareira.
A floresta parecia monitorar cada um de meus passos. Evitei folhas e pedras, entrando em um ritmo de movimento do qual alguma parte de meu corpo — alguma parte que tinha nascido dos Grão-Senhores — se lembrava.
Era como acordar. Era essa a sensação.
Passei pelo poço. Não havia um grão de terra, nenhuma pedra fora do lugar. Uma armadilha perfeita, linda, avisou aquela parte letal. Uma armadilha projetada de uma época em que humanos eram presos, e que, agora, estava disposta para um tipo de jogo mais esperto, imortal.
Eu não era mais presa, decidi, ao me aproximar com cuidado daquela porta.
E não era um rato.
Eu era um lobo.
Ouvi sob o portal cuja rocha estava gasta, como se muitas, muitas botas tivessem passado por ali — e talvez jamais tivessem passado de volta. As palavras da canção se tornaram claras agora, a voz era doce e bela como a luz do sol em um córrego:
“Era uma vez duas irmãs que saíram para brincar,
Foram ver os navios do pai partirem para velejar...
E quando chegaram à beira do mar
A mais velha correu à mais nova empurrar.”
Uma voz melíflua para uma música antiga e terrível. Eu já a ouvira antes... um pouco diferente.
Ouvi mais um momento, tentando escutar mais alguém. Mas havia apenas o clangor e o estampido de algum tipo de aparelho, e a música da Tecelã.
“Às vezes a afundar, às vezes a nadar,
Até que enfim, na represa do moleiro, o cadáver veio parar.”
Meu fôlego estava preso no peito, mas continuei respirando regularmente — direcionando o ar para a boca com respirações silenciosas. Abri a porta devagar, apenas alguns centímetros.
Nenhum rangido; nenhuma reclamação das dobradiças enferrujadas. Tratava-se de outro pedaço da linda armadilha: ela praticamente convidava os invasores. Olhei para dentro quando a porta se abriu o suficiente.
Uma grande sala principal, com uma pequena porta fechada ao fundo. Prateleiras do chão ao teto cobriam as paredes, cheias de bricabraques: livros, conchas, bonecas, ervas, cerâmica, sapatos, cristais, mais livros, joias... Do teto e das vigas de madeira pendiam todo tipo de correntes, pássaros mortos, vestidos, laços, pedaços de madeira retorcidos, cordões de pérolas...
Uma loja de quinquilharias — de alguma acumuladora imortal.
E aquela acumuladora...
Na sombra do chalé havia uma grande roca, rachada e desgastada pelo tempo.
E diante daquela roca antiga, de costas para mim, estava a Tecelã.
Os cabelos espessos eram do mais exuberante tom de ônix, descendo em cascata até a cintura fina conforme ela trabalhava na roca, e mãos brancas como neve alimentavam o aparelho e puxavam o fio ao redor de um fuso afiado como um espinho.
Ela parecia jovem; o vestido cinza era simples, mas elegante, brilhando levemente à luz fraca da floresta que entrava pelas janelas conforme a mulher cantava com uma voz que parecia ouro reluzente:
“E ao esterno dela, que fim ele deu?
Fez uma viola, um instrumento seu.
O que ele fez com os dedos tão pequenos?
Fez tarraxas para a viola, nada menos.”
A fibra com que a Tecelã alimentava as rodas era branca — macia. Como lã, mas... Eu sabia que não era lã. Eu sabia que não queria saber de que criatura tinha vindo, quem ela tecia.
Porque, na prateleira diretamente em frente à Tecelã, havia cones e mais cones de fios: de todas as cores e texturas. E, na prateleira adjacente a ela, havia carreiras e metros daquele fio tecido — tecido, percebi, no imenso tear quase escondido na escuridão próxima à lareira.
O tear da Tecelã.
Eu tinha vindo em dia de fiar; será que ela estaria cantando se eu tivesse vindo em dia de tecer? Pelo cheiro estranho, encharcado de medo que vinha daqueles rolos de tecido, eu já sabia a resposta.
Um lobo. Eu era um lobo.
Entrei no chalé, atenta aos objetos espalhados no chão de terra. Ela continuou trabalhando, a roda girando tão alegremente, tão destoante de sua horrível música:
“E o osso do nariz dela, que fim levou?
Para a viola, um cavalete ele entalhou.
E com as veias tão azuis, o que ele fez?
Cordas para a viola, dessa vez.”
Observei a sala, tentando não ouvir a letra. A Tecelã ficou curvada ali, trabalhando sem se quer me notar.
A Tecelã cantava:
“Que fim deu ele aos olhos dela, tão cintilantes?
A viola adornam, brilhantes.
E aquela língua tão áspera, aonde foi parar?
Virou o novo arado e desatou a falar.
Então falou a corda aguda,
Oh, distante está meu pai, o rei.”
Observei a Tecelã por mais um segundo, tentando entender como ela ainda não tinha me notado. Ela já deveria ter, tenho certeza disso.
“Então falou das cordas a segunda,
Oh, distante está minha mãe, a rainha.
Então das três cordas o conjunto falou,
Distante está a irmã que me afogou.”
A Tecelã parou de cantar.
Congelei, ela terminara a última música; talvez começasse outra.
Talvez.
A roca ficou mais lenta. Mais e mais devagar, cada rotação da antiga roca era mais longa que a anterior.
A roda girou uma última vez, tão devagar que consegui ver cada um dos raios do aro.
— Estive esperando por você, criança. — disse a Tecelã, baixinho.
A Tecelã virou o rosto em minha direção.
Sobre o corpo jovem e esguio, sob os cabelos pretos lindos, a pele da Tecelã era cinzenta — enrugada e flácida e seca. E onde olhos deveriam brilhar havia pútridos buracos pretos. Os lábios tinham murchado e virado nada além de linhas profundas e escuras ao redor de um buraco cheio de cotocos pontiagudos de dentes... como se a Tecelã tivesse mastigado ossos demais.
O nariz da Tecelã — talvez um dia tivesse sido bonito, agora estava afundando no rosto — se dilatou quando ela farejou em minha direção.
— Estive esperando por você por muito tempo — disse a Tecelã, com uma voz muito jovem e meiga.
A Tecelã se levantou do banquinho.
Eu respirei fundo e tentei acalmar meu coração. Não poderia me deixar entrar em pânico. Se o fizesse, seria meu fim.
— Desculpe por ter demorado tanto, Tecelã — desculpei-me baixinho. — Não sabia que me esperava. Mas trouxe alguns presentes.